Economia

A ascensão e queda de um dos mais ricos de Portugal

Empresário, feito comendador, coleccionador de arte notável - tendo inclusivamente trazido para Portugal a mais importante colecção de Arte Moderna alguma vez vista no país, desde 2007 no Museu a que deu o nome, no CCB -, o madeirense ex-emigrado na África do Sul chegou a estar entre os mais ricos do país. Agora, a história é bem diferente.

14/04/2019  Última atualização 09H17
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Aquele que foi um investidor de relevo na bolsa portuguesa, em 2007, e que chegou a ser o quinto homem mais rico do país, com uma fortuna avaliada em 890 milhões de euros, segundo a revista Exame - só no BCP, era dono de uma posição de 7% do banco, tentou comprar a SAD do Benfica e o seu papel foi importante para o desfecho de diversas operações, nomeadamente, as relativas ao controlo do BCP e da Portugal Telecom -, hoje, aos 75 anos, está em apuros. Deve quase mil milhões de euros a três grandes bancos portugueses. BCP, Caixa Geral de Depósitos (CGD) e Novo Banco estão a pagar caro por terem concedido créditos ao empresário, sem acautelar as devidas garantias. Os três bancos tentam agora, confirmou o DN/Dinheiro Vivo, executar o antigo investidor e especulador da bolsa.
“A execução de bens não será fácil”, disse fonte próxima de um dos bancos. O gestor tem entre os seus negócios a Quinta da Bacalhôa, a Fundação Berardo e a Metalgest. Estes negócios podem vir a servir para pagar os créditos do empresário. No caso da Colecção Berardo - que está instalada no Centro Cultural de Belém -, levanta muitas dúvidas sobre se pode ser executada. A colecção de arte foi dada como garantia aos três bancos.

Um império de Joanesburgo à arte

Nascido José Manuel Rodrigues Berardo, no Funchal, em 1944, e tendo começado a trabalhar antes dos 14 anos na Madeira Wine Company, emigrou acabado de atingir a maioridade, como tantos outros madeirenses, para Joanesburgo - onde viria a conhecer Horácio Roque, de quem ficou amigo e sócio no Siet Savoy, com três hotéis na Madeira, e na Empresa Madeirense de Tabacos. Foi por lá que ganhou o nome que o faria famoso, Joe, logo nos primeiros anos, quando começou por trabalhar "numa loja de produtos agrícolas da qual viria a tornar-se sócio", conforme o próprio conta na apresentação que se faz na página do Museu Berardo.
Se o trabalho que o pôs na rota do sector mineiro - “antecipando a subida do preço do ouro, Berardo dedica-se à reciclagem dos desperdícios, reiniciando a exploração das minas desactivadas que entretanto havia adquirido” e em poucos anos assumia a liderança como dono de “várias refinarias em minas de ouro e de diamantes, alargando os seus negócios ao mercado bancário e ao mercado bolsista”, conforme se relata naquela página - lhe deu bagagem financeira para expandir os negócios, a sua paixão sempre foi outra. Coleccionador apaixonado, Berardo não descansaria enquanto das primeiras colecções de selos, postais e caixas de fósforos não fizesse nascer uma colecção de arte digna desse nome.
Antes disso, porém, alargaria os seus negócios ao mármore e ao granito, ao petróleo, às telecomunicações, ao material informático... até ser nomeado, “na década de 1980, presidente do Bank of Lisbon”, relata a mesma fonte, recordando ainda a sua passagem, já no final dessa década, pelo Canadá e Austrália, antes do regresso a Portugal, já com honras de distinto empresário comprovadas em 1985, com a atribuição do grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, pelo então Presidente Ramalho Eanes (secundada pela Grã Cruz da mesma Ordem, uma década mais tarde).
Por cá, tornar-se no “senhor Gulbenkian do século XXI” era o objectivo, traçado já nos anos 1990, por Francisco Capelo, que tomou por missão ajudar Berardo a transformar e dar sentido e unidade ao seu espólio. E foi percorrendo essa estrada que Joe conseguiu que a sua colecção se tornasse numa referência mundial - segundo o Independent e vários críticos de arte mundialmente conceituados, numa “das melhores colecções privadas da Europa, superior à de Guggenheim”.
Além do Museu de Arte Moderna por si inaugurado, em 1997, tendo posteriormente conseguido chegar a acordo com o Governo para a instalação da sua colecção no Centro Cultural de Belém - o Museu Berardo de Arte Moderna e Contemporânea, inaugurado em 2007 -, reúne obras de incrível valor e que já foram integradas em exposições dos mais importantes museus do mundo, incluindo o Centro Georges Pompidou, em Paris, a Tate Gallery, em Londres, o MoMA e o Guggenheim Museum, em Nova Iorque, e o Museu Rainha Sofia, em Madrid.
Casado e com dois filhos, Joe Berardo deu ainda vida a uma outra paixão, os vinhos, através da Quinta da Bacalhôa, em Azeitão - propriedade da Fundação Berardo.

