Reportagem

Missão Católica da Mupa quer reactivar internato masculino e oficinas de artes e ofícios

Domingos Calucipa | Ondjiva

Jornalista

Na província do Cunene, enquanto vigorou o regime colonial português, a educação e o ensino dos nativos foram sempre confiados à igreja, particularmente às Missões Católicas e Evangélicas, tal como sucedeu em muitas outras regiões do país.

26/08/2023  Última atualização 15H30
© Fotografia por: Domingos Calucipa | edições novembro


Entre as várias instituições religiosas, que para além da evangelização e moralização da sociedade se afirmaram na formação escolar dos angolanos, destaca-se a Missão Católica da Mupa, no município do Cuvelai, fundada a 23 de Julho de 1923.

   Ao lado desta estão igualmente as Missões de Omupanda, Okanautoni, Okafima, Môngua, Chiulo, Xangongo, Namacunde e várias outras.

 Mas é a Missão Católica da Mupa que foi o principal viveiro do saber na província do Cunene, quando o ensino era ainda negado aos filhos dos nativos, durante o regime colonial.

  Ao assinalar 100 anos de existência, em Julho último, a Missão orgulha-se por ter dado oportunidade de escolarização a muitos nativos, boa parte dos quais estão, até hoje, a dar o seu contributo nas mais distintas áreas do saber na província e não só.

  Fundada pelo padre Delvis, um missionário de nacionalidade francesa, a Missão Católica da Mupa não escapou das atrocidades da guerra civil e da invasão das tropas sul-africanas do apartheid, que saquearam o cartório e destruíram boa parte das infra-estruturas.

 Espaço de formação multidisciplinar

 A instituição foi sempre tida como um verdadeiro espaço de formação multidisciplinar do homem, abraçando três eixos fundamentais, nomeadamente a igreja, que se ocupa do culto divino, ensino do evangelho e administração dos sacramentos, em segundo plano a escola para a formação integral do homem e por último o posto médico para a assistência física da pessoa humana, de acordo com o bispo da Diocese de Ondjiva, Dom Pio Hipunhati.

   Para o prelado, estas três vertentes andaram sempre juntas e serviram os fiéis e comunidades de localidades dos municípios do Cuvelai e do Cuanhama.

 D. Pio Hipunhati assinalou que depois do surgimento da Missão, a Mupa registou um crescimento em pouco tempo, tornando-se num centro de evangelização, de difusão da fé e da cultura, de formação em artes e ofícios, onde saíram muitos técnicos e quadros que, ainda hoje, são notáveis em diversos sectores.

   Fez notar que o espaço foi um centro de treinamento do homem para a vida. Havia uma cerâmica que produzia tijolos, blocos e telhas que ergueram diversas infra-estruturas da igreja e várias moradias da localidade.

   Hoje, dos edifícios dos internatos feminino e masculino, das oficinas de artes e ofícios, da cerâmica, da residência dos padres e

outros espaços de apoio só restaram escombros, depois que sofreu com a máquina destrutiva da invasão sul-africana, em 1981, tendo permanecido encerrada até 2007.

Memórias do lar da Missão

Lázaro Nhukwete, antigo aluno interno, lembra, com nostalgia, a sua passagem pelo Internato da Missão da Mupa. "É uma Missão que me viu nascer e crescer, a quem devo o meu presente”, conta.

 Disse ter entrado acidentalmente para o Lar em 1958, com 12 anos, sem o mínimo domínio da língua portuguesa, vindo da localidade de Okamedi como um menino pastor. Conta que ali começou a aprender o ABC escolar e daí não mais parou.

  Para Lázaro Nhukwete, ir parar no Internato não foi um interesse próprio, nem dos pais, mas para se esconder, devido a uma falha cometida na casa do tio, que o cuidava. "Fui parar no Lar porque tinha deixado perder um bovino do tio, marido da minha tia com quem vivia, porque eu era órfão de pai. O tio ficou muito zangado por perder esse boi. E então a minha tia enviou-me para o Lar da Missão para me esconder e ao mesmo tempo estudar”, revela, para quem a perda do animal foi um mal que veio para o bem.

