Opinião

Histórias filosóficas e filosofias da Rússia contemporânea -VII

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Nas décadas de 50 e 60, a chamada escola filosófica e geração dos anos “sessenta”, de que faz parte a filósofa russa, Nelly V. Motroshilova (1934 – 2021), era uma comunidade de intelectuais e filósofos também conhecida como “filhos de Arbat” ou “filhos de Jivago”. Arbat é a zona da cidade de Moscovo onde se situava o Instituto de Filosofia, Literatura e História. "Doutor Jivago” é o nome da personagem que dá título ao romance de Boris Pasternak, o escritor com o Nobel de Literatura. Seguiram-se outras gerações, especialmente aquela à qual pertence uma antiga discípula de Motroshilova. Trata-se da filósofa russa Yulia V. Sineokaya, da geração de 90, cujo perfil permite conhecer a obra realizada pelos mestres e tutores. Prestou um serviço de vulto, ao ter reunido testemunhos geracionais de cinquenta e dois filósofos russos, compreendendo um século de actividade filosófica, num livro com 1229 páginas.

14/07/2024  Última atualização 12H15
© Fotografia por: DR
Sineokaya e as gerações filosóficas russas

Gentilmente, a autora do livro teve o cuidado de enviar-me a versão original de que recolhi a informação aqui partilhada com o leitor. Por essa razão, iniciamos a conversa com uma breve nota sobre a autora do livro que merece atenção, "Philosophical Generations” (Gerações Filosóficas), publicado em 2022. A filósofa russa Yulia Vadimov na Sineokaya, especializada em história da filosofia europeia e russa, fez os estudos de filosofia na Universidade Pública Lomonosov de Moscovo. Após a conclusão da licenciatura, ingressou no Instituto de Filosofia da Academia Russa de Ciências. Obteve o seu doutoramento em 1996. Foi-lhe atribuído o grau de habilitação de Doutor em Ciências, em 2009. Durante a redacção da sua tese de doutoramento, "A Recepção das Ideias de Nietzsche na Rússia na Transição do Século XIX ao Século XX”, defendida no Instituto de Filosofia, da Academia Russa de Ciências, teve a felicidade de ser orientada pela distinta filósofa Nelly Motroshilova.

Em Moscovo, Sineokaya ocupou vários cargos. Foi professora na Academia Russa de Ciências (2015), membro correspondente da Academia Russa de Ciências, desde 2019, chefe do Departamento de História do Ocidente, do Departamento de Filosofia, desde 2016, e Subdirectora de Investigação, também desde 2016. Em 2015, recebeu o título honorário de Professora da Academia Russa de Ciências e em 2019 foi eleita como membro correspondente da academia. Desempenhou os cargos de Directora-adjunta de Investigação do Instituto de Filosofia da Academia Russa de Ciências, até 2023, Chefe do Departamento de História da Filosofia Ocidental do Instituto de Filosofia. Investigadora Principal do Departamento de História da Filosofia Ocidental (desde 1995), professora e Subchefe do Departamento de Filosofia da Universidade Internacional de Moscovo (2006–2016). Os seus domínios de interesse cobrem as seguintes áreas: história da filosofia, cruzamentos do pensamento russo com a filosofia ocidental, problemas teóricos e metodológicos da História da Filosofia, a filosofia de Nietzsche.

Exílio em França

Chegou à França em 2022, quando em gozo de uma licença sabática acompanhava o marido que se encontrava doente, entretanto falecido no mês seguinte. Manteve o seu vínculo laboral, trabalhando em regime virtual, na sua qualidade de Subdirectora e Chefe da Secção de História da Filosofia Ocidental. Definitivamente despedida em 2023, foi afastada do cargo que ocupava no Instituto de Filosofia da Academia Russa de Ciências de Moscovo, tendo fixado residência em Paris. No entanto, decidiu não regressar à Rússia, por não aceitar os fundamentos invocados para o desencadeamento da guerra contra a Ucrânia.

Presentemente, Sineokaya vive exilada em França. A partir dessa data, passou a ser membro associado do Centro de História da Filosofia Moderna da Universidade Sorbonne, do Centro de Investigação Europa-Eurásia do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais, em França e investigadora associada da Northwestern University dos Estados Unidos da América, integrada no projecto de investigação para o Estudo da Filosofia e Pensamento Religioso Russo.

