Entrevista

Horácio Dá Mesquita: “O meu portfólio é o futuro”

Analtino Santos

Jornalista

Horácio Dá Mesquita é um homem que respira arte. Depois de três anos longe do país, de regresso à sua amada Angola, o Jornal de Angola encontrou Dá Mesquita no seu novo projecto de trabalho artístico, uma unidade de cerâmica no Miramar. “Montei uma unidade de cerâmica para a produção de material de construção e hotelaria. Em apenas um mês construí um forno com capacidade para trezentos mosaicos, atingindo a temperatura de 1200º, um moinho de martelos de alta velocidade com a capacidade de produzir 500 quilos de pó de argila em vinte minutos, um torno manual para peças personalizadas e um torno para a produção de peças em série”, explicou na entrevista que a seguir se publica

18/06/2023  Última atualização 08H37
© Fotografia por: Luis Damião | Edições Novembro

Os concertos musicais e as artes plásticas eram os palcos de actuação de Horácio Dá Mesquita.
Agora aposta forte num projecto de cerâmica.
Fale-nos desta aventura...

Montei esta unidade de cerâmica para a produção de material de construção e hotelaria. Em apenas um mês construí um forno com capacidade para trezentos mosaicos, atingindo a temperatura de 1200º, um moinho de martelos de alta velocidade com a capacidade de produzir 500 quilos de pó de argila em vinte minutos, um torno manual para peças personalizadas e um torno para a produção de peças em série. Tudo com materiais locais. A construção deste equipamento foi acompanhada por jovens,  tendo como objectivo principal a sua formação profissional, principalmente sobre os princípios da termodinâmica. A matéria prima é retirada de vários assentamentos geológicos, as argilas vermelhas na Barra do Dande e Cabiri e os caulinos na Huíla e Kikabo.


Parece que está muito preocupado com a formação...

Sim. A formação e a transmissão de conhecimento é o maior objectivo.Estou permanentemente virado para o futuro, numa constante luta pela nossa Independência. O passado de luta já foi esclarecido, apesar de um indivíduo frustrado, auto intitulado mestre de estratégia, com uma ausência total de humildade, desferir-me insultos um mês depois da última efeméride da nossa Independência, exibindo uma patente de tenente-general, mas que nunca combateu e não foi protagonista nos combates pela Independência, querendo arrastar-me para o seu lodaçal. Não pretendo regressar ao passado. Foi um acordo que fiz com o general França Ndalu, nunca mais abordar esta questão histórica de que fomos protagonistas. Combatemos juntos, trocamos de armas e podíamos ter tombado juntos.

O futuro é o meu portfólio, esta unidade e outras que pretendo montar, com o objectivo de recuperar a nossa estabilidade económica e independência face às importações. Também o processamento do vidro está previsto, com a transformação e reciclagem para tijolos de vidro com padrões do nosso acervo cultural.

 
Mas a música não está abandonada. O que tem feito?

Não é novidade que tenho um projecto em curso com o Jorge Mulumba. Passa pela construção e resgate dos nossos instrumentos musicais ancestrais. Este vector da nossa identidade cultural é da maior importância, contribuindo para a elevação patriótica e para a nossa economia e para o turismo, com a produção destes instrumentos musicais.

Tenho realizado performances com o Nguami Maka, com resultados para além da nossa expectativa. Participei nas homenagens ao Mestre Kituxi, no Festival Balumuka e na Praça do Semba. Em breve, regresso à minha colaboração com Os Kiezos. Enquanto estive em Portugal, colaborei com os Jovens do Hungu, Betinho Feijó e outros músicos que andam por lá.


Fale da relação que teve com Liceu Vieira Dias?

Após a sua libertação, Liceu Vieira Dias, ainda na administração colonial, nos anos 70, foi morar para junto da minha bisavó Adelaide, numas casas para funcionários do Estado, junto ao cinema Império, à Vila Alice. Eu era muito amigo da Zizi, filha de Liceu. A minha bisavó sabendo da minha paixão pela música disse-me que o Liceu Vieira Dias estava em casa. Fui esperar a Zizi ao Liceu Feminino e ela levou-me até ao pai. Logo na entrada estava um piano vertical acústico, em cima tinha alguns LP’s, tanto de música latina como de Beethoven e de Chopin. Estabelecemos uma ligação muito forte de amizade. Ele tinha acabado de comprar um órgão Yamaha na Aliança Comercial e por vezes cedia-me o instrumento para tocar com grupos. Numa dessas ocasiões, apareceu um contrato para o Clube Atlético de Luanda. Todos tinham instrumentos no palco menos eu. Pedi ao organizador para nos deslocarmos a casa do Liceu, ele perguntou-me se era o Vieira Dias e confirmei. Chegados a casa, o senhor ficou a conversar com Liceu enquanto eu arrumava o órgão no carro.