   No Internato, Lázaro Nhukwete estudou até á 4ª classe e aprendeu ao mesmo tempo carpintaria e mecânica e, depois, na qualidade de aluno com distinção, foi seleccionado para prosseguir os estudos no Magistério do Cuima, no Huambo, para a formação de professores. Naquela época, quem pretendesse continuar os estudos para além da 4ª classe tinha que se deslocar à Huila, Huambo ou Luanda, onde havia liceus.

Recuperação tímida da instituição

Reerguida parcialmente dos escombros nos últimos anos, a Missão Católica da Mupa tenta timidamente retomar a sua actividade tradicional, alicerçada na formação integral do homem, ajudando os aldeões da região, que ainda clamam por serviços sociais básicos.

   Segundo o pároco da Missão, padre Bernabé Alfredo Ndavavedu, com uma capacidade anterior de mais de 200 alunos, a instituição religiosa alberga hoje apenas 68 alunos internos, com idades entre 9 e 20 anos, 31 dos quais do sexo feminino. O reduzido número de internados está relacionado com a insuficiência de infra-estruturas condignas e a falta de meios de sustentabilidade, impedindo assim o resgate da mística do passado.

  Informou que a Missão tem planos de reactivação do internato masculino, das oficinas de carpintaria, serralharia, mecânica, electricidade e outros ofícios, bem como os campos irrigados de produção, aproveitando as águas do rio Cuvelai para produzir alimentos próprios. Essas iniciativas ainda não foram materializadas por falta de apoios.

   A ideia, acrescentou, é proporcionar ensino e aprendizagens múltiplas aos jovens das comunidades locais, que deve passar pela reconstrução do internato, com capacidade para mais de 100 alunos, e a reabilitação das oficinas.

  Falta de meios de transporte

Situada a mais de 120 quilómetros da cidade de Ondjiva, a Missão da Mupa debate-se ainda com a falta de meios de transporte para ajudar nas deslocações às comunidades, no âmbito das suas actividades pastorais e sociais. "Temos tido muitas solicitações de famílias que pretendem colocar os seus filhos aqui para aproveitarem a formação académica e religiosa, mas não temos meios e condições para os acolher. Força e vontade para isso não nos falta”, sublinhou.

   A Missão conta com uma escola de seis salas, com aulas até à 9ª classe e um centro de saúde com capacidade para oito camas, comparticipados pelo governo, que estão a servir as populações das localidades próximas.

Aposta na produção

A instituição está, de um tempo para cá, a ensaiar o cultivo de hortícolas num pequeno campo irrigado através de uma motobomba.

Contudo, a iniciativa também precisa de um financiamento para ampliar a produção.

  O apoio passaria pela construção de um tanque elevador num ponto mais alto e a compra de tubos e mangueiras para distribuir a água no campo.

  A trabalhar ainda num espaço de aproximadamente meio hectar, já se colhe a cebola, tomate, couve e alface, que têm ajudado na dieta dos alunos que estudam em regime de internato, um trabalho que tem à testa a madre superiora Lavinia.

  A Missão está a apostar igualmente na criação de animais de pequeno porte, além de possuir uma lavra onde produz diversos cereais.

O regresso da cruz carregada por um combatente sul-africano

No calor da invasão sul-africana e na passagem pela Missão da Mupa de um grupo das forças invasoras saído do município do Cuvelai para Ondjiva, um combatente sul-africano entendeu levar a cruz da Missão, de cerca de 40 centímetros, um símbolo do cristianismo, enquanto outros retiraram diversos bens.

   Terminado o conflito armado, conta o bispo da Diocese de Ondjiva, esse combatente revelou à sua família o desejo de um dia regressar a Angola para devolver a cruz que havia levado.

