Opinião

A emergência do associativismo de cariz africano

De acordo com Mário Pinto de Andrade, a Junta de Defesa dos Direitos de África (JDDA), uma federação de associações criada em Lisboa, em 1912, por um grupo de intelectuais, que, na sua maior parte, era constituído por estudantes angolanos, cabo-verdianos e santomenses, terá, provavelmente, sido uma das primeiras agremiações de africanos em Portugal, muito antes de qualquer outra com estatuto jurídico-legal nas colónias portuguesas em África.

08/01/2017  Última atualização 07H30

“Ser negro ou filho deste” era uma das condições para  ser sócio efectivo da JDDA, que chegou a ter, entre 1911 e 1913, um periódico intitulado A Voz de África.
Estamos no início do século XX, logo após a instauração da I República em Portugal e, na opinião de Salvado Trigo, a elite intelectual que em Angola, em finais de século XIX, proveniente da camada social urbana, já havia lançado, através de Augusto Silvério Ferreira, Francisco Castelbranco e Pedro Paixão Franco, a revista Luz e Crença, em 1902, e O Angolense, em 1907, que, à época, se propunha promover a “evolução material e moral do grande Império de Angola”.
A afirmação da “identidade negra”, através da valorização intelectual dos seus membros, a exigência de um estatuto de autonomia para as colónias, a abolição das leis de excepção e o direito à instrução e à justiça social eram propósitos da JDDA, mas, num quadro civilizacional de tipo ocidental, que caracterizou as contradições do discurso protonacionalista, tal como refere Edmundo Rocha, quando salienta “por um lado, a herança nativista, impondo a afirmação da especificidade racial e os valores culturais africanos, por outro, a afirmação da identidade no quadro constitucional português”.
Após a I Guerra Mundial (1914-1918) e da realização, a 19 de Fevereiro de 1919, em Paris, do 1.º Congresso Pan-Africano organizado pelo intelectual negro americano William E. B. Du Bois, surgiram, também em Lisboa, duas outras associações africanas: A Liga Africana, em 1920, que se assumia como uma continuadora da JDDA e o Partido Nacional Africano (PNA), em 1921, que se intitulava como representante de uma união dos povos africanos. Este último propunha uma alteração radical da Constituição Portuguesa, para uma confederação que agrupasse os povos africanos em pé de igualdade com o povo português. Contrariamente à Liga Africana, mais elitista, o PNA assumia-se como representante dos povos das colónias portuguesas em África, incluindo as chamadas “populações gentílicas”. Porém, a Liga era a associação que tinha maior influência, não só na metrópole e nas colónias, mas também nos contactos com as correntes pan-africanas americanas e francesas.
Em 13 de Agosto de 1929, surge, ainda em Lisboa, o Grémio Africano, uma associação de carácter civil, recreativa, artística e científica constituída por “naturais pertencentes… à Raça Africana”. O Grémio Africano, de acordo com os seus estatutos, aprovados pelo Governo Civil de Lisboa, a 28 de Agosto de 1929, tinha como principais objectivos “concorrer para o prestígio social e mental dos africanos, congregar e estreitar os laços de uma união e solidariedade entre os naturais d’África e as raças nacionais e promover o levantamento do nível intelectual e revigoramento físico dos indígenas da África Portuguesa”. Nesta associação, distinguiu-se D. Georgina Ribas, notável musicóloga feminista, que exerceu grande influência social e moral junto da intelectualidade africana então residente na capital portuguesa.
