Reportagem

Lobito: a cidade dos pescadores que começou com casas de pau-a-pique e folhas de palmeira

Conta-se que o Lobito ainda era apenas uma língua de areia deserta, varrida por ventos e ondas de calema, quando uns poucos pescadores vindos do Egito Praia, Catumbela e da comuna do Kikombo, no Cuanza-Sul, construíram algumas dezenas de cabanas de folhas de palmeira e pau-a-pique na base do morro do Kileva.

02/09/2023  Última atualização 13H40
© Fotografia por: m. machangongo | EDIÇÕES NOVEMBRO

Estas edificações rudimentares são consideradas as primeiras casas do Lobito. Assim, esta zona passou a ser considerada como a mais antiga área habitada e passou a designar-se o Lobito Velho.

Em seguida foi construído o primeiro posto aduaneiro e, em 1955, as autoridades coloniais edificaram o maior estaleiro naval metalomecânico, baptizado com o nome de Sorefame, hoje Lobinave. A instalação funciona a meio gás devido ao estado obsoleto dos equipamentos, fazendo apenas a reabilitação de barcos de pesca.

 A antiga Sorefame já fabricou barcos de grande porte que serviram a marinha mercante angolana e navegaram pelo mundo, como recorda Joi Manuel Augusto, um morador antigo da zona.

Logo ao lado, separado por um muro, está a fábrica de barcos de madeira de pequeno e médio porte. São as duas indústrias que deram algum destaque ao Lobito Velho, zona ribeirinha cuja comunidade tem a pesca como actividade principal e responsável por gerar empregos diretos e indiretos, fornecer peixe e mariscos.

Actualmente, a comunidade reside em casas modestas feitas de adobe, próprias para pescadores. O local enfrenta alguns problemas estruturais. As ruelas estão cheias de buracos de difícil mobilidade para veículos com ou sem motor. As águas paradas, o lixo, restos de peixe são o maior "cartão postal" da zona.

"Aqui no bairro, se chover, é um Deus que nos acuda. Para a gente sair tem que enrolar a calça, botar no joelho e andar a cambalear. Se a pé já é complicado, trafegar pela rua de moto não é uma opção", lamentou a anciã Maria Tchitombe.

Situação preocupante diz respeito ao lixo. Os resíduos ficam espalhados pela rua, já que os moradores não têm contentores para colocar os dejectos. Por conta disso, cachorros, ratos e gatos circulam pela área em busca de restos de alimentos, num claro atentado à saúde pública. "Está à vista de todos”, lamentou Maria Tchitombe, acrescentando que os moradores temem pela saúde dos filhos, até porque o bairro não tem um posto de saúde público.

A anciã lamenta também a falta de uma escola primária pública. Os filhos, para estudarem, têm de se deslocar para outros bairros, acrescentou.

 "Quase que nunca vimos o administrador municipal. Das poucas vezes que esteve cá foi para manter contacto com a associação de pescadores, próximo da praia, mas esqueceu o resto, como se o pessoal de cá não existisse", lamenta.

A comunidade do bairro quer maior envolvimento da Administração Municipal na melhoria dos serviços de recolha de lixo, abertura de valas e terraplenagem.

 Desafios e perigos da pesca

Histórias de pescadores até parecem mentira, mas revelam dificuldades reais da profissão. Relatos sobre os desafios e perigos do trabalho realizado no alto-mar são emocionantes.

Joi Manuel Augusto afirma que ser pescador implica correr riscos, devido aos temporais e calemas. Mesmo assim, todos os dias avançam nas suas embarcações - a maior parte das quais sem equipamentos de navegação e de segurança -, para lançar as redes ao mar, na esperança de sempre trazer peixe.

O nosso entrevistado conta que a partida depende muito da equipa. Alguns fazem-no às primeiras horas da manhã e outros ao fim da tarde. "Não existe um critério definido para a saída”, sublinhou.

"Outros saem às 9 horas e vão para um local já estabelecido para puxarem a rede lançada ao mar no dia anterior, com o peixe capturado. Com sorte, podem trazer uma boa garoupa, o pargo, mas às vezes voltam sem nada”, afirma Joi Augusto.

Questionado sobre a pesca noturna, Joi Augusto revelou que agora são poucos os pescadores que se fazem ao mar no período da noite. "Eles ficam sem pregar o olho durante a noite toda”, frisou.