   Mas o desejo não se concretizou porque a morte chegou mais cedo. Mas a mulher e os filhos encarregaram-se de trazer de volta a cruz à Missão da Mupa, em 2018, conforme a vontade do ex-combatente sul-africano. "Entretanto, antes de perder a vida disse à mulher e duas filhas que se um dia morresse, a família fosse devolver a cruz havia saído. E assim aconteceu”, recorda o bispo.

Disse que a referida família veio, fazia parte de uma delegação de mais de cem pessoas, chefiadas por um oficial general.

No ano seguinte, outro integrante das forças sul-africanas também trouxe de volta uma cruz com nomes de dezenas de combatentes cravados, tombados depois de accionarem uma mina ao saírem da Missão da Mupa, onde haviam saqueado vários bens.

    O bispo fez saber que esse mesmo elemento tinha pedido, na altura, que se rezasse sempre por esses militares tombados. "Naquela caravana, muitos perderam a vida ao accionarem uma mina. Então os sobreviventes trouxeram a cruz com os nomes de todos esses militares. Foi uma espécie de sentimento de culpa pelos males que fizeram cá”, considerou D. Pio Hipunhati.

 

Surgimento da Missão

Cognominada também Missão Mártir entre a sociedade local, antes de se estabelecer no actual local, em Julho de 1923, a Missão da Mupa viveu cerca de quatro décadas em movimentações e vicissitudes, por conta da rejeição dos nativos, no caso, o povo kwanhama.

   Segundo o bispo da Diocese de Ondjiva, D. Pio Hipunhati, a história da Missão começa no ano de 1883, com uma capela em Kauva, arredores da cidade de Ondjiva, pelo missionário italiano Carlos di Parquer.

  Passados dois anos, o sacerdote e outros missionários foram assassinados pelos nativos, depois que morreu o seu soberano, o rei Namadi, por doença. Não acreditando nas causas da morte do rei, os nativos acusaram os missionários de estarem por detrás do desaparecimento físico de Namadi.

 "Daí, eles foram atacar a Missão, mataram e incendiaram tudo que lá existia”, revela D. Pio Hipunhati, que admite que, no fundo, não estava muito em causa a morte do rei, mas a presença dos missionários no seu território que muito os incomodava. Conta que aquela foi uma ocasião para se desfazerem dos missionários. Mas passado algum tempo, isto em 1900, surgiu um outro missionário, o padre Ernesto le Conde, que transferiu a Missão para Omatadiva, povoação de Anhanga, a 35 quilómetros de Ondjiva. Devido à escassez de água na localidade, tiveram que se movimentar para mais distante.

  Em 1904 fundaram a Missão em Ongodjoka, na localidade de Oupiakadi, que funcionou até 1912. Segundo o bispo, era uma Missão florescente, com um internato. Mas, mais uma vez, as autoridades da época, os reis do Kwanhama e do Evale, na desconfiança, deduziram que essa Missão lhes traria ocupação portuguesa e foram destruí-la de imediato.

    Os missionários que ali estavam, os padres Devis e Geniel, tiveram que se movimentar com os cristãos até Onakaeke, perto da sede da comuna da Mupa, em 1912. Quando começaram as chuvas, deram-se conta de que estavam no caminho das águas. Assim, em 1913 mudaram para o morro da sede comunal. Era no período da Primeira Guerra Mundial, com seca terrível no Sul de Angola, então essas contrariedades tornaram a vida impossível.

  Daí, desceram a montanha e passaram a fazer a vida no rio Cuvelai, junto à sede da comuna, pescando e recolhendo frutos com a população de fiéis arrastada de Okauva, Omatadiva, Opiakadi, Onakaeke e Omunda (montanha).

   Em 1916 dividiram-se em dois grupos, um foi para a Missão do Sendje, no Cuchi (Cuando-Cubango) com o padre Devis, e outro para a Missão do Cuando, no Huambo, com o padre Geniel. O grupo que foi para o Huambo foi de vez, onde o líder acabou por falecer.

