Reportagem

Cassinga preserva memória dos bombardeamentos

Os relatos de algumas testemunhas atestam que as bombas de vários calibres da aviação sul-africana, lançadas a 4 de Maio de 1978, das 5 às 18 horas, maioritariamente no campo de refugiados namibianos, causou dor, luto e pânico, não só no grupo alvo, mas também entre as famílias da comuna de Cassinga e da sede da Jamba.

09/04/2023  Última atualização 10H05
© Fotografia por: Estanislau Costa | Edições Novembro

Num percurso de 315 quilómetros do Lubango à vila da Jamba, acrescidos de outros 105, num troço de terra batida a precisar de restauro, desperta a atenção dos visitantes as mudanças qualitativas das infra-estruturas públicas de Cassinga, assim como do local onde jazem as vítimas do massacre.

Para honrar condignamente as vítimas, não só namibianas como, também, dos nativos da Jamba que habitavam próximo do local do ataque da aviação, os governos de Angola e da Namíbia acordaram construir um memorial e outros adornos numa área cedida de 60 hectares.

O administrador comunal de Cassinga, Domingos Jorge, uma das testemunhas oculares do trágico massacre, explicou que as obras já estão a 80 por cento de execução física, faltando apenas a colocação de adornos como a malha de granito negro, iluminação do espaço e respectiva vedação.

Referiu que o memorial vai conferir maior dignidade àqueles que há 40 anos foram vítimas das atrocidades do conflito entre filhos da zona austral de África. Domingos Jorge assinalou que além do jazigo com uma estrutura arquitectónica cativante, o projecto contempla espaços de lazer e recreação para os turistas nacionais e estrangeiros, com realce para os namibianos e sul-africanos, que já têm frequentado o espaço com regularidade.

"A maioria dos namibianos e sul-africanos que visitam o espaço de Cassinga são familiares das vítimas dos bombardeamentos dos aviões Mirage sul-africanos, que na época surpreenderam, à madrugada, o espaço que acomodava milhares de refugiados da vizinha República da Namíbia”, disse.

O administrador comunal de Cassinga acrescentou que alguns conseguiram abandonar o campo de refugiados para se esconder em locais seguros, com destaque para os arbustos e montanhas.

O ancião Joaquim Kangombe revelou que, na sequência dos bombardeamentos,  dezenas de tropas cubanas que se dirigiam, de emergência, para o local com o propósito de prestar os primeiros socorros aos feridos e ajudar na protecção das instalações, foram também vítimas das bombas.

Já o antigo membro da ex-Organização de Defesa Popular (ODP), José Cassanga, na altura com 27 anos, explicou que "o exército do Apartheid vaticinou que havia no local do ataque apenas militares da SWAPO, quando, na verdade, lá se concentravam também dezenas de civis namibianos e angolanos, a maioria mulheres, crianças e idosos”.

José Cassanga estava em direcção ao campo de refugiados na qualidade de membro da ODP para averiguar o estado da guarnição, a organização das tropas, assim como o abastecimento alimentar e de água potável. No princípio, referiu, "não dei conta dos Mirages sul-africanas devido à forma como estavam disfarçados, sem ruído, nem fumo dos motores. À medida que se aproximavam da zona do ataque, pareciam pássaros a voar. Só instalaram o pânico quando o primeiro projéctil caiu no campo de refugiados”.

José Cassanga, actualmente docente de História, disse que viu também o desembarque rápido de homens fortemente armados e trajados com uma farda estranha, parecendo folhas de bananeira, que se aproximaram para assassinarem todos aqueles que conseguiram escapar das bombas.

Para se livrar dos bombardeamentos, explicou, escondeu-se nas grutas das montanhas onde estavam os camiões com alimentos para os refugiados. "As áreas onde estava concentrada a logística eram muito seguras por terem sido disfarçadas com capim e arbustos, de modo a despistar a atenção dos pilotos invasores que sobrevoavam permanentemente a região Sul”.

 

Preservação do memorial

Dezenas de angolanos e descendentes de namibianos que residem há mais de 40 anos na localidade de Cassinga consideraram que o memorial vai servir de testemunho às novas gerações sobre as atrocidades da guerra que culminou com a independência da Namíbia e a libertação do povo sul-africano das garras do Apartheid.  "Está a nascer um memorial com arte, que simboliza o sofrimento dos angolanos e namibianos por se baterem pela manutenção e conquista da independência dos seus países”, disse, realçando que os feitos em referência merecem a atenção especial dos dois povos, e não só.

O estudante universitário António Malengue apelou às autoridades angolanas e namibianas a acelerarem as obras de acabamento do memorial,  para facilitar a actividade dos pesquisadores dos três países, que, regularmente, se deslocam ao município da Jamba.   "Da sede a Cassinga são à volta de 105 quilómetros numa via de terra batida que torna o trajecto fastidioso, razão para os dois países criarem com alguma urgência as condições para asfaltar a via, com vista a atrair mais estudantes e pesquisadores de universidades do continente africano, e não só”, apelou.

