Sociedade

O cérebro na orientação humana e dos modelos sociais e políticos

Altino Matos

A construção das sociedades exige que se tenha “o cérebro no centro de tudo”, isto é, desde o desenho das políticas públicas à sua aplicação, a forma como percebemos as coisas, como as processamos, e, sobretudo, como actuamos e consolidamos as interligações humanas

28/04/2024  Última atualização 07H53
© Fotografia por: DR

O cérebro tem acima de 80 mil milhões de neurónios, cada um conecta-se com mais de 10 milhões de células (neurónios), agindo como microprocessadores que abrem um painel de janelas com milhões de dados, cuja combinação produz a informação solicitada em tempo "celestial”, com repetições e em várias direcções numa perfeição extraordinária que oferece ao ser humano acesso à máquina mais bem acabada do universo.

O neurocientista Estanislau Dehaene (BBV, Aprendemos Juntos 2030, 12.26.24) partilha que estudar o cérebro é das coisas mais fantásticas e, à medida que se avança, mergulha-se num mundo com uma paisagem única, indescritível, misteriosa mas inspiradora, de onde não mais se quer sair. As técnicas de estudo (Dehaene) evoluíram bastante, de tal sorte que foi possível penetrar no seu mundo, em tempo real. Técnicas como dissecação e visualização indirecta continuam no protocolo de estudo, mas para fins específicos, pois a evolução no segmento da imagiologia permite acompanhar a actividade cerebral sem intermediação.

Assim, é possível verificar como o cérebro disponibiliza a energia e o sangue armazenados de cada vez que recebe um comando, com uma clareza em que a dinâmica deixa visível cada ponto de luz em acção. Tudo acontece numa naturalidade e num grau de complexidade acentuado, formando uma teia de conexões de células-mãe que estabelecem ligações com outras células-mãe, a fim de forjar uma articulação composta de milhões de neurónios de uma só vez, que actuam em conjunto para processar respostas perfeitas e ordenar o pensamento.

O estudo do cérebro é tão importante como o do espaço sideral, da lua e do sol, das estrelas e da cadeia planetária. Se estes conjuntos de aproximações nos oferecem meios de nos revestirmos de tecidos sintéticos, energia incontida e limpa, e anima a busca incessante por caminhos que nos levam à descoberta de quem somos e donde viemos, o domínio do cérebro, que se deseja um dia seja total, a primeira possibilidade que nos dá é a percepção de quem somos.

O neurocientista Dehaene é de opinião que o cérebro pode nos levar a caminhos tão precisos à nossa vida, ao ponto de sermos capazes de visualizar coisas e as compreendermos como nunca. Esta capacidade deu um salto qualitativo nos últimos anos, graças ao recurso à imagiologia que consolidou o foco da apreciação do ponto de luz cuja dinâmica mostra exactamente o que está a acontecer e a região cerebral em actividade.

Apesar de o cérebro ter capacidade elástica e flexível de se adaptar às adversidades, definiu, por si mesmo, áreas específicas para as actividades, nomeadamente córtex motor, lobo frontal, córtex auditivo, córtex somatossensorial, parietal, occipital. Do ponto de vista existencial, estas regiões dispostas em dois hemisférios, esquerdo e direito que são responsáveis pela actividade primária cerebral ligada aos movimentos, comportamento-motor, sensação. As funções cognitivas contidas neste contexto resultam da interactividade externa e interna. Isto é das coisas mais curiosas e admiráveis da actividade cerebral (Dehaene), pois liga ao processo de aprendizagem.

A necessidade de o ser humano estar sujeito a aprender todos os dias, fruto da dinâmica sócio-espiritual, obriga a que se sujeite, também, o cérebro a um processo dinâmico, interactivo, profundo e coloquial. Neste exercício, envolto num misterioso processo que, embora tenhamos conhecimento sobre o que se está a passar, pouco ou nada há a fazer, razão pela qual os especialistas consideram-no o momento mais sublime da actividade cerebral e varia de indivíduo para indivíduo.

Os tempos cerebrais começam a dar lugar a criações e a modelação de processos manifestados somente pelos mecanismos sensoriais com sucessivas repetições de impulsos eléctricos. São forjados numa espécie de campos magnéticos, articulados por ondas gravitacionais que despertam os sentidos e lavam à produção de emoções, subdivididas em sensações conhecidas como felicidade, alegria, tristeza, amor, raiva, ódio, responsáveis pelas atitudes e comportamentos.

Deste estado de coisas, contidas no próprio cérebro, parte o ordenamento do processo mental, um misto de factores endógenos e exógenos. Ainda no ventre, o cérebro humano começa a modelar as actividades, preparando-se para a vida. Por isso, todos nascem com as faculdades mentais a fim de se dedicar a uma interacção lógica com o meio.

O neurocientista Dehaene realça o facto de nesse período acontecer a consolidação de um factor importante para a actividade cerebral: a aprendizagem. Aqui (Dehaene) está o segredo de tudo, sendo verdade que a complexidade é muito mais vasta e significativa, mas tudo tem um gatilho que começa pela orientação, que mais não é do que o processamento dos comandos. Por outras palavras, trata-se da própria orientação cerebral pela aprendizagem. 