Filosofias da "extrema-direita”

Uma outra razão que pode estar na origem da decisão do exílio de Yulia V. Sineokaya, diz respeito à vaga de violência contra algumas comunidades filosóficas na Rússia, iniciada em 2021, por sectores da que designa "extrema-direita”, após a mal-sucedida e antidemocrática tentativa de substituição do Director do Instituto de Filosofia da Academia Russa de Ciências. As palavras de Sineokaya revelam sintomas preocupantes que se vivem nos meios académicos e das novas gerações de filósofos russos. Numa entrevista realizada em Paris, Sineokaya faz referências a uma "matilha de patriotas”que têm vindo a atacar o Instituto Independente de Filosofia de exilados russos que residem na Europa. Tais ataques da "extrema-direita”, no dizer de Sineokaya, visam legitimar a Escola Superior de Política Ivan Ilyin da Universidade Pública Russa de Humanidades de que Alexander Dugin, "filósofo ultraconservador russo”, foi nomeado como Director.

Portanto, a posição de Yulia V. Sineokaya sobre essas duas figuras do conservadorismo russo, Ivan Ilyin (1883–1954) e Alexander Dugin, pertencentes a gerações filosóficas que se encontram distantes no tempo, explica as razões da defesa perante os referidos ataques dirigidos contra o Instituto Independente de Filosofia, baseado em Paris. Na historiografia filosófica russa, Ivan Ilyin foi um filósofo monárquico, do nacionalismo e conservadorismo de direita, que cultivava alguma admiração por Adolf Hitler. Por sua vez, Alexander Dugin é caracterizado por Sineokaya como "símbolo sinistro da catástrofe que se desenrola no espaço pós-soviético”. Ela considera que na Rússia não existem especialistas que se dedicam ao estudo da sua obra. Os poucos que existem nada representam. Na verdade, a fortuna editorial de Dugin é um fenómeno ocidental, ocorre em cidades como Londres, Nova York e Paris. A este propósito, Sineokaya escreve: "Fora da Rússia é visto como o ‘cérebro’ de Putin, embora não tenha a certeza de que Dugin tenha influência directa no Kremlin. Fora da Rússia, Dugin é conhecido como um orador do tradicionalismo”. Os seus livros constituem um ex-libris da filosofia tradicionalista em ascenção, tal como a define o historiador britânico Mark Sedgwick, no seu livro "O Tradicionalismo. Projecto Radical para Restaurar a Ordem Sagrada”, publicado em 2023. Para todos os efeitos, a articulação das diferentes correntes de pensamento filosófico russo exige uma reflexão sobre os seus sujeitos e a sua história.

No século XX

O referido livro de Yulia V. Sineokaya, "Philosophical Generations” (Gerações Filosóficas), foi publicado, em 2022, sob os auspícios do Instituto de Filosofia da Academia Russa de Ciências, fundada em 1921. Com a sua edição, celebrava-se a institucionalização da investigação filosófica na Rússia e o centenário da instituição de ensino e investigação.

No seu prefácio, Sineokaya clarifica o conceito de geração filosófica, no âmbito do estudo da formação de uma tradição filosófica centenária. Com uma periodização que se estende entre 1920 e 2010, ela identifica seis gerações filosóficas cujos membros ainda desenvolvem actividade filosófica na Rússia de hoje. Para Sineokaya, a "especificidade de uma geração filosófica é determinada pela contribuição existencial para a filosofia das pessoas próximas entre si em termos de experiência de aprendizagem e de integração em instituições filosóficas oficiais e não oficiais, com uma base intelectual comum”.Por outro lado, o critério com o qual sustenta a sua definição, no contexto russo, não se reduz à idade. É determinante, de igual modo, o tipo de problemas e a atitude adoptada, tendo em vista a produção de um pensamento novo. Neste sentido, revelava-se necessário desenvolver o estudo das gerações filosóficas. Donde decorre a possibilidade de conhecer e compreender o "contexto humano do desenvolvimento da filosofia”. Tenho particular simpatia por essa formulação e pelo subjacente critério de selecção. Ora, o elenco dos cinquentas e dois filósofos constitui apenas uma amostra representativa da população de filósofos russos no activo, em pleno século XX e XXI.A leitura de tais depoimentos permite percorrer aquilo a que Sineokaya denomina como sendo "a história da filosofia como a história das gerações filosóficas”.