O jovem António Malengue, que está a preparar a dissertação de mestrado na Faculdade de Ciências Humanas de Windhoek sobre o tema "Razões que Influenciaram os Namibianos a Refugiar-se em Cassinga, Sul de Angola”, defendeu também a construção de espaços para acomodar os visitantes. 

 

Crimes hediondos

O professor de História de África, Justino Cassinda, classificou os bombardeamentos sangrentos de Cassinga de "crimes puramente hediondos contra a humanidade e populares desprotegidos, por ceifarem e ferirem milhares de civis de um campo de concentração de refugiados em território nacional”.

Estava tudo desenhado, explicou, para o regime do Apartheid inviabilizar a criação dum novo Estado a sul de Angola, já que interessava a este regime  manter o domínio da Namíbia e fazer fracassar a luta para a conquista e consolidação da liberdade na África Austral. "Aos mentores do regime do Apartheid interessava travar a independência da Namíbia”, explicou Justino Cassinda. 


Vila será reabilitada

Os dados a que o Jornal de Angola teve acesso atestam que além do memorial foi desenhado um projecto para a reabilitação de todo espaço habitável da vila de Cassinga, com o propósito de valorizar mais o espaço histórico, assim como criar as condições para atrair turistas de vários pontos do mundo. O administrador Domingos Jorge garantiu que as acções já executadas e as que estão programadas vão assegurar a preservação de cada detalhe dos pontos de concentração dos namibianos, com realce para o bunker onde as famílias se escondiam das atrocidades dos sul-africanos e seus aliados.

"No antigo campo de refugiados, os detalhes com valor histórico estão sempre protegidos. É possível divisar os destroços e restos de materiais bélicos utilizados durante os confrontos entre as forças beligerantes, notadamente angolanas e namibianas contra as sul-africanas”.

Um posto médico, escola do ensino geral, sistema de captação e distribuição de água potável e a terraplanagem de um troço de estrada com mais de 100 quilómetros são o resultado da aplicação, na comuna de Cassinga, de fundos públicos, com realce para o Plano Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM).

O administrador comunal de Cassinga, Domingos Jorge, anunciou estar para breve o arranque de outras acções de impacto social. Segundo disse, a requalificação da área dos bombardeamentos de Chamutete deve ser concluída com alguma urgência, de modo a possibilitar a recepção e acomodação condigna de turistas e pesquisadores.


NOS ARREDORES DO LUBANGO
Luyovo tem escola financiada pela Namíbia

Na povoação do Luyovo, 18 quilómetros a este da cidade do Lubango, existem dezenas de garotos deixados por ex-tropas da SWAPO e outros cidadãos namibianos, resultantes da relação com angolanas.  Estão também no local em referência, sepultados, mais de 90 militares e civis da República da Namíbia, que tombaram nos campos de batalha, durante o conflito que envolveu Angola e Namíbia contra o regime sul-africano do Apartheid.

Em honra às vitimas, o Governo namibiano financiou a construção de uma escola de quatro salas de aulas, para 40 alunos cada, dois gabinetes, salas de professores e de Informática e balneários, devidamente apetrechados. A Escola Peter Eneas Nanyemba (nome do antigo comandante da luta de libertação da Namíbia, falecido em 1983), orçou em 998 mil e 726 dólares.

O valor empregue incluiu a construção de um memorial no cemitério onde jazem os restos mortais dos ex-combatentes da SWAPO. De realçar que a escola primária do Luyovo será, brevemente, ampliada para inserção de mais alunos.

Mesmo com a escola já em funcionamento, o Governo namibiano projectou a construção de um outro estabelecimento escolar do  II ciclo. Estas escolas, além de proporcionarem um ensino de qualidade, vão evitar que os jovens locais percorram longas distâncias até ao centro da cidade do Lubango para estudar.

Mais de 32 professores asseguram as aulas em Luyovo. 

O jovem Fernando Pereira, 24 anos de idade, é  filho de um namibiano com uma angolana. "O meu pai chama-se Fernando Caliata, era militar da SWAPO e me deixou quando tinha sete anos.  Disseram-me que partiu para a Namíbia, depois da independência, para preparar as condições e vir nos buscar”, disse.

Fernando frequenta a 6ª  Classe e já constituiu família, sendo pai de um casal. Ele alimenta a esperança de voltar a ver os seus familiares residentes na Namíbia. "Faço trabalhos de pedreiro e estou a estudar para depois aprender a falar inglês e um dia ir dar uma volta à Namíbia”, garantiu.

O jovem elogiou a iniciativa da construção da escola do Luyovo, que, segundo disse, entre outras valências tem a sala de Informática que está apetrechada. Fernando Caliata realçou que a escola tem água corrente e energia eléctrica. "A nossa sala de Informática tem Internet, o que nos permite pesquisar mais coisas sobre a terra dos nossos pais”, disse por sua vez Calohangue Pedro, igualmente descendente de namibiano.



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