Actor em guerras de poder

Se os negócios de Berardo começaram na África do Sul, em Portugal, o comendador investiria em diferentes áreas, do tabaco à banca e aos vinhos. Os seus investimentos têm sido feitos através da Fundação Berardo e da Metalgest.
Investidor e especulador em bolsa, entrou na Cimpor e na Teixeira Duarte, tendo sido um actor decisivo na guerra de poder no BCP e também na oferta pública de aquisição (OPA) falhada da Sonae sobre a Portugal Telecom. E nessa altura tinha mesmo presença assídua nos Media.
No caso do BCP, o empresário madeirense ficou do lado dos grandes accionistas, incluindo Manuel Fino e Teixeira Duarte, na guerra contra Jorge Jardim Gonçalves, que liderava o banco. BES (actual Novo Banco), CGD e BCP ajudaram Berardo a comprar acções do BCP, financiando o empresário.
“Os bancos é que vieram oferecer-me crédito para comprar acções”, garantiu, numa entrevista ao DE em 2011. E quando as acções do BCP afundaram em bolsa - fazendo a sua fortuna perder um terço do valor em apenas alguns meses -, Berardo deu como garantia a sua colecção de arte.
Mas a garantia foi dada através da Associação Colecção Berardo, conforme conta o Correio da Manhã, pelo que, juridicamente, há diferentes interpretações sobre se as obras de arte poderem ser alvo de execução. A Colecção Berardo foi avaliada pela leiloeira Christie's, em 2006, num valor que ascende os 316 milhões de euros.
No caso da Portugal Telecom, Berardo acabaria por ficar contra a Sonae na OPA, que foi chumbada numa assembleia geral da PT em Março de 2007. Nesse mesmo ano, a PT Multimédia comprou os negócios de TV por cabo de Berardo, por 65 milhões de euros. De resto, o BES, a CGD e o BCP financiaram vários dos actores principais da OPA sobre a PT, incluindo a Ongoing e Joaquim Oliveira.
Esta OPA acabou por chamar a atenção do Ministério Público, no âmbito da Operação Marquês, que começou a investigar o que levou ao seu desfecho, noticiou o DN em 2015. Um desfecho para o qual Joe Berardo e os bancos que o financiaram contribuíram.
O nome de Berardo voltou a estar na agenda mediática, numa altura em que decorre a segunda Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão da CGD. O ex-presidente do conselho fiscal da CGD Eduardo Paz Ferreira afirmou, em audição na comissão, que havia um “tratamento especial” dado a alguns grandes devedores do banco público, incluindo Joe Berardo, que era “o cliente especial à margem das regras”.
Paz Ferreira também disse estar “muito longe de acreditar que a Colecção (de arte) seja executável” e desejou “boa sorte” aos bancos sobre a eventual execução de bens do empresário. Segundo o Correio da Manhã, a Direcção de Gestão de Risco da CGD só encontrou uma garagem em nome do empresário madeirense.
O processo conjunto dos três bancos vai avançar depois de ter falhado uma última tentativa de acordo para a liquidação dos empréstimos, segundo o mesmo jornal. Os bancos propuseram executar a Colecção Berardo a par de um perdão de grande parte da dívida do empresário. Berardo recusou.
Os bancos portugueses têm vindo a ser pressionados a cortar no crédito malparado. O nível de crédito em incumprimento em Portugal ainda é elevado, apesar de ter reduzido em 24. 600 milhões de euros, desde o pico em 2016. Mas os empréstimos "tóxicos" ainda representam 9,4% do crédito em carteira no sistema bancário português, acima dos 4,5% de média na zona euro.



*Com Joana Petiz, no Diário de Notícias