Cultura

A cooperação militar com Portugal em análise

Durante o mestrado em Estratégia, Vencislau Kussumua escolheu como tema de investigação a cooperação técnico-militar. Do ponto de vista académico, o tema é sugestivo e relevante e insere-se no contexto das políticas e estratégias externas de defesa dos Estados.

24/10/2020  Última atualização 21H41
© Fotografia por: DR
A cooperação técnico-militar entre os Estados tem sido valorizada à luz das dinâmicas de defesa, bem como dos desafios nacionais, regionais e internacionais de segurança.

A cooperação técnico-militar é um assunto de elevada importância e é uma matéria complexa e escorregadia, pois o fim último da cooperação técnico-militar é o fortalecimento do sistema de defesa e segurança de uma unidade política. Quando os sistemas de defesa e segurança possuem as performances exigidas, as sociedades nacionais ganham mais estabilidade e têm condições para crescer e desenvolver-se de forma harmoniosa. Também, pela sua relevância, a cooperação técnico-militar insere-se na perspectiva da articulação das fronteiras da solidariedade e do interesse. Assim, a cooperação técnico-militar proporciona ganhos mútuos aos Estados, que decidem cooperar e levar a cabo projectos e programas no domínio da defesa e segurança. A obra em referência trata da cooperação técnico-militar entre Angola e Portugal, dois Estados membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). A cooperação no domínio da defesa entre os dois Estados é anterior ao nascimento da CPLP e tem vindo a afirmar-se como uma realidade pujante no decurso do tempo. Por essa razão, a cooperação entre os dois Estados pode e deve ser objecto de estudo, quer no interesse do seu fortalecimento, quer na óptica da análise do seu real impacto sobre o sistema de defesa e segurança de Angola, quer na perspectiva de se examinar o papel e os interesses de Portugal no domínio em análise.

Expostas as ideias preliminares, resta aprofundar a análise da obra para entendermos o pensamento do autor partindo da ideia que estudos desta natureza exigem, como regra, uma abordagem crítica com base nas teorias de defesa e segurança e nas linhas de força das políticas e estratégias externas de defesa como partes integrantes das políticas e estratégias externas de Estado. Também esses estudos exigem identificar os aspectos inerentes às diplomacias de defesa dos Estados e os seus fins.

Nesta obra, Vencislau Kussumua estruturou as ideias em conformidade com as exigências académicas e de modo a conferir elasticidade ao conjunto do texto. O trabalho possui cento e oitenta e oito páginas, contando com um prefácio da autoria do Senhor Almirante António da Silva Ribeiro, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Portuguesas. De resto, esta mais alta entidade das Forças Armadas Portuguesas destaca o seu ponto de vista a respeito da cooperação técnico-militar entre os dois Estados, explicando que a cooperação visa contribuir para o reforço da soberania angolana e para a modernização e desenvolvimento das Forças Armadas Angolanas.  No corpo do texto também constam os objectivos do estudo, as questões de investigação, o enquadramento teórico, etc. A arrumação é harmoniosa e é enriquecida pelo facto de o autor explicar o conceito de cooperação técnico-militar e a sua importância no contexto das relações entre os membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa .

A cooperação técnico-militar entre Angola e Portugal tem sido objecto de abordagens e esta é mais uma. Mas nesta obra o autor destaca especificamente a forma como Portugal entende e olha para a cooperação técnico-militar. Ainda assim, o autor explica como Portugal se estruturou para cooperar com Angola e como esse país procura materializar os diferentes programas e projectos em carteira. No fundo, o objectivo central da investigação é perceber a perspectiva e a visão portuguesas sobre a cooperação-técnico militar com o Estado angolano.

Nessa linha de pensamento, o autor alcançou os objectivos da investigação porque expôs ao detalhe os propósitos da cooperação técnico-militar, as linhas estratégicas, as formas de implementação e os seus resultados. Numa palavra, Vencislau Kussumua foi capaz de traduzir para o papel o pensamento português em matéria de cooperação técnico-militar com Angola, mas faltou incluir a visão dos especialistas angolanos conforme fez com a parte portuguesa. Isso teria enriquecido muito mais o trabalho do autor. Aliás, as estratégias e os programas estabelecidos já disponibilizam por si só os objectivos angolanos, mas era essencial incluir as fontes angolanas. Assim, a obra estaria muito mais completa. 

Entretanto, há alguns aspectos que o autor articula nesta obra que carecem de clarificação, visto que os primeiros esforços no sentido de se estabelecer uma cooperação técnico-militar com Portugal foram registados na década de oitenta do século XX, tendo eles produzido bons resultados. Essa realidade tem de ser valorizada em nome da verdade. A cooperação técnico-militar com Portugal ganhou carácter formal com os Acordos de Bicesse e com a questão da formação das Forças Armadas Angolanas. A partir daí, os ganhos começaram a ficar mais evidentes e as partes estreitaram muito mais os laços no domínio da cooperação de defesa.

Mas quando a guerra recomeçou, em 1992, o Comando político-militar angolano introduziu outra visão que estabeleceu a ruptura com o paradigma de organização militar estabelecido em Bicesse. Com o fim da guerra, o Comando político-militar decidiu reformar a organização militar como um todo. Nessas circunstâncias, emerge a ideia da reedificação das Forças Armadas Angolanas, que é, no fundo, uma perspectiva endógena. Apesar disso, mantêm-se em marcha os programas da cooperação técnico-militar com Portugal, produzindo assim bons resultados.

Finalmente, esta obra de Vencislau Kussumua abre as portas para a reflexão contínua das questões de cooperação técnico-militar, mas sem ignorar os ensinamentos da história militar e as teorias de edificação militar.

*Mestre em História Militar, Ph.D. em História e Pós-Doutorado em Estudos Humanos