À noite, durante a festa, reparo que o Carlitos Vieira Dias estava lá. Nunca tinha tido um contacto próximo com ele, conhecia-o de tocar com os Negoleiros. Aproximei-me e disse-lhe que o órgão que estava no palco era do pai. Ele já sabia.

No intervalo, começam a entrar os elementos do Ngola Ritmos, sobem ao palco e executam vários temas. Nunca mais tocaram, que eu saiba. A partir dali, eu e o Carlitos estabelecemos uma ligação de irmãos, até à presente data.

 
A pesquisa é outra faceta de Dá Mesquita. O que os angolanos podem esperar?

Tenho dois livros. Um sobre o Ngolo a Basula, a Kabasula de Angola, e outro sobre a manufactura dos instrumentos sonoros de Angola.  O trabalho sobre a Kabasula tem como princípio a origem humana e o seu desenvolvimento até aos dias de hoje. Com 95 ilustrações, retrata a apetência do Homo Sapiens para a violência desde a sua origem, o seu desenvolvimento, a expansão pelo globo, as migrações e a diversidade cultural.

 
Apresenta novas perspectivas?

Coloco sempre em causa as fontes produzidas por personalidades recrutadas pelas autoridades coloniais em detrimento dos intelectuais nativos, excepto um ou outro caso, como o exemplo de Óscar Ribas. Isto também é notório na adulteração da História de Angola, com incidência nas campanhas militares produzidas em livro por indivíduos que não participaram nas acções combativas, produzindo lixo e querendo impôr como dado acabado.

 

O que traz o livro sobre a manufactura dos instrumentos sonoros de Angola?

Trata da construção detalhada de 50 exemplares com as dimensões, materiais e utilização, com 200 ilustrações e cerca de 300 páginas. Alguns destes instrumentos já foram produzidos. Tenho executado o acordeon diatónico, que já foi muito utilizado em todo o território nacional. Era vendido nas mercearias junto das Ngaêtas. É um instrumento com mais de dois mil anos, com origem na China. Inicialmente teve a denominação de Cheng. Com a sua extinção no nosso país, resultado do desaparecimento físico do Mestre Geraldo, Firmino, Fançoni, Minguito e outros, decidi resgatar este icónico instrumento e dar continuidade para a futura geração.


Atelier de cerâmica artesanal

O Atelier de Cerâmica Artesanal é uma parceria entre Horácio Dá Mesquita e o escritório de arquitectura e de gestão cultural Do Lado B. Localizado no coração do Bairro Miramar, em Luanda, o Atelier de Cerâmica Artesanal Do Lado B é um espaço dedicado à expressão artística e à promoção da cerâmica artesanal.

Neste momento, a artista moçambicana Carina Capitine está a realizar uma residência artística sob a direcção artística de Horácio Dá Mesquita, que resultou de uma colaboração da Do Lado B com a Ners Foundation. A artista tem a liberdade de explorar novas técnicas, experimentar materiais e colaborar com outros artistas presentes no atelier. O objectivo é promover a troca de conhecimento e o crescimento artístico num ambiente inspirador.

 

Exposição "O Kwanza”

Em Julho de 2017, o artista plástico Horácio Dá Mesquita expôs  "O Kwanza” no Museu da Moeda, em Luanda. Estiveram expostas peças em cerêmica em diversas técnicas de fabricação e com distintos elementos decorativos geométricos e figurativos.


Percurso artístico

O mestre Horácio Dá Mesquita, reconhecido internacionalmente pelas suas contribuições à cerâmica artesanal, é um pesquisador e defensor da cultura angolana. É considerado por muitos um artista de mil ofícios, pois tem participado em projectos de música, dança e artes plásticas, com trabalhos na filatelia (selos), numismática (moedas) e olaria.

O artista, que em 2017 foi agraciado com o  Prémio Nacional de Cultura e Artes pelo conjunto da sua obra, tem desenvolvido a sua actividade artística há mais de 40 anos, com bastante brio, argúcia e perícia. As suas actividades plásticas se complementam nos domínios do desenho e pintura, cerâmica e filatelia. A sua influência tem contribuído qualitativamente como estímulo às novas gerações de artistas e para o desenvolvimento do sector. Tem colaborado com vários artistas e é membro da direcção dos Novatos da Ilha, assim como colabora com os Kiezos.

Horácio Dá Mesquita nasceu na província de Benguela em 1953. Frequentou a escola Bordalo Pinheiro - Cerâmica, em Portugal, tendo estagiado na fábrica de cerâmica SECLA, especializando-se em cerâmica industrial e tecnologias termodinâmicas. Em 1980, na Academia de Artes Poto-Poto, de Brazzaville capital da República do Congo, troca conhecimentos estéticos da cultura Bantu. De regresso a Angola dedica-se à actividade de cerâmica, para além de ilustrações de selos para os Correios de Angola, cartões de recargas telefónicas e notas/moedas para o Banco Nacional de Angola. Actualmente é consultor do Banco Nacional de Angola (BNA).

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