Opinião

De lençóis e escada na Melói

Manuel Rui

Escritor

Meu pai tinha a primeira livraria de Nova Lisboa, Huambo. Quase tudo vinha do Brasil. Lembro-me dos mosquitos, livrinhos para crianças. E a ervanária ao lado. Também vinham livros portugueses e Ágata Christie, a senhora dos policiais que minha mãe leu todos e me mandou ler alguns e ficou desapontada quando eu lhe disse que eram todos iguais, só mudavam as personagens. Depois eram os almanaques de que eu, ainda, não perdi a paixão.

12/09/2024  Última atualização 08H35
Tinham tudo, do bom humor, à aventura ou às casas com espíritos e ainda, aqueles degredados, vestidos de riscas brancas e pretas que de quando em vez, nos desenhos do almanaque, fugiam da kionga amarrando lençóis e trepando para fora do presídio. Eram os meus heróis e nem peço perdão.
A "Livraria Brasileira”, de meu pai, era um centro de conversa "contra a situação”, era assim que se falava contra o salazarismo, mas toda a gente tinha na parede uma fotografia de Salazar.

A livraria de meu pai "foi fechada”. Amigos levaram a maior parte dos livros para nossa casa. Aí é que ei fiquei um grande almanaquista. Em apaixonado pela malandragem, de roupa listrada a branco e preto e que bazavam da kionga amarrando lençóis uns nos outros.

Naquela vez, eu estava de terrorista na cadeia do Aljube na Melói. Não vou falar nas torturas. Mas de que guardando miolo de pão, eu e o António Faria, fizemos as peças de xadrez, com esferográfica pintámos umas de preto e numa prata de maço de cigarro fizemos o tabuleiro. Uma vez que outra eu fazia uma dissertação sobre almanaques dissertando sobre aquela malta simpática que bazava com lençóis amarrados uns nos outros. Mas aqui é impossível -dizia o Faria- o pior era depois, acrescentava o Martinho que era o cérebro de todos nós.

Tantos anos passados, estou nos 82, tenho poucos amigos do meu tempo vivos que agora estariam numa grande gargalhada de um acontecimento na Melói como reprodução do que eu via nos almanaques.

A cadeia já tem um nome mesmo faine: VALE DE JUDEUS!  Em Alcochete. Não lembra ao diabo. Cinco detidos em prisão de alta segurança, cinco detidos, perigosos de mata-mata, piraram-se de lençóis amarrados, escada e receção cá fora.

Transcrevo: "A fuga do Estabelecimento Prisional Vale de Judeus, prisão de alta segurança, em Alcochete, distrito de Lisboa, ocorreu por volta das 10 h da manhã de sábado, num plano montado e preparado com antecedência.

Os cinco foragidos cumpriam penas entre os sete e os 25 anos e são gente muito violenta, com enorme capacidade de mobilidade, (…). Os evadidos "tudo farão para continuar em liberdade e o fator humano está em causa, alertando para o grau de complexidade e violência.”

Afinal, voltava aos meus almanaques. Depois, fui vendo a televisão e todo o mundo, fora de Portugal, gozava com isto, chamando de brincadeira, telenovela e palhaçada de lençóis e escada.

Quando acabei o meu curso de direito em Coimbra, fiz um ano a passar de manhã até ao fim do dia na maior presidiária de Portugal, a de Coimbra. As cadeias, raras vezes, recuperam os detidos. Quando saem ficam piores. Mas eu, um dia, tinha um preso na cadeia de Benguela e encontrei uma cadeia exemplar. Fui bem recebido. Conversei com o preso, acontecia que a cadeia era uma fazenda de plantio, árvores e gado. E os presos quando acabavam a pena queriam ficando a trabalhar ali. Tinham casa para a família e ficavam felizes.

O problema das prisões cada vez mais é para deseducar o detido. Todas as teorias desde a culpa social ou aquela da culpa na formação da personalidade não vingaram. A virtude escondida está em que o preso depois de detido deixa de ser pessoa.

Anda uma gozação internacional sobre o que aconteceu em Portugal. Até a Ministra já falou.

Por mim, foi um ato de coragem e, se conseguiram pirar-se para aqui, lá no mato, que façam uma xitaca, trabalhem, não matem bichos e para as galinhas, morros de salalé. De resto, lembro-me dos almanaques e se precisarem de alguma coisa…desde que não seja para matar…apitem que o Zé do Telhado aqui foi respeitado e deixou descendência.

Não matem ninguém que a Ministra de Portugal está cheia de raiva.

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