Reportagem

Paraíso selvagem, paraíso radioactivo

Em 2010, duas décadas e meia depois da explosão do reactor número 4 da central nuclear de Chernobyl e da criação da zona de exclusão, num perímetro de 30 quilómetros em redor da central, já se tinha tornado claro que, na ausência da presença humana, os animais estavam a ocupar todo aquele território. Hoje, a vida selvagem prospera ali, mas não é claro qual é o real efeito da radiação naquelas populações de animais.

15/06/2019  Última atualização 06H55
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Logo após o acidente, a libertação intensa de radiação ao longo de muitos dias causou danos visíveis na região. O secretismo que era a norma do regime soviético impediu que as mais de 115 mil pessoas que viviam na cidade de Pripyat e nas aldeias em redor fossem evacuadas em tempo útil - isso só aconteceu um dia depois e, mesmo assim, sem que lhes fosse dito o que estava a acontecer. Nem os chamados “liquidadores”, os que foram de imediato enviados para central sem equipamento adequado, para extinguir o incêndio no reactor, sabiam o perigo que corriam - hoje não resta um.
A natureza também não escapou à tragédia. A floresta de coníferas junto à central ficou vermelha de um dia para o outro e as árvores morreram. Lá estão, ainda de pé, Chamam-lhe “a floresta vermelha”, e está envolta em silêncio - ali, os pássaros não fazem poiso.
Duas décadas depois, no entanto, a vida selvagem voltou à região, instalou-se e prosperou, tanto mais confiante quanto não está ameaçada pela presença humana. A vida segue o seu curso.
À parte a tendência recente dos circuitos que levam turistas ao interior da zona desabitada, para que estes possam apreciar a decadência da cidade abandonada de Pripyat (onde viviam as família dos trabalhadores da central), observar o que resta das aldeias mais próximas, onde a vegetação tomou as casas de assalto, e até ter um rápido vislumbre dos animais que repovoaram a região, quando eles se deixam ver, ninguém reside na zona de exclusão.
Hoje, todo aquele vasto território é dos linces e dos bufos-reais, das garças-brancas, dos cisnes, dos ursos, dos bisontes e dos alces, dos cavalos selvagens e dos lobos. Estes, sem o seu predador natural, formaram matilhas. A cadeia alimentar restabeleceu-se e a natureza reconquistou o seu ritmo normal, mesmo se os solos e a vegetação, que também floresceu, estão contaminados.
Biólogos que têm estudado nos últimos anos este fenómeno da renaturalização da zona desconhecem, porém, o real estado de saúde destes animais.
É verdade que as populações das diferentes espécies mantêm números altos, mas os biólogos desconhecem o verdadeiro impacto nos animais da taxa de mutações genéticas, que é duas a dez vezes mais alta em algumas das espécies de pássaros e mamíferos, em relação às suas congéneres noutras partes do mundo. “Vemos efeitos negativos da radiação nos diferentes organismos”, desde os insectos aos mamíferos, explicou à Wired Anders Møller, ecologista e investigador da Universidade de Paris, que tem avaliado, nos últimos anos, a vida selvagem naquela zona. Mas falta uma visão global do problema, sublinha o biólogo.
“Estas populações são ou não compostas por indivíduos saudáveis? Os animais têm ou não doenças e malformações com impacto na sua saúde", questiona-se. Os estudos ainda permitiram dar uma resposta conclusiva a estas questões, sublinha.
J. Beasley, um biólogo da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos, de uma equipa internacional que fez um estudo em 2015 sobre a questão, é da opinião que, qualquer que seja o impacto da radiação na saúde destes animais não se repercute de forma negativa nas populações das diferentes espécies. E explica porquê: as contagens feita pela sua equipa mostram que os números são idênticos aos de outras populações congéneres, noutras regiões sem o problema da radiação.
“A maioria dos animais”, diz J. Beasley, “morrem durante os primeiros meses de vida e “os que atingem a idade adulta nunca vivem muitos anos”, sendo que “o cancro é muitas vezes uma doença que ocorre em idades mais tardias”.

* Quem era criança enfrenta maior risco

O pediatra alemão Alex Rosen tem-se dedicado a investigar as consequências do desastre na central nuclear ucraniana para a saúde. Hoje, passam 33 anos sobre a tragédia. Em entrevista em 2016, o cientista culpou o secretismo à volta do assunto para que se tornasse mais grave. Na altura, Alex Rosen disse que, para quem era criança, o risco de doença é maior, pois o legado radioactivo continua.
“Mesmo que a memória das pessoas falhe acerca do que aconteceu em Chernobyl, o legado radioactivo permanece”. O grande problema da radiação é que as pessoas não a conseguem ver, nem cheirar, nem sentir o sabor, nem ouvir, é isso que a torna também tão assustadora.
Sobre se era seguro visitar a zona, respondeu: “autêntico turismo de risco. Se é seguro lá ir? Bom, se olharmos para o que as pessoas lá vão fazer, são conduzidas pelas ruas principais que já foram limpas e aconselhadas a não saírem desse percurso. Nesse sentido, acredito que a maior parte dos tours organizados sejam relativamente seguros. Mas é preciso ter em atenção que, apesar de as ruas estarem limpas, se houver vento que empurre o isótopo radioactivo Césio 137 das florestas à volta, das folhas, ou das ervas, então há o risco de contaminação. Quem parte para essa viagem vai para uma zona perigosa, à qual os ucranianos chamam “zona morta” de Chernobyl. Eu não aconselharia os meus pacientes a irem, principalmente os mais jovens. A radioactividade não funciona instantaneamente. Alguém exposto a uma pequena quantidade pode não adoecer de imediato, mas quanto maior for a exposição, o tempo e a dose, maiores são os riscos. Na minha opinião, ir a Chernobyl em turismo é uma ideia estúpida.
O especialista afirma que foram muitos os afectados pelo desastre de Chernobyl e que milhares de pessoas tiveram de abandonar as suas casas, porque estavam expostas a quantidades enormes de radiação.
“Outras viviam em cidades que não foram evacuadas, como Gomel ou Mogilev, na Bielorrússia. Sabemos que essas pessoas, principalmente as que nessa altura eram crianças ou adolescentes, têm maior risco, não só de sofrerem cancro da tiroide, como cancro da mama, próstata, cólon ou cancro de pele. Também aumenta o risco de doenças cardiovasculares, problemas hormonais, doenças do foro psiquiátrico, cataratas, impotência, no caso dos homens e esterilidade, no caso das mulheres. Tudo isto aparece em proporção à quantidade de radiação recebida. Por exemplo, numa região onde caiu bastante chuva radioactiva em Maio de 1986, é mais provável encontrar todas estas patologias que noutra que tenha recebido menos. É muito difícil associar directamente um caso de cancro a Chernobyl, estas doenças não trazem uma etiqueta de origem, mas podemos basear-nos nas estatísticas”.
Por outro lado, esclareceu que, em relação a bebés, as mutações nos genes causavam más formações ou doenças genéticas como síndrome de down, que aumentou muito em 1987.
“Não aconteceu só na antiga União Soviética, mas também aqui, em Berlim. No ano a seguir ao desastre de Chernobyl, os pacientes com a doença triplicaram. Também cresceu o número de abortos, a mortalidade nos recém-nascidos e nasceram muito menos meninas que meninos (os embriões femininos são mais sensíveis aos efeitos da radiação). Se não olharmos só para a Rússia, Bielorrússia ou Ucrânia mas sim para toda a Europa, podemos perguntar-nos: quantas famílias terão sido afectadas por Chernobyl sem sequer saberem?
O que também não aparece em nenhuma estatística é que muitas mulheres, por medo que os filhos sofressem estes problemas, decidiram interromper a gravidez.
O pediatra teme que não seja, algum dia, possível contabilizar o número de vítimas directas ou indirectas e perceber o alcance do desastre. Explica que os indicadores que poderiam servir para medir os níveis de exposição à radiação nunca foram calculados. Disse que houve um grande secretismo em torno deste assunto. “Houve 800 mil pessoas que ajudaram nas limpezas da radiação, muitos eram militares do exército vermelho (do Uzbequistão, Cazaquistão, Sibéria). Foram enviadas para Chernobyl durante uma semana e depois mandados de volta para casa. Nunca foram medidas, nunca foram avaliadas por um médico. Sobre a saúde dessas pessoas, não sabemos nada”.
Alex Rosen tem dúvidas de que o mundo esteja agora mais consciente do impacto do nuclear, depois dos desastres de Chernobyl e Fukushima, no Japão. “Eu gostava de acreditar que sim”, disse.

 

 

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