Após regressarem do mar, os pescadores fazem as vendas na presença do proprietário da embarcação, a quem posteriormente entregam o dinheiro arrecadado. Só ao sábado é que têm direito ao pagamento, em função das receitas arrecadas. Depois, cada um segue o seu caminho, na certeza do reencontro, noutro dia para mais uma empreitada no vasto oceano.

Durante o período em que estão em terra, reparam as redes quando estão esburacadas ou preparam a isca e as linhas, se efectuam a pesca com anzóis.

Festas do mar

A 29 de Junho, Dia Mundial do Pescador ou dia de São Pedro, para os cristãos católicos, mais de 50 embarcações estiveram presentes nas festividades, promovidas pela associação local.

Ainda assim, o soba Silva Miranda, um ex-jogador de futebol que só não foi para Portugal jogar porque os pais pensaram que haveriam de perder o filho para sempre, diz que já se foram os tempos em que as comunidades piscatórias locais participavam nesses eventos com maior envolvimento e entusiasmo. Naquele tempo participavam várias gerações de familiares dos antigos pescadores que deram vida e alma à praia na sua relação com o mar. "Era bonito ver barcos a competir por toda extensão da Baía do Lobito”, recorda com nostalgia.

O soba acrescenta que o valioso património humano e cultural do bairro do Lobito está a ser esquecido. "Havia festas para a expressão da sua identidade, a que se entregavam, com devoção e determinação, homens e mulheres que suportavam e carregavam aos ombros a vida do mar”, lamentou.

O soba conta ainda que o maior prazer deles era a paixão pelo clube de futebol do coração, o Beira Mar e o grupo carnavalesco Tchiganje. "Nas últimas décadas, normalmente, motivado por interesses comerciais o resto ficou ultrapassado, hoje não temos danças tradicionais”, disse.

 Há vários espaços baldios que a comunidade conserva para a prática de futebol entre bairros. O Jornal de Angola apurou, no local, que alguém, com o título de investidor, tentou vedar um desses espaços, mas foi barrado pelos populares. Se for para construir uma escola ou posto médico, existe unanimidade em ceder.

Afinal quem é o Camutangre?

Joi Manuel Augusto revelou, que o cognome Camutangre ou Kamutangre surgiu nos primórdios da fundação do Lobito Velho, gente com um grau de inteligência, raparigas e rapazes que eram nadadores por excelência e faziam a travessia da Baía do Lobito.

"O nadador se movimenta com o abdómen voltado para a água, a acção das pernas se faz em movimentos curtos e alternados, no plano vertical à superfície. O movimento dos braços também é alternado, de tal forma que um começa puxar a água imediatamente antes que o outro termine de fazê-lo. Era assim que os filhos deste bairro se desdobravam”, explicou o veterano.

 Como eram chamados os pescadores que naquela época pescavam artesanalmente peixes de grande peso e vendiam aos tripulantes dos navios.

Acrescentou que os primeiros moradores do bairro da Canata foram formados por famílias que se deslocaram do Lobito Velho, daí que a alcunha teve o seu sucesso e ficou marca para aquela paragem urbana, que passou a receber embarcadiços de várias nacionalidades que aportavam o porto do Lobito; havia homens habilidosos em lutas, muitos sem estudar línguas eram poliglotas, o que lhes permitia estarem à vontade junto dos marinheiros estrangeiros.

 O que caracterizava os Kamutangres da Canata era o facto de serem possuidores de desenvoltura e conhecimentos da sabedoria popular.

A desenvoltura cultural de muitos filhos do bairro deu lugar ao sentimento nacionalista de procurar construir a identidade de um povo, despertando nos indivíduos a ideia de pertença por meio de diversos elementos como o idioma, as tradições, a religião, a etnia, a história e demais factores que formam a cultura de um povo.

Residiram na Canata as famílias Valentim, Lourenço, Chipenhe, Tadeu e Graciano, que exerceram um forte papel na luta clandestina contra os colonialistas portugueses. Canata é um bairro famoso, que gerou grandes pessoas. Um bairro com história importante na evolução do Lobito.

  Ser pescador para não se tornar delinquente

Bernardo Kaquepa, 20 anos, dedicava-se, anteriormente, a empurrar as chatas para a areia. Agora tem experiência, adquirida por ter seguido o caminho dos seus antepassados. "Para não me tornar num delinquente, optei por ser pescador. Não é fácil. Às vezes temos que meter um "trágu” (consumir bebida alcoólica) para ganhar coragem para ir ao mar. Tem de se inspirar, isto é, beber um kaporroto ou Katula binza”, disse.

