Entrevista

“Nunca me senti incomodada por cantar em Umbundu, é a língua dos meus ancestrais!”

Pereira Santana

Jornalista

Quem é Edna Mateia? Esta pergunta abre as portas para uma história repleta de talento, dedicação e paixão pela música e pela cultura angolana. Nascida na província do Huambo, Edna Chinofila Canguende Mateia Carvalho Portela, ou simplesmente “Edna Mateia”, é uma figura multifacetada: mãe de três filhos, empreendedora, locutora de rádio e, principalmente, uma cantora que se tem destacado pela sua bela e potente voz.

11/08/2024  Última atualização 08H47
© Fotografia por: DR

Desde cedo envolvida no mundo musical por meio de corais na igreja, a artista encontrou a sua verdadeira vocação e foi moldada por influências familiares e experiências de vida que a inspiraram a compor músicas que reflectem a sua identidade cultural, especialmente na sua língua materna, o Umbundu. O seu percurso inclui vitórias emocionantes, como o prémio de melhor intérprete no concurso "Vozes Femininas”, e a realização de projectos que visam levar a sua mensagem a um público mais amplo. Com um portfólio crescente de músicas, incluindo a célebre "Para Ti Mulher”, Edna Mateia continua a emocionar e unir pessoas por meio da sua arte, enquanto busca novos desafios e sonhos, sempre com gratidão e amor pela música que a define.

Quem é a Edna Mateia?

Edna Chinofila Canguende Mateia Carvalho Portela, natural da província do Huambo, casada, mãe de três filhos, cantora, empreendedora e locutora de rádio.

 
Locutora de rádio, uma curiosidade. Em que rádios já "emprestou” a sua voz?

Enquanto locutora, emprestei a minha voz à TPA, publicidade da TPA Mobile TPA, projecto viajar Angola. Na Rádio Nacional, Huambo, programa Rádio Jovem, em directo, com duração de duas horas. Criei um programa denominado Doce Viagem que foi transmitido na Rádio Ecclesia Huambo durante um ano.

 
Quando e como entrou para o mundo da música?

A música entra na minha vida desde muito cedo. Começo na igreja (IECA), na altura não sabia exactamente o que estava a fazer, era simplesmente um instante de interacção, porém, à medida que fui crescendo e passando por vários grupos corais dentro da igreja, ao mesmo tempo fui tomando consciência e me apaixonando.

 
Quem foi a sua principal motivação?

As coisas sempre aconteceram de forma natural.Porém, posso considerar o acto de a minha mãe inserir-me no grupo coral infantil, na IECA- Igreja congregacional em Angola, na Missão Académico, fez toda a diferença.

 
Quando subiu pela primeira vez a um palco e qual foi a música que cantou?

Subi num palco pela primeira vez em 2006, quando participei num concurso denominado Vozes Femininas, realizado pela direcção provincial da Família e Promoção da Mulher. Cantei a música Amor de Mãe e sagrei-me vencedora. Foi mágico!

 
Quantas músicas e discos tem gravados?

Até ao momento, tenho seis músicas gravadas e disponíveis. Entretanto, estou a trabalhar em tantas outras que farão parte de dois projectos discográficos. Um de músicas comerciais e outro com músicas de raiz, completamente cantadas em Umbundu.
Discos, não tenho. Estou a trabalhar em projectos para que este objectivo seja realizado. Tenho encontrado alguma dificuldade, uma vez que a música de qualidade não é barata, e na maior parte das vezes trabalho com fundos próprios.

 
Quando diz que a música de qualidade não é barata a que se refere?

Refiro-me a custos com a produção. Uma boa música acústica envolve muita gente. Desde os instrumentistas, coristas, sem dizer que nem todos os estúdios têm condições aceitáveis para captação vocal, o que nos leva a pagar um outro estúdio para o efeito. Sem falar da masterização que na sua maioria é feita fora do país. Tudo isso fica muito mais complicado para quem vive "nas demais 17 províncias”...(risos)

Qual é o seu maior sonho, artisticamente falando?