  Já o padre Devis regressou a Mupa, sete anos depois, devido à falta de entendimento entre os fiéis que o acompanhavam, que eram kwanhamas, e os nativos do Cuchi, que são ganguela. Fixou-se então na Mupa e fundou a Missão local, a 23 de Julho de 1923, próximo do rio Cuvelai.

Da Missão da Mupa nasceram as Missões de Omupanda, em 1928 e de Okafima, em 1957, nos extremos Leste e Sul da província.

 

O papel dos internatos

De acordo com o bispo da Diocese de Ondjiva, os internatos e as escolas das Missões jogaram um papel determinante na formação académica da população local durante a vigência do regime colonial. Afirma que a sua existência continua a revelar-se, hoje, como uma necessidade, já que esses estão presentes em muitos lugares onde a escola pública não se faz sentir.

   "Os internatos constituem um serviço muito importante no nosso contexto, uma vez que conseguem albergar alunos vindos de aldeias das profundezas, onde não há escolas e sem familiares nos centros urbanos”, argumentou. Sublinha que foi graças a esses internatos que muitos quadros conseguiram se formar.

   Para o prelado, é importante retomar a tradição dos internatos. Lembra que a província do Cunene conta com os internatos das Missões da Mupa, Omupanda, Okanautoni, Omilunga, Kafima, Curoca, Chiulo, Xangongo, Namacunde e outros, que hoje já não têm condições de acolher alunos, clamando por obras de reabilitação profunda, o que não está a acontecer por falta de verbas.

Os poucos a funcionarem estão a acolher um número muito reduzido de alunos. "Por falta de parentes nas cidades, muitas crianças e jovens acabam por ficar sem estudar ou andam dezenas de quilómetros, diariamente, para chegar  à escola mais próxima, o que desencoraja. Essa situação podia ser resolvida com internatos para os acolher”, assinalou D. Pio Hipunhati.

 Referiu, como exemplo, que em Okanautoni, no município de Ombadja, os alunos saem de Damekelo e Onepolo, a 20 quilómetros, todos os dias para a escola, o que torna difícil a assimilação devido ao cansaço resultante das longas caminhadas.

  Primeiras escolas no Cunene

Segundo o historiador Pedro Tongeni, na era colonial, altura em que as escolas só funcionavam nos povoados onde existia população branca, nas sedes comunais e municipais, o surgimento das Missões foi a maior salvação dos autóctones, que pareciam estar condenados ao analfabetismo.

   Afirmou que foram as Missões que começaram a criar o sistema de educação e ensino, porque achavam que era necessário desenvolver o homem em todos os aspectos, não só na evangelização, mas também se precisava de indivíduos que pudessem ler e escrever, para a interpretação do Evangelho e da Bíblia.

 Contou que somente por volta de 1962, com o início do processo de luta armada para a Independência Nacional, o regime colonial português, não só foi pressionado pela comunidade internacional para a necessidade da descolonização do continente, mas também se viu obrigado a criar um sistema de educação nos territórios que ocupava na altura.

   E quando o regime colonial implantou o sistema de ensino geral aproveitou as pessoas formadas pelas Missões que já tinham a 4ª classe e formou-as em seminários intensivos, que depois passaram à categoria de monitores escolares e distribuídos pelas aldeias para poder fundar os postos escolares.

   Segundo Pedro Tongeni, as Missões já preparavam os catequistas para todas as funções, isto é, como professores e enfermeiros ao mesmo tempo, para que pudessem dar assistência às populações, não só no domínio da evangelização como também na saúde e na educação.

  "E o colono então aproveitou essas pessoas, preparou-as para poderem ser professores com a categoria de monitores escolares. Esses, por sua vez, preparavam as crianças até à 2ª classe. Depois eram enviadas para as Missões a fim de darem continuidade aos estudos. Terminada a 4ª classe, tinham que ir dar continuidades dos estudos no liceu do Lubango ou do Huambo”, concluiu o historiador.

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