Quatro gerações

Para a nossa proposta de conversa, seleccionei quatro filósofos e notas biográficas dos respectivos verbetes, de modo a compreendermos a função periodológica da geração filosófica, nesse trabalho realizado por Yulia V. Sineokaya. Não deixa de ter o seu mérito, por se tratar apenas de uma sistemática proposta de depoimentos de filósofas e filósofos que se inscrevem no campo da história da filosofia. Por isso, a hierarquia em que se estruturam as idades sugere a focalização dos sujeitos que intervêm no ensino da filosofia. Os integrantes de gerações anteriores são sempre os professores, mestres e mentores, reproduzindo-se o modelo com a mudança de estatutos, quando o discípulo se torna colega do mestre, posteriormente mestre de gerações seguintes. Sineokaya recorre a duas imagens. Em primeiro lugar, a que sugere a dimensão vertical professor-aluno, que perpassa gerações por completo. Em segundo lugar, a dimensão horizontal que se regista na própria comunidade geracional, entre professores, colegas, por maio da transmissão do conhecimento e da construção de novas formas de pensar e raciocinar de que resulta oportunidades para os jovens trabalharem de forma independente. Do ensino, transita-se para os modelos e linhas de investigação que se concretizam por meio da acção tutorial dos professores, durante a formação pós-graduada e as orientações destinadas à redacção de teses e dissertações, enquanto trabalhos com os quais são criados conhecimentos e paradigmas.

Galina L. Belkina (1930)

Recuperando as memórias da vida filosófica nas décadas de 1940 e 1990, Galina L. Belkina fala sobre os estudos na Faculdade de Filosofia da Universidade Pública de Moscovo, sobre os brilhantes professores que integravam o corpo docente e sobre a vida estudantil. Destaca a cooperação com filósofos alemães. Analisa o campo problemático da filosofia desses anos, a sua expansão, incluindo a filosofia dos problemas globais, a bio-ética, os problemas do novo humanismo, a criação do Instituto do Homem. Refere-se à influência de proeminentes figuras da geração filosófica dos mestres cujo líder foi o académico I. T. Frolov, e uma nova definição de filosofia como "a doutrina do mundo e do homem”. Assinala a importância do XIX Congresso Mundial de Filosofia e dos congressos filosóficos russos, realizados por iniciativa de Ivan. T. Frolov (1929-1999).

Vladislav A. Lektorsky (1939)

Debruça-se sobre a sua geração filosófica. Examina a dramática história de vida e a obra da geração de pessoas que começou a determinar a vida filosófica, a partir do fim da década de 1950. Analisa os resultados da actividade desta geração e fundamenta a tese de que a filosofia russa se desenvolveu sob a sua batuta, ao longo da segunda metade do século XX e que os representantes desta geração produziram um impacto significativo na vida filosófica, durante as duas primeiras décadas do século XXI.

Nelly V. Motroshilova

Com base nas recordações pessoais e no testemunho de contemporâneos, apresenta um retrato generalizado dos intelectuais desse período e reflecte sobre o modo como se comportaram na sua vida filosófica e no domínio da criatividade filosófica. Os filósofos dos anos sessenta são descritos como uma geração filosoficamente unida, partilhando orientações, valores e atitudes, observáveis em tudo o que fizeram. Além de analisar a vida intelectual da Faculdade de Filosofia da Universidade Pública de Moscovo e dos temas centrais desenvolvidos pelos colegas do Instituto de Filosofia, Motroshilova narra aspectos relativosaos processos que distinguiam as comunidades filosóficas não-ortodoxas dos anos sessenta. Dedica especial atenção às relações dos filósofos dos anos sessenta e das figuras culturais da época.

Yulia V. Sineokaya (1969)

Relata processos respeitantes à formação da primeira geração filosófica pós-soviética que ingressou na profissão na viragem para as décadas de 1980 e 1990, analisando a mudança nos pontos de referência científicos e a reestruturação da comunidade filosófica da época. Traçaas linhas de continuidade entre as gerações filosóficas dos anos sessenta e noventa. Assim, é possível articular as linhas de trabalho dos filósofos russos, no contexto sociocultural vivido na época da Perestroika.

Ph.D. em Estudos de Literatura; M.Phil, em Filosofia Geral

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião