Opinião

Histórias filosóficas e filosofias da Rússia Contemporânea -XI

Luís Kandjimbo |*

Escritor

As ideologias da extrema-direita estão agora a fazer furor. Após a Segunda Guerra Mundial nunca estiveram tão activas, atingindo elevados níveis de radicalização da juventude europeia. A vaga de racismo que assolou a Inglaterra é supremacista, fenotípica ou biológica contra emigrantes. Constitui um sinal de perigo. Pode dizer-se que as omissões e inconsistências maniqueístas ocidentais revelam-se, presentemente, como a casca de jinguba que vem à tona. A radicalização dos jovens não é fenómeno exclusivo do islamismo a que se reage com a islamofobia. Donde vem a inspiração dos ideólogos e políticos que radicalizam esses jovens? A origem está nas obras dos filósofos ocidentais que integram o cânone literário e filosófico das escolas e universidades europeias e norte-americanas. Alguns desses filósofos têm discípulos, igualmente, na Rússia. Por essa razão, Nietzsche (1844-1900)e Heidegger (1889-1976)são mestres tutelares de ideólogos das extremas-direitas norte-americanas, europeias e russas. Sendo assim, por que razão o estudo da obra de Heidegger interessa aos filósofos Africanos?

11/08/2024  Última atualização 11H29

Heidegger e a apropriação africana

Sem pretender apresentar uma lista exaustiva de especialistas africanos da filosofia heideggeriana, trazemos aqui apenas dois filósofos, o democrata-congolês Antoine Osongo-Lukadi e o ivoiriense Bourahima Ouattara. Ambos são doutorados em Filosofia, desenvolvem a sua carreira académica em instituições de ensino da Europa e dedicam-se à investigação sobre o pensamento de Heidegger.

Os especialistas africanos realizam uma apropriação do que se propõe na obra do filósofo alemão fundada, em primeiro lugar, na refutação segundo a qual a filosofia não pode ser monopólio de nenhum povo, nem mesmo dos Gregos, a que Heidegger atribui a fonte da sua essência. Osongo-Lukadi faz prova disso no seu livro "Heidegger et l’Afrique. Réception et Paradoxe d’un ‘Dialogue’ Monologique”, 2002, (Heidegger e África. Recepção e Paradoxo de um "Diálogo” Monológico). Trata-se do resultado de cerca de dez anos dedicados ao estudo da possibilidade ou não de "diálogo” intercultural na (ou a partir) da obra de Heidegger em geral e do "diálogo” entre Heidegger e África em particular.

 
Apesar do etnocentrismo

Osongo-Lukadi clarifica o objectivo principal do seu trabalho. Não visa nem "legitimar imediatamente as aberturas culturais na ontologia heideggeriana, nem estabelecer um ‘diálogo’ entre Heidegger e África”. Para tal concorrem duas razões, em seu entender: 1)a obra de Heidegger contém afirmações que não permitem defender tal objectivo; 2)"Heidegger reapropria-se – ainda que implicitamente – das declarações etnocêntricas ou mesmo fundamentalistas de Hegel (1770-1831), Kant (1724-1804), Lévy-Bruhl (1857-1939), entre outros, sobre África”.

No dizer de Osongo-Lukadi, a África é, aos olhos de Heidegger, um deserto de pensamento. Não podendo tal afirmação ser um elogio, por outro lado, semelhante desprezo de Heidegger não parece inibir a reapropriação de certos aspectos do pensamento do filósofo alemão. O filósofo democrata-congolês interroga-se: "Não há evidências de ingenuidade, cobardia ou irresponsabilidade absoluta por parte dos ‘filósofos africanos?’”. Porque razão outros pensadores como Hegel, Kant ou Levy Bruhl, cujo desprezo pelo africano é mais radical, não suscitam a mesma simpatia? Veremos mais adiante o sentido das respostas porfiadas pelos africanos, enquanto alvos dos preconceitos que subjazem na obra de Heidegger.

