Opinião

Neoliberalismo, Internet e redes sociais

João Melo*

Jornalista e Escritor

A Internet, que no início era apenas um aplicativo militar, passou a partir do início do presente milénio, quando começou a ter um generalizado uso civil, a ser considerada e apresentada como uma espécie de alfa e ómega da liberdade e da democracia.

18/09/2024  Última atualização 10H00

Apesar de hoje, ser claro que ela também pode servir para atacar e minar a democracia, a começar pelos diferentes usos que os aparatos securitários e militares de todos os países, sem excepção, fazem dela, continua a haver ingénuos, em todo o mundo, que a consideram, além de impoluta e virginal, um meio determinante para a liberdade universal. São os "libertários”.

Antes de caracterizá-los, recordo que há muito tempo defendo que o liberalismo (que, sendo de origem ocidental, se universalizou e globalizou), quando entende que os seus interesses de classe estão em risco, não hesita em aliar-se ao fascismo. Alguns amigos pensaram que eu estava a referir-me ao liberalismo político ou ao pensamento democrático em geral. Tive de explicar a alguns deles que o meu alvo são os liberais económicos, em especial os neoliberais radicais, que tendem a controlar as políticas económicas globais e nacionais nos últimos quarenta anos; a História demonstra, desde o golpe de Pinochet no Chile, que tais forças, quando os seus interesses são questionados, não hesitam em abandonar a democracia e o liberalismo político, para se aliarem às forças da extrema direita, em todo o mundo.

Os neoliberais não gostam de ouvir falar em justiça social, em solidariedade, em direitos dos trabalhadores, em sindicatos; democracia, para eles, é apenas a existência de direitos políticos e, se alguém defender que os direitos económicos e sociais também têm de integrar essa realidade, é imediatamente apelidado de "comunista” e, se preciso for, a própria democracia política é cancelada, recorrendo-se para tal a todos os meios necessários, violentos ou suaves (o recente caso da França, onde a aliança de esquerda anti-fascista e anti-neoliberal ganhou, mas não levou, pode ser considerado soft).

Acontece que o "comunismo” está morto e enterrado, se é que alguma vez existiu. O capitalismo é o único modo de produção existente. Hoje, a verdadeira luta, no plano nacional de cada país, é entre capitalismo produtivista e com justiça social (ao menos alguma) e capitalismo financista, rentista, predador, baseado na obsessão pelo lucro infinito e estruturalmente egoísta; isso é assim independentemente de cada país ser ou não democrático do ponto de vista político. No plano geopolítico, a luta não é entre democracias e ditaduras, como a máquina de propaganda do Ocidente insiste, mas por domínio económico global.

O facto é que, em todo o lado, as estratégias económicas (e não só, mas também políticas, sociais, culturais e ideológicas, como o mito da meritocracia, a falácia do empreendedorismo, a fragmentação das lutas sociais e o wokismo) do neoliberalismo estão a criar uma situação em que as classes trabalhadoras (entre as quais incluo a própria classe média ou pelo menos parte dela, que viva fundamentalmente do rendimento do seu trabalho) estão cada vez mais afetadas e sem saber o que fazer. A esquerda, aturdida pelo fracasso do "socialismo real” e contaminada pela armadilha das novas agendas ideológico-culturais made in USA, mostra-se incapaz de entender o que se passa e, sobretudo, de mobilizar as referidas classes as quais, por conseguinte, tendem a assumir a retórica culpabilizante dos mais desfavorecidos espalhada pelo neoliberalismo, a acreditar em discursos polarizadores, xenófobos e anti-imigração, a enveredar pelo ultraconservadorismo religioso, entre outras consequências.

Esses discursos são disseminados cada vez mais crescentemente pela Internet e pelas redes sociais. Se, em países autocráticos, esses meios têm servido e servem, sem dúvida, para lutar pela democracia (entendida, ao menos, como um regime de direitos políticos, o que para mim é insuficiente), nos países democráticos os mesmos estão a servir para a atacar. Porquê? A resposta é só uma: os interesses neoliberais precisam de eliminar as eventuais resistências às suas políticas predadoras, quer interna quer externamente. Acrescente-se a essa observação a nota de que as grandes empresas de tecnologias de comunicação, as chamadas big techs, são hoje uma componente fundamental do neoliberalismo global, a começar pelos EUA.

Como escreveu no passado domingo, 15, John Naughton, no The Guardian, "os EUA transformaram-se numa super-potência cronicamente polarizada, que está subjugada aos interesses corporativos, governada por uma constituição disfuncional e antiquada e determinada a impor bobagens libertárias ao resto do mundo”. Acrescentou ele: - "E se alguém duvidasse que a tecnologia representava uma ameaça existencial à democracia liberal, então a insurreição de 6 de janeiro em Washington DC deveria ter resolvido a questão”.

Não resolveu. Ainda há por aí muitos "libertários”, que consideram uma heresia a regulamentação da Internet (o que, note-se, a União Europeia já está a fazer) das redes sociais e sobretudo das grandes corporações que operam essa tecnologia, acreditando em qualquer "novidade” ou "notícia”, sobretudo se veiculada por algum bobo ou algum espertalhão enfatuado. É preciso dizê-lo: a Internet e as redes sociais são um instrumento, logo, são instrumentalizáveis; por isso, o seu uso depende de quem as detiver.   

 

*Escritor e jornalista

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