O meu maior sonho é atingir o maior número de ouvintes, concretizando assim o meu objectivo que é abraçar as pessoas com a minha voz e mensagens.


O Umbundu é a sua língua materna, que é muito presente nas suas canções. Alguma vez se sentiu incomodada por isso, uma vez que os jovens artistas exploram muito pouco as línguas nacionais?

Nunca me senti incomodada, nem nada parecido. Umbundu é a minha identidade, é a língua dos meus ancestrais. Sempre me identifiquei com as canções e os provérbios.No meio de outros artistas, sempre fez diferença e com que me sentisse especial.

 
Não acha que a sua voz na música "Para ti Mulher” já abraça muita gente? Não tenho receio em afirmar que é a música que mais toca nas rádios do país, no mês de Março!

De facto, a música "Para ti Mulher” tem-me permitido estar perto de muitas famílias a nível do país, porém, sinto que preciso cantar esta música para mulheres de outras paragens.

 
A música "Para ti mulher” é um grande sucesso. Qual foi a inspiração para compor esta música?

"Para ti Mulher” foi escrita pelo meu irmão poeta Van-Kembe. Ele tem um caderno onde vai deixando pensamentos, e um dia fui ver este caderno. Logo que li o poema identifiquei-me com a mensagem. Tudo porque também passei por muitas das situações que a música retrata. Fui mãe muito cedo e senti que precisava de partilhar a mensagem com outras mulheres do universo.
Era um poema e transformamos em música, substituindo algumas palavras, inserido outras, e tive a responsabilidade de dar vida àquelas palavras, criando a melodia.
Simplesmente senti e flutuei. Posso afirmar que a minha história foi a minha inspiração para cantar com tanta alma.

 
Pode falar-nos sobre o seu processo criativo? Como compõe as músicas?

O meu processo criativo foi passando por várias fases. No início da carreira era eu quem fazia tudo. Tinha ideia e aí avançava logo para a música e muitas vezes para o estúdio (risos). Mas com o passar do tempo, fui ganhando consciência da responsabilidade de abrir a boca para cantar para as pessoas. Hoje, trabalho com duas pessoas para escrever as letras em função dos temas que quero abordar, sempre com a minha participação e a seguir fico com a responsabilidade de dar vida às palavras. Interiorizar e colocar as minhas digitais, fazendo o poema virar música. Sou responsável pelas melodias das minhas músicas. Findo este processo, trabalho com o meu guitarrista para confirmar as minhas ideias no instrumento e só depois partimos para um estúdio de gravação.

 
Qual foi o maior desafio que  enfrentou na sua carreira?

Na música, enfrentamos desafios todos os dias. Alguns fáceis e outros difíceis de solucionar. Mas são batalhas diárias.

 
E qual foi o momento mais significativo?

Têm sido vários, porém vou destacar alguns: vencer o Variante nacional de 2014, ser a convidada especial para a cerimónia de recepção das nossas Campeãs Africanas de Andebol em tempo de pandemia… e recentemente vivi a mesma situação com os Palancas Negras no CAN. Os palcos e famílias onde a música "Para ti Mulher” me coloca, em particular o jantar de Gala do Prémio Mulher de Mérito, na presença da Primeira Dama da República. E agora o convite para ser membro do júri do Unitel Estrelas ao Palco, nos castings do Huambo.

 
Como avalia a música e os músicos na província do Huambo?