Em 1926, após o fim da 1.ª República em Portugal, foi oficialmente criada, a 17 de Julho de 1930 e posteriormente legalizada, através da publicação dos seus estatutos no Boletim Oficial, 2.ª série, de 29 de Julho de 1930, a Liga Nacional Africana (LNA). Herdeira das ideias da antiga Liga Africana teve como propósito e perspectiva utópica reunir os africanos do Cairo ao Cabo em acções estritamente culturais, desportivas e recreativas. O seu funcionamento “ficava condicionado” à recomendação expressa pelas autoridades do Estado Novo (a ditadura em Portugal), de que a “aprovação lhes seria retirada quando a citada associação se desviasse dos fins para que era instituída”, o que, efectivamente, não veio a ocorrer durante cerca de vinte anos. Nesta fase de coexistência pacífica com o regime colonial, intitulada, segundo Carlos Belli Bello, de “fase requerimentista”, a LNA, que não era frequentada por europeus, esteve abrangida por dotações financeiras anuais inscritas nos orçamentos do Governo-Geral de Angola. Por iniciativa do então ministro das Colónias da altura, Professor Marcello Caetano, foi-lhe atribuída uma sede condigna, em 1942.
Apenas em 1948, com a emergência do lema cultural de intervenção política “Vamos descobrir Angola”, a LNA passou a inquietar as autoridades coloniais. Viriato da Cruz, considerado o demiurgo daquele movimento, enunciava assim os objectivos: “Queremos reavivar o espírito combatente dos escritores africanos dos fins do século XIX, de Fontes (José Fontes Pereira) e dos homens que compuseram ‘A Voz de Angola a Clamar no Deserto!’. Os poetas devem escrever acerca dos interesses reais dos africanos e da natureza social da vida africana, sem nada concederem à sede do exotismo colonial, ao turismo intelectual e emocional do prurido e curiosidade dos europeus”.
Descendente do “Grémio Africano” e criada sensivelmente na mesma altura da LNA (1930) surge a Anangola, também em Luanda, que, através de um animado departamento cultural, publicou a revista “Mensagem”, a qual marca o início da literatura angolana de intervenção política e está na origem da corrente cultural “Novos Intelectuais de Angola”. Frequentada por mestiços, negros e até por brancos, esta associação, ainda de acordo com a opinião de Edmundo Rocha, acabou por assumir posições de compromisso com a administração colonial de forma mais acentuada que a LNA. Por essa razão, Viriato da Cruz e Mário Alcântara Monteiro acabaram por abandonar a Anangola em total desacordo com a sua política reformista e passaram a integrar-se nas actividades culturais na LNA e à militância política clandestina.
Houve também uma tentativa frustrada de criação da Associação Africana do Sul de Angola, fundada por trabalhadores ferroviários da ex-Nova Lisboa (Huambo) e do Lobito. Porém, o seu programa não mereceu o agrado das autoridades coloniais, o que levou ao seu rápido encerramento.
Face às agruras do trabalho forçado, muitos dos cerca de 700 mil trabalhadores assalariados angolanos com o estatuto de “indígenas”, que na década de 50 do século XX eram obrigados a trabalhar, tanto para a administração, como para as grandes e médias empresas privadas portuguesas ou estrangeiras, passaram a emigrar para territórios vizinhos.
Como refere na sua tese de doutoramento Christine Messiant, as rusgas tornavam-se cada vez mais frequentes, “quer nos muceques, como nas sanzalas e, até mesmo, nas escolas, com o intuito de arranjar homens para o ‘contrato”. Tal facto, associado ao sistemático despovoamento das terras, criava nas populações um permanente sentimento de insegurança e medo. Corroborava, também para a destruturação das comunidades tradicionais e para o desequilíbrio das famílias africanas rurais e suburbanas, devido à diminuição da natalidade, à falta de braços para o trabalho e ao rápido empobrecimento por falta de meios de subsistência.
Como resultado do reconhecimento de uma maior consciencialização da injustiça praticada, cresceu nestas populações um profundo sentimento de revolta. Em 1954, foram criadas no Congo Leopoldeville duas associações de naturais do Norte de Angola: a UPNA (União dos Povos do Norte de Angola) e a ALIAZO (Aliança dos Originários do Zombo), que, por seu turno, acabam por estar na origem da fundação de duas organizações políticas de carácter nacionalista. Surgem então a UPA (União das Populações de Angola) e o PDA (Partido Democrático Angolano).

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

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