Reportagem

Preservar para manter a memória da escola que celebra a irmandade

A chegada da viatura protocolar da Embaixada de Cuba avisava-nos de que a reabertura da Escola Angola e Cuba estava para breve. Já só falta chegar o governador da província de Luanda, a quem cabia a honra do corte da fita da emblemática escola do Cazenga.

07/02/2020  Última atualização 07H00
Paulo Mulaza | Eduções Novembro

A presença de membros da diplomacia cubana não era inocente. Afinal, conta-se que foi uma brigada cubana de construção que ergueu o edifício. Eis a razão da escola chamar-se Angola e Cuba.

A ansiedade das crianças, homens e mulheres que estavam aglomerados no portão principal da escola era aliviada pelo grupo tradicional que cantava e dançava. A moldura humana era considerável, nem todos puderam estar ali no pequeno espaço. Nos extremos da estrada apinhavam-se muitos curiosos. Entre os convidados e “penetras”, estavam ex- professores, alunos e responsáveis. Muitos deles fundadores do estabelecimento, em 1986, data que causa divergências. Dizem que foi a primeira escola a ser construída depois da Independência de Angola.
No meio de um quintalão devidamente pintado e engalanado, um edifício bicolor - uma cor garrida e outra mais suave, para contrastar - exibia uma placa onde podia ler-se Colégio Público Nº 3042. A razão para aquela agitação incomum tinha a ver com a reabertura da mesma, depois de 10 anos encerrada, à espera de reabilitação.
Enfim, chegava Sérgio Luther Rescova, o governador de Luanda, acompanhado da embaixadora de Cuba em Angola, Esther Armenteros. Honras feitas, seguiram-se os discursos. Uma vez mais, nem todos couberam no átrio escolhido para o acto de reabertura.
Como no aproveitar é que está o ganho, conversamos com pessoas que conhecem os pergaminhos que talharam os caminhos da então Escola Angola e Cuba. João Manuel Neto, mais conhe-cido por “Man Gombala”, 64 anos, foi o primeiro guarda da instituição. Segundo contou, decorria o ano de 1982, quando, das mãos dos cubanos, recebeu todas as chaves da escola.
“A escola não tinha guarda. A Administração do Kima Kieza envia-me para aqui como guarda. Como a minha casa fica próxima à escola, fui para lá buscar uma catana. Durante seis meses, trabalhei sozinho com a catana na mão”, numa altura em que ainda não havia aula e todo o terreno à volta era baldio. “Muitas vezes bandidos tentaram entrar para aqui e eu só me defendia com a ca-tana”, conta.
Tempos depois, “Man Gombala” escreveu à delegada municipal da Educa-ção, senhora Futura, solici-
tando reforço, pelo que enviaram à escola dois polícias e duas armas. “Todos os dias eles passavam a noite aqui, comigo”. Esta rotina cumpriu-se por muitos anos, mesmo com a escola já em funcionamento.
Do trabalho que desempenhou, “Man Gombala” gostava do momento da parada, que começava com a chegada dos alunos, às 7 horas da manhã. “Os alunos erguiam a Bandeira, cantavam o Hino Nacional e, em filas, bem disciplinados, eram dirigidos, por mim, para as salas de aula”.
Apesar de ser rigoroso com a segurança e a disciplina, o guarda sublinhou que havia alunos indisciplinados. A estes recaiam várias sanções. Desde a chamada do encarregado de educação, suspensão e expulsão, sendo esta a medida mais gravosa, aplicada, por exemplo, ao aluno que vendesse liamba na escola. O guarda garante que ocorreram casos desta natureza.
“Já apanhei, várias vezes, alunos a vender droga. Nestes casos, chamava-se o encarregado de educação e entregava o aluno à Polícia. Por isso, o aluno era expulso”, porque a sua actuação enqua-
drava-se no rigor e na disciplina também imposta pela direcção da escola liderada por Pedro Maria.
Das façanhas de “Man Gombala”, a maior ocorreu quando uns bandidos tentaram assaltar alguns alunos no fim do turno da tarde. “Um dos alunos que conseguiu escapar alertou-me. Os bandidos, inclusive, encurralaram os miúdos e uma senhora que vinha do mercado Asa Branca com os cigarros que vendia. Como estavam na parte de trás da escola, pulei o muro e coloquei os bandidos. Pedi as armas, mas, como houve resistência, dei um tiro da perna de um e consegui receber uma arma. O outro bandido fugiu...”.
Este acto de heroísmo pôs em risco o seu posto, pois o indivíduo ferido era agente da polícia com dupla actividade. “Quando fui à esquadra avisar que havia um ga-tuno ferido, vieram para cá polícias de farda castanha; eram chamados os policiais do Cunha. O jovem com a perna partida gritou, dizendo que era polícia. Eles ameaçaram-me: 'feriste um polícia, vais ver o que te vai acontecer…”, conta.
Felizmente, os factos foram esclarecidos pelas vítimas dos assaltantes e o guarda permaneceu no trabalho até ver o seu desempenho diário reconhecido, em 1983, por um ministro da Educação, cujo nome já não se recorda. Soube que o mesmo enviou um envelope com um estímulo, em dólares, “mas nunca chegou às minhas mãos”, lamentou.
Ressentimentos à parte, “Man Gombala” mostra sa-tisfação por ter trabalhado nos melhores anos da Es-cola Angola e Cuba e porque ainda pode ver intactas as poucas árvores plantadas por si, com excepção do embondeiro.

Polémica abertura

O primeiro ano lectivo na Escola Angola e Cuba ainda causa polémica entre os ex-docentes e o pessoal administrativo. Luís Leão, o primeiro chefe da Secretaria, de 1986 a 1992, tem para si que o primeiro ano lectivo de facto foi 1987/88. “Em 1986, começamos muito tarde as aulas. Depois, o ano lectivo foi anulado. Arrancámos de facto no ano seguinte”, clarifica.
O ex- professor Francisco Costa quase concorda com o colega. “O primeiro ano lectivo foi em 1987 “Só que foi anulado, pelo facto de as aulas começaram praticamente no terceiro trimestre”. Estima que chegou à escola em 1986. “Tinha 27 anos. Nós é que recebemos as carteiras e arrumámos as salas”, pontualiza o então professor de Língua Portuguesa.
Orlando Lundoloki, que ingressou para os quadros da Escola Angola e Cuba como professor de Química, acredita que a instituição abriu anos antes da data expressa pelos seus ex -colegas. “Entro para aqui, acredito, no ano em que a escola abre, 82/83. Fomos recrutados nas escolas onde estudávamos, porque naquela altura já estávamos a concluir o ensino médio. Como a escola era do III nível, exigia que os professores tivessem estas qualificações. Leccionei as disciplinas de Química, no turno regular, e Biologia, à noite, nas turmas da 7ª e 8ª classes”, explica.

Chaves do sucesso: camaradagem e disciplina

Todos as pessoas que falaram ao Jornal de Angola a respeito da Escola Angola e Cuba fizeram referência à disciplina que imperava na instituição, que, desde a sua abertura até 1991, teve como timoneiro Luís Maria, já falecido. Neste homem todos reconheciam dinamismo, competência e autoridade.
“Lidava com todos, mas impunha disciplina da porta da escola às salas de aula”, assegura Francisco da Costa. Conta que na altura não se registavam vidros partidos, nem paredes escritas. Os alunos entravam para a escola, o mais tardar, às 7h20. Ainda que tivessem borla, sabiam que não podiam abandonar o recinto escolar; permaneciam nas salas até ao fim do turno.”
Leopoldino, ex- aluno, 49 anos, actualmente no dirigismo escolar, também dá boa nota da escola no quesito disciplina. Acredita que o rigor que encontrou na Angola e Cuba ajudou-o a trilhar na carreira virada à docência. É formado em Língua Portuguesa pelo ISCED.
No comboio da disciplina da direcção embarcavam também os professores e todos os funcionários. O bom clima de trabalho e a harmonia entre os docentes, pioneiros do ensino naquela instituição, motivou a criação da Associação dos Ex-Professores da Escola Angola e Cuba. Eles acreditam que a pressão exercida junto de determinados organismos terá resultado na reabilitação da escola. “Sempre dissemos que, se a escola fosse reabilitada, até de borla viríamos dar aulas”, alude Francisco da Costa, também professor de Inglês e director de uma escola pública. Há que aproveitar o voluntariado dos camaradas.

Angola e Cuba na lente de Cabingano Manuel

Diz o ditado que recordar é viver. Cabingano Manuel, referência incontornável do jornalismo televisivo angolano, foi à sua escola, como ainda a considera, para rever todos os lugares que estavam gravados na sua memória. Recordações que armazenou nos anos 90, quando, transferido da escola Óscar Ribas, foi estudar para a Angola e Cuba. Era estudante da 6ª classe. Morava perto da escola, na Rua 4. Estudou mais dois anos lectivos, completou a 8ª classe e deixou a instituição para in-gressar no ensino médio. Era o adeus ao lugar onde viveu momentos marcantes, bons e maus.
Muitos anos se passaram, o miúdo deu lugar ao jovem que agora é um senhor, não só na idade, mas profissionalmente. Embora jornalista feito e premiado, Cabingano, na quarta-feira, 5, queria mesmo rever a sua escola, matar saudades com colegas e professores. Não soubemos se tudo se cumpriu. Mas, tivemos o privilégio de o ver sentado numa carteira nova, de muitas que estavam numa sala de aula. Sentimos que, para ele estar ali, também estava no “pacote” de desejos a cumprir no dia em que a escola era oficialmente reaberta. Deu-nos o seu telemóvel para que o fotografássemos naquele cenário, tal como um aluno. A foto, certamente, mostrará aos seus filhos.
Ainda sentado, o jornalista, que é o rosto do programa da TPA “Na Lente”, confessou que era com emoção que ocupava aquela carteira. “Na altura, não tínhamos carteiras. Fico emocionado, porque o chão é o mesmo. Ainda bem que conseguiram manter este pavimento, porque nos leva de volta àquilo que é a nossa história. Este chão viu-nos crescer do ponto de vista académico”, manifesta.
De volta a uma sala de aula, mesmo não sendo uma das três em que estudou, Cabingano Manuel estava feliz e, sentando-se na carteira, parecia ter conquistado um troféu. É que, na época em que estudou ali, os lugares eram bastante disputados. “Numa sala como esta, eu tinha aulas todos os dias. Tinha de chegar cedo para ocupar a única ou as duas únicas carteiras da sala”, conta.
Neste “madrugar" para pegar as escassas carteiras, o adolescente Cabingano não estava sozinho. Muitos alunos acordavam cedo com o mesmo objectivo. De tal maneira que, às vezes, a alternativa era sentar-se em tubos.
“Existiam aqui, nas nossas salas, uns tubos salientes, não sei bem para que serviam, mas penso que eram para o laboratório. Colocávamos os cadernos em cima e nos sentáva-
mos ao longo do dia… ”. Estes eram os dias em que outros alunos chegavam primeiro que ele e que se atrasava a colega que ape-nas guardava-lhe o lugar quando houvesse prova de inglês. Já havia crianças interesseiras.
A carência de carteiras até podia tornar uns dias mais difíceis que outros. Mas a vontade de estudar e aprender era constante. Como consequência da vivência estudantil, Cabingano guarda boas recordações da escola e do corpo docente.
“Hoje, estar aqui e presenciar um investimento do Estado na recuperação de um património académico, como é a Escola An-gola e Cuba para o Cazenga, é uma satisfação muito grande, porque os meus filhos, primos e sobrinhos vão poder estudar em condições melhores que as que estudei. Têm carteiras, salas de informática, enfim. Isto é muito bom. Eu não apanhei a escola no seu tempo áureo. Cheguei da degradação, da desgraça. Era tempo do ‘caixão vazio’, escrever no quadro com fezes e a turma toda ficar sem aulas, vandalizar tudo e mais alguma coisa. Penso que agora estamos num momento de maior compromisso com a coisa pública e quem está aqui certamente que vai conservar este bem”, perspectiva.

Marcas que ficaram

Do que acredita ao que viveu na Escola Angola e Cuba, Cabingano considera que o que aprendeu foi decisivo para a formação do homem que é hoje do ponto de vista intelectual.
“Tive a oportunidade de reencontrar, ao telefone, um dos professores, que para mim era uma das maiores referências aqui a nível de História. Ensinou-me a gostar de História. Fui para o PUNIV e era sempre o melhor aluno em História. Distingui-me várias vezes por esta razão, porque aqui, na Escola Angola e Cuba, nas condições que nós tínhamos, alguém ensinou-me a gostar de História Universal. Este professor chama-se Edgar. Ele ligou-me no ano passado, muito orgulhoso pela minha trajectória. Por isso, acredito que o ensino desta escola foi decisivo, também, para o processo de construção da minha personalidade, como profissional e em várias áreas da minha vida”, avalia.
De resto, como na vida de qualquer homem nem tudo são rosas, Cabingano também teve que tocar em espinhos. Sentiu dor depois de uma bofetada que o professor de Francês lhe deu. Lembra-se que o professor não teve razão, porquanto apenas se manifestou, porque gostaria de ver clarificada uma dúvida. Mas não foi desta maneira que o docente interpretou. Certamente teve-o como impertinente. Daí a resposta musculada.
“No dia seguinte, vim para cá com o meu irmão para saber a razão da agressão. Encontrámos uma foto sua colada na parede. Tinha morrido. Este foi o episódio menos bom”, descreve Cabingano Manuel, que jamais saberá a razão do tabefe.
Na caminhada, os aspectos negativos convertem-se em meros detalhes, dada a sua ascensão no jornalismo. Que o digam os admiradores que com ele tiraram fotos no quintal da Escola Angola e Cuba. Afinal, para estar no foco da Lente é com Cabingano Manuel.