O movimento musical no Huambo tem vida e pernas para andar. Temos mais diversidade, com as condições possíveis, temos mais estúdios de produção musical e cada vez mais jovens interessados na nossa identidade cultural. Temos dificuldades com eventos, ultimamente existem mais festas do que propriamente espetáculos músico-culturais.
Quem vive "nas demais 17 províncias” irá concordar que uma das maiores dificuldades é, de facto, termos que ir para Luanda aparecer num canal de televisão. Não é barato... Existem custos com deslocação, estada, alimentação e por aí vai. Custos estes que não estão ao alcance de todos. Razão pela qual temos artistas com música a fazer sucesso e pouca gente sabe quem é.
Pode-se levantar aqui a questão das redes sociais para divulgação da imagem. E surgem várias questões: quantas pessoas têm acesso à internet no país? Será que o meu público-alvo está na internet?...
Outro aspecto, tal como em todo o país, há um trabalho que deve ser feito no que ao imediatismo diz respeito. A vontade de bater, de fazer o que o mercado e o produtor de evento querem, leva bons talentos a se descuidarem da qualidade. Aspectos como letras, preparação vocal, produção musical cuidada, etc., muitas vezes não são tidos em conta.

 
Quem são os seus artistas favoritos?

Aprendi a ouvir todos. Com alguns aprendo como se faz e com outros aprendo como não devo fazer. A minha estrela favorita chama-se Michael Jackson. Aquela forma doce, leve e intensa de cantar tem sido uma verdadeira base para as minhas interpretações.
Porém, existem aqueles que não faltam na minha playlist: Juan Luis Guerra, Lokua Kanza, Justino Handanga, Stromae, Cesária Évora, Yola Semedo, Pérola, Yuri da Cunha, Prodígio. E por aí vai.

 
Como lida com a pressão e as críticas do público e dos media?

Até ao momento não tive nada que fosse tão forte, tem sido tranquilo. A minha carreira deixou de ser um projecto meu, passou a ser um projecto de família, em quecada um faz a sua parte e está sempre aí para servir de alarme em relação à minha conduta e a mostrar como devo proceder no caso de alguma coisa correr mal.

Enquanto artista, quais são os seus objectivos?

Internacionalizar a minha carreira, levando principalmente a música de raiz.

 
O que diria para os jovens que querem seguir uma carreira na música?

Em primeiro lugar, saber o que realmente querem ser. Músico ou famoso? Assim que definirem isso, precisam seleccionar o seu grupo alvo. Esta medida facilita-los-á posicionarem-se. Desde o que cantar, que palavras utilizar, o que defender, como se apresentar e muito mais. Poderá alguém perguntar: trabalhar para um público alvo não limita? E a minha resposta é simples. Ninguém no mundo segue uma pessoa desorganizada, com ideias indefinidas.
É importante também ter uma base emocional sólida por intermédio da família. E se é cristão tal como eu, pedir sempre auxílio ao Criador.

 
Como a sua família e os amigos apoiam a sua carreira musical?

A partir do momento em que a minha carreira deixou de ser um projecto meu e passou a ser um projecto de família, cada um assume um papel. Desde o cuidado com a minha saúde, com a minha casa e filhos quando preciso de me ausentar, a composição das músicas, a minha segurança… E o principal, o meu marido... Ele, sim, é a Edna Mateia. Eu sou apenas uma representação.
Tenho um grupo de pessoas disponíveis para embarcar comigo para qualquer missão. A destacar o Castelo Ekuikui, o Van-Kembe, o Atanagildo Paulo, o Hermenegildo Filipe, o Estêvão Ngundia (Vany Musik), entre outros.

 
Existe alguma causa social ou projecto comunitário com o qual se identifica ou apoia?

Tenho apoiado, sim, vários projectos sociais na província. Durante muito tempo fui madrinha do Lar El Betel. No Centro Okutiuka, tinha o compromisso de fazer parte do grupo carnavalesco, ou cantando a música da apresentação ou desfilando.
Hoje, não estou ligada a nenhuma instituição, porém, tenho muitos filhos na cidade, alguns meninos da praça das Cacilhas, outros que têm família, porém com dificuldades. E vou dando o suporte na compra de material escolar, facilitar o tratamento de documentos para os que não têm. Muitas vezes, em caso de doenças, ajudando com medicamentos.