Apontou casos de irresponsabilidade de alguns dos seus colegas, quando partem para o mar sem equipamentos de navegação e salvamento.

Peixeiras

As peixeiras são mulheres empreendedoras. A maioria delas levanta-se entre as 4 e 5 horas da manhã para se dirigirem à praia do Lobito Velho, o cesto à cabeça, carrinhos de mão vulgo Kangulo ou de Kaleluya, motorizada de três rodas, para a compra do peixe. Algumas já têm acordos com os proprietários das embarcações, sendo elas que se encarregam da recepção do pescado e fazem a revenda a outros colegas ou pessoas interessadas.

Percorrem várias artérias da cidade com cestos ou banheiras à cabeça e entoam o seu pregão "peixe, peixe, peixe, olha peixeira, olha peixeira, olha peixeira”, que faz com que as donas de casa cheguem até aos portões para comprar.

Há épocas em que comercializam todo o produto em poucas horas e, se necessário, voltam a encher os cestos. Mas também existem aqueles dias em que vendem pouco, sendo obrigadas a levar o restante para a casa, onde o salgam.

Com os filhos às costas, expostas ao sol, chuva ou frio, não abandonam a profissão, que garante o seu sustento.

Ordem nas vendas

O administrador municipal do Lobito, Evaristo Calopa Mário, iniciou um trabalho para pôr fim à venda em passeios, rotundas, terrenos desocupados e demais espaços impróprios para comercialização no casco urbano mas, também, disciplinar a venda nos mercados informais.

Foi criada uma equipa da Administração que trabalha permanentemente na sensibilização, proibição e desactivação da venda em locais proibidos.

O administrador tem efectuado visitas a esses locais. Recentemente esteve na zona do Africano durante mais de duas horas, tendo percorrido todo o perímetro, conversando com alguns feirantes e recomendando o cumprimento das orientações para a desactivação dos focos de venda em locais impróprios.

Enquanto decorrem as obras de construção dos mercados do Tchapanguele e do Compão, que vão acolher os feirantes e utentes, a Administração do Lobito criou condições mínimas para o funcionamento do mercado no quintalão do grupo Soares da Costa, cedido para este fim, na recém-inaugurada avenida Sócrates Dáskalos.

Movidos pelo imediatismo e até mesmo por más influências, alguns feirantes insistem em permanecer nos passeios e outros pontos que, para além de constituir perigo aos transeuntes, devido ao risco de atropelamento, configura igualmente uma transgressão administrativa, desvirtua a sã convivência urbana e compromete o saneamento da cidade, ao deixar um rasto de lixo.

Para pôr cobro a tal situação, a administração municipal garante responsabilizar alguns mentores e motivadores desta prática e compulsivamente impedir toda e qualquer permanência nestes locais. Ao mesmo tempo apela ao bom senso e colaboração das "guerreiras e guerreiros” que buscam nas vendas diárias o seu ganha pão.

Zona alta volta a ter água

Com uma extensão territorial de aproximadamente 2.850 km 2, o município do Lobito tem pouco mais de meio milhão de habitantes e a maior parte da sua população reside na zona alta da cidade, que esteve privada de água corrente.

 O projecto de reforço do abastecimento de água à zona alta da cidade ferro portuária, começou a dar os primeiros sinais. A água já jorra em regime experimental.

A população durante muitos anos teve de fazer recurso aos reservatórios gastando muito dinheiro para adquirir o precioso líquido.

Os trabalhos incidiram na ampliação do sistema de captação no campo de furos do Tchiulo, a construção de novas estações elevatórias e a implantação de uma conduta de 400mm que leva água da zona baixa aos reservatórios na parte alta do município.

Já em funcionamento, o sistema abastece as 3.000 residências na centralidade do Lobito e os bairros da Zâmbia, Cambembwa, Alto Liro, vila chinesa, 27 de Março, Congo e outros, os moradores manifestaram satisfeitos.

 A cidade conhece obras de requalificação e de benfeitoria que permite melhor qualidade de mobilidade dos munícipes, evidente que nem tudo está resolvido e que a população terá de consentir por algum tempo mais sacrifícios, disse o munícipe Rufino Kambua.

"Os dias de hoje não se comparam a dos tempos já idos, está cada vez melhor. E pelos indicadores, as melhorias serão bem mais acentuadas, nos próximos tempos”, frisou.

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