 
Mentes perigosas

O filósofo político canadiano Richard Beiner, escreveu um livro sobre a influência e o poder das ideias que têm os nomes e as obras de dois filósofos alemães, Nietzsche e Heidegger, especialmente nos círculos universitários e partidos políticos. O título é eloquente: "Dangerous Minds: Nietzsche, Heidegger, and the Return of the Far Right” (Mentes Perigosas. Nietzsche, Heidegger e o Regresso da Extrema-direita), 2018. Portanto, à luz da avaliação de Beiner, Heidegger é uma das mentes perigosas do Ocidente.

 
Heidegger e racismo

Para lá da adesão pura e simples ao pensamento de Martin Heidegger, nos chamados países do Norte Global, discute-se, também, o problema do racialismo na obra do filósofo alemão. Debates intensos têm vindo a ser travados nos últimos vinte anos. Integram o painel vários autores, entre os quais, Emmanuel Faye, Jeffrey Barash, Laurence Paul Hemming, Robert Bernasconi e Sonia Sikka. As conclusões são cada vez mais consistentes. Em 1934, Heidegger proferiu conferências durante as quais afirmou que existem "negros, em particular” e "negros africanos” os quais "não têm história”.

Nas referidas conferências, Heidegger recuperava o pensamento sobre a raça formulado por Hegel, quando este escrevia que África não se inscreve na parte histórica do mundo. A este propósito, Sonia Sikka conclui que "as observações de Heidegger sobre os ‘negros’ são racistas em vários aspectos”. Por sua vez, Robert Bernasconi identifica o ano de 1934 como aquele que assinala o início do  pensar filosoficamente sobre a raça de uma forma concertada.

 
Duguin, o discípulo russo

Tal como referi, Nietzsche e Heidegger são mestres tutelares de ideólogos das extremas-direitas norte-americanas, europeias e russas. No caso da Rússia, o tribuno e mais mediático filósofo da direita radical é Alexander Duguin, até porque atrai as atenções do mercado editorial.  A relação entre a Filosofia russa e a Filosofia Ocidental é abordada por Duguin em dois dos seus livros traduzidos nos países do Norte Global: "Martin Heidegger. The Philosophy of Another Beginning” (Martin Heidegger. A Filosofia do Novo Começo) e  "Martin Heidegger. The Possibility of Russian Philosophy”, (Martin Heidegger. A Possibilidade da Filosofia Russa). Em seguida, proponho a leitura do pensamento corrente de Duguin, através de excertos dos seus próprios textos.

 
Subalternidade da Filosofia russa

Apesar da subalternidade em que coloca a filosofia russa, as razões da recepção que a obra de Duguin merece no Ocidente, traduzem a existência de identidades partilhadas das filosofias conservadoras. Neste sentido, não é gratuita a afirmação de Duguin, quando defende a filosofia de Martin Heidegger, ao defini-la como um momento inevitável do processo de pensamento absoluto, recomendando, por conseguinte, o reconhecimento de Heidegger como ponto de referência a partir do qual se pode medir as diferentes trajectórias. Enuncia-se a partir daí o princípio da possibilidade da Filosofia russa. Alexander Duguin sustenta essa legitimidade. Donde, a necessidade de não se ignorar o facto de, na história russa, a Filosofia ser tardia, além de exigir reanimação. Defende, igualmente, que a Filosofia russa surgiu como reacção à Filosofia europeia na qual encontrou as suas fontes de inspiração, imitando-a, refutando-a e desenvolvendo-a.

 
Caracterização da Filosofia russa

Mais adiante, Duguin resume a caracterização da Filosofia russa: "Mesmo quando os pensadores russos se esforçaram por ser ou foram genuinamente em parte originais, esta mesma originalidade exprimiu-se sob a forma de contraste com a Filosofia do Ocidente, de justaposição precisamente com ela. Quer os pensadores russos imitassem ou rejeitassem a Europa, comparavam-se, precisamente, com ela e tomavam como tese uma ou outra teoria filosófica ou a totalidade das teorias ocidentais, a partir das quais desenvolveram as suas próprias considerações”.

Por isso, conclui: "Esta circunstância obriga-nos a referir os contextos filosóficos europeus correspondentes para compreender a Filosofia russa dos séculos XIX e XX. A possibilidade da Filosofia russa está indissociavelmente ligada à Filosofia realmente existente na Europa Ocidental, que se desenvolve segundo uma lógica autónoma. A actualidade da Filosofia Ocidental foi a potencialidade da Filosofia russa. Esta correlação é fundamental”.

 
Eslavófila ou Ocidental?

Paradoxalmente, Duguin envereda para uma deriva de assumida condição subalterna da Rússia, quando se propõe interpretar as diferentes formas da manifestação dessa condição. Articula uma perspectiva histórico-filosófica e escreve o seguinte: "Por um lado, isto pode significar que a Filosofia russa é um desdobramento da Filosofia da Europa Ocidental, o seu rebento tardio e específico (consequência). Por outro lado, é possível decifrar esta potenciação como uma resposta a um desafio, isto é, como um gesto defensivo forçado, dirigido, principalmente, contra a Filosofia Ocidental (como acontece com os eslavófilos e, em parte, os marxistas russos)”. Por fim convoca Oswald Spengler (1880-1936) e o seu  "pseudomorfismo”, isto é, o "resultado do enxerto heterogéneo e inorgânico (semiviolento-semivoluntário) de uma forma cultural noutra, o que lhe é completamente inapropriado”. E, finalmente, continua Duguin, "tal correlação pode ser vista como uma forma de expansão cultural, uma tentativa do Ocidente de espiritualizar a sociedade russa através da instalação do seu próprio código cultural racional, facilitando a administração do poder real e assegurando o controlo da sociedade ocidental sobre a sociedade. Em todo o caso, a Filosofia russa mantinha uma relação e ainda mantém uma relação com a Filosofia Ocidental, e não há razão para supor que isto não será assim no futuro”.

Numa alusão às indagações de pensadores russos que remontam ao século dezoito, Duguin, deixa no ar a seguinte pergunta: "O que estamos à espera?”. Não hesita em formular a sua resposta: "Arriscarei sugerir que estávamos especificamente à espera disso. Chegámos ao fim para entrar na Filosofia com o nosso poder russo acumulado ao longo dos séculos, mas apenas verdadeiramente e na Filosofia genuína – o tipo que será digno do nosso silencioso e misterioso sonho russo escondido nas profundezas dentro, a filosofia de um outro começo”. O poder russo acumulado ao longo dos séculos traduzir-se-à em filosofia eslavófila ou ocidental? Duguin dá a resposta em outros livros seus.

 
Neo-eurasianismo e neo-conservadorismo

As suas respostas tomam forma para justificar o "neo-eurasianismo”cujos pilares permitem inscrevê-lo nas correntes da Filosofia da direita radical. A partir de 1990, o seu pensamento é acolhido no Ocidente, por força de um discurso que junta doutrinas Filosóficas, religiosas e políticas. Esse ecletismo permitiu que granjeasse admiração em vários países onde prosperam as teorias da revolução conservadora, tais como o tradicionalismo de René Guénon (1886-1951) e Julius Evola (1898-1974) e a Nova Direita Ocidental. No círculo das suas relações encontram-se admiradores e discípulos de Heidegger. Todos eles são importantes líderes de opinião que, em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, integram arautos do arianismo e redes de "supremacia branca”. Por exemplo, Steve Bannon, o estratega neo-conservador cujas ideias sustentaram a ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos da América. Portanto, será interessante saber se o neo-eurasianismo de Alexander Duguin suporta alguma hipótese de diálogo com as teorias da Afro-eurásia. Em última instância, importará compreender os processos de apropriação da obra e do pensamento de Heidegger e determinar a proximidade ou distância das bases em que assentam.

 
Filosofia africana e Afro-eurásia

Em África e nas diásporas africanas, é conhecida a impossibilidade de diálogo declarada pelo próprio Heidegger, ao reduzir o continente africano ao deserto do Saara. Como vimos, são, igualmente, conhecidas as conclusões a que chegaram Robert Bernasconi, Sonia Sikka e outros filósofos sobre o racismo do filósofo alemão. Apesar da resistência e desconfiança que a obra de Heidegger suscita aos filósofos Africanos e das diásporas africanas, Osongo-Lukadi considera que existem quatro correntes filosóficas que se inspiram em Heidegger; 1) Filosofia do ser; 2) Filosofia da linguagem; 3) Filosofia da poesia e da arte; 4) Filosofia hermenêutica. Para Osongo-Lukadi o diálogo torna-se possível por iniciativa dos Africanos. É fecundo. Mas, afirma o filósofo democrata-congolês, como compreender que um filósofo que tenha passado toda a sua vida negando os destinos de África, goze de um interesse com semelhante envergadura? No dizer de Osongo-Lukadi, a resposta reside no facto de Heidegger ter pretendido "reanimar a filosofia nas suas fontes pré-socráticas gregas (…)”. São essas fontes não filosóficas que interessam aos Africanos, igualmente, na medida em que se pretende "edificar uma Filosofia africana a partir de elementos da discursividade africana: provérbios, contos, narrativas, epopeias, mitos, etc.”

 
Conclusão

O conceito de Afro-eurásia volta a revelar a sua vocação operatória para se compreender as bases em que se fundam as estratégias de apropriação da obra de Heidegger e as convergências possíveis entre o afro-eurasianismo e o eurasianismo. Será necessário avaliar as implicações da impossibilidade de diálogo declarada pelo próprio Heidegger, ao reduzir o continente africano ao deserto do Saara. Ao mesmo tempo, devem ser tidas em conta as conclusões a que chegam os filósofos que exploram as raízes do racismo na obra do filósofo alemão.  Não sendo adequado confundir as actuais correntes eurasiáticas com o pensamento filosófico russo, afigura-se útil operar com a subjacente ideia de uma prudente e ponderada perspectiva, quando se analisam os fundamentos filosóficos das relações que os Estados-membros da União Africana e a Rússia estabelecem entre si, bem como as relações inscritas no âmbito dos BRICS, da China, India, Coreia, Japão, Turquia e África, ou ainda de todos os restantes Estados da Ásia e Médio Oriente.Decorrem daí conceitos geopolíticos, quer de afro-eurasianismo e neo-eurasianismo. Alexander Duguin tematiza o potencial desses conceitos em dois dos seus livros, "Last War of the World-Island. The Geopolitics of Contemporary Russia”, 2015, (A Última Guerra da Ilha Mundo. Geopolítica da Rússia Contemporânea” e "Eurasian Mission. An Introduction To Neo-Eurasianism”, 2014, (Missão Eurasiática. Introdução ao Neo-eurasianismo). Fica reservado o tópico da nossa próxima conversa. Num breve olhar, passaremos em revista esses dois livros de Alexander Duguin. Por exemplo, o que quererá dizer Duguin, quando escreve: "A libertação da herança pós-colonial de África só é possível através da integração numa única civilização estratégica que seja amiga do mundo árabe e orientada para uma Europa unida, que será a líder da zona meridiana euro-africana. Especial atenção deve ser dada a Israel, que desempenha um papel importante como agente atlantista na região. Precisamos de elaborar um novo modelo para pôr termo ao conflito israelo-árabe e propor uma fórmula positiva para a sua participação na construção desta zona”.

 

Ph.D. em Estudos de Literatura; M.Phil, em Filosofia Geral

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