 
Como se mantém conectada com os seus fãs?

Mantendo as minhas contas de redes sociais actualizadas. Sempre que possível, respondo ou reajo aos comentários. Uma vez ou outra faço, entrevistas em rádios e canais de televisão, e, quando tenho a oportunidade de estar com eles em actividades, procuro ter aquele momento de fotografias, beijos e abraços.

Parceria com Hander Dube

Nas suas apresentações, Edna Mateia tem alguém inseparável, o guitarrista Jeremias Handa Bonifácio, de nome artístico Hander Dube. A parceria dura há uma década: "Já deixou de ser parceiro musical, passou a ser um irmão mais novo”, assim descreve a cantora.
Edna reconhece o "super talento” de Hander Dube, uma figura presente no auxílio à produção das suas músicas. Reconhece, igualmente, o carácter do guitarrista pela paciência que tem consigo, pois, como ela mesma assume, "não sou uma pessoa fácil (risos), sobretudo nas apresentações ao vivo”, onde o guitarrista tem sido o seu chip.
Por tudo quanto já trilharam, Edna Mateia não esconde a sua gratidão: "Sou grata por partilhar comigo o seu talento” agradece a artista que, sem dúvida, neste momento é a "Diva do Huambo”.


"Justino Handanga era o meu orientador”

No seu perfil numa rede social, há vídeos e fotos de momentos seus com o falecido músico Justino Handanga. O que ele representou para si?

Justino Handanga foi e continuará a ser para mim a referência da música da Região Sul do país e a estrela que brilhou pelo mundo sem precisar de se deslocar. Para falar da minha relação com ele, precisaríamos de uma página. Era o meu orientador, amigo de comer pirão com as mãos, pessoa que me dava bafo sempre que fosse necessário e aplaudia quando estivesse certa. Fez parte de vários momentos bons e maus da minha vida e vice-versa... Tinha sempre uma piada para contar, não importava o momento (risos).
Conhecemo-nos por intermédio da música, criamos laços fortes de amizade, e mais tarde fiquei a saber que havia também laços familiares.
A ferida é nova, ainda dói... Mas precisamos de prosseguir.


Perfil

Nome
Edna Chinofila Canguende Mateia Carvalho Portela

Pai
Alfeu Mateia

Mãe
Margarida Ernesto

 Data de Nascimento
10 de Dezembrode 1984

Estado Civil
Casada há 15 anos

Filhos
Três (dois meninos e uma menina)

Comida preferida
Pirão com qualquer verdura, peixe seco ou chouriço assado, ovo estrelado e sumate (salada picada). Obs.: comer com os mãos, sentada no chão (risos)

Bebida preferida
Kissângua de Mbundi

Um sonho
Levar a minha arte pelo mundo a fora

Um amigo(a)
Meu marido

Uma cidade angolana
Huambo

 Uma música
"Ndumbalu” de Justino Handanga

Um músico
Michael Jackson

Um lugar turístico em Angola
CV Lodje  (Baía-Farta, Benguela)

O que gostaria que as pessoas soubessem sobre si que talvez não saibam
Que sou Ministra da Cultura do Reino do Bailundo. Juntando-me assim aos demais 37 Ministros da Corte, com a responsabilidade exclusiva de trazer os nossos hábitos e costumes para esta geração, por intermédio da música.

 O que gosta de fazer nos tempos livres, além de cantar

Quando se é mãe, quase que não temos tempos livres. No pouco tempo que sobra, estamos com os filhos (risos). Gosto de estar com a família, aproveitar para reforçar laços, gosto de ver filmes e séries, gosto de trabalhar na terra, tenho plantas e uma horta em casa, e enquanto empreendedora, faço arranjos florais para comercializar no estabelecimento. Mas quando há mesmo tempo, este fica para o chefe (o marido).

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