 
Da assimilação à dimensão social da aprendizagem

A aprendizagem tem que ver com a aquisição de valores que concorrem para a modelação cerebral, conferindo capacidade funcional no contexto sócio-biológico, permitindo que se interligue com a vida real através de conexões técnicas fundadas ainda num tempo primário, sugerindo acesas discussões sobre ser e estar. Existem correntes que definem a aprendizagem como um processo de continuidade sistémica, isto é, a aquisição de valores mais não é do que associação de valores, ou seja, há no cérebro, no seu tempo primário, um conjunto de elementos que vão interagir com aqueles introduzidos face à função social, onde a parte bio-motora cola-se à parte psico-social.

Esta interligação projecta um quadro ilusório à volta da actividade cerebral que confunde o processo da aprendizagem, parecendo virgem, quando, na verdade, não é, conferindo ao processo um grau de complexidade espectacular, para dizer assim, a que o neurocientista Dehaene define como das coisas mais apaixonadas na actividade cerebral. Dá-se o estabelecimento de dois grandes momentos formados pela realidade exterior e a herança interior, podendo esta variar em expressividade e manifestação.

O desenho estético, da ordem da personalidade, nomeadamente traços psicológicos, atitude e comportamento ganham forma e dimensão social; simultaneamente, as conexões neurónicas dão lugar a ligações sociais, fruto do exercício cerebral individual, sedimentando factores como identidade e cultura. É um aspecto muito importante nas conexões e determinam toda a actividade cerebral, permitindo a criação de quadros de co-actuação consubstanciados, fundamentalmente, em espectros de linguagem, conformando um sistema de modelação constante. A interacção descola dos aspectos primários como aprender a contar, a falar ou distinguir uma cor de outra e passa para a inscrição de novos modelos, muito mais profundos e complexos.

O cérebro age rápido e de uma forma consistente para atender o designado processo mental, recebendo impulsos sensoriais e pedidos de inscrição de modelos e mais modelos, provenientes de todas as áreas sociais. Esta tarefa é caracterizada como de extrema importância e decisiva, pois dela depende a cadeia de orientação das relações políticas e sociais, forjando os laços e consolidando os comandos dos seus sistemas.

Afirmação das atitudes  e criação de novos modelos

A constância da actividade social impõe um ritmo bastante interessante na medida em que deixa visível um lado da ordem individual que caracteriza a organização mental da pessoa, a forma como são processados os valores, o entendimento sobre a partilha de espaço e a ideia de construção de sociedade. Esta constância é comummente conhecida como atitude, pois, a mesma congrega o perfil da personalidade, apesar de variar de contexto conforme as emoções. Pela atitude, o neuropsiquiatra Facundo Manes (2024) diz que é possível perceber o processo de organização mental, mas, mais do que isso, permite sobretudo determinar a afeição do indivíduo.

Não obstante estar estritamente ligada às emoções, a atitude é uma manifestação invariável do ser, sustentada pela ética e campo moral da pessoa. No quotidiano, a atitude discorre pelo comportamento, uma linha importante da actividade psico-motora, considerando que todos os dias o cérebro tem uma actividade intensa, e, em alguns casos, profunda, co-relacionando impulsos e valores, produzindo informação, nomeadamente através de micro-decisões que ordenam a forma do indivíduo lidar com o meio.

Esta actividade, mais do que ordenar pensamentos, relações sociais, aceitação e validação de normas, é feita pela inscrição de novos modelos, tão globais quanto a necessidade da convivência em harmonia social. O especialista Mario Alonso Puig (2024) realça que se trata da ligação espiritual com "aquilo que tem a ver com a nossa compreensão, forjando um quadro psicológico de felicidade”. Esta parte (Puig) demanda de uma busca interior por um estágio maior, lugar da compaixão versus amor, em razão do bem-estar no contexto emocional. Para o especialista, ao abraçarmos o que nos assusta ou preocupa, transformamo-los, o que deixamos escapar resiste, e, desta feita, persiste. Trata-se de fazer uma escolha diária, no quadro da polaridade.  

 
Conclusões

Ao falarmos do cérebro, temos que ter em conta dois aspectos principais. O primeiro, é que a abordagem cerebral nos coloca em presença da máquina que orienta os processos mentais, da ordem psico-motora e psico-espiritual, diferente, por exemplo, da inteligência artificial que tem origem na criatividade humana, e não na proveniência da ordem natural das coisas, lugar do sagrado e do divino, como o "engenho cerebral”, que o torna complexo, sensível e misterioso.

O segundo aspecto, é que o cérebro é responsável por tudo que somos e fazemos, a partir do momento que tem a matriz da herança genética e a assimilação dos valores adquiridos através da interacção social. Estes aspectos tornam o cérebro a constante na orientação humana e no desenho dos modelos sociais e políticos. Segundo o neuropsiquiatra Manes, na era actual, em que tudo se processo através do conhecimento, "não é possível construir as sociedades sem ter o cérebro no centro de tudo”, isto é, desde o desenho das políticas públicas à sua aplicação, a forma como percebemos as coisas, como as processamos e, sobretudo, como actuamos e consolidamos as interligações humanas. 

O conhecimento é força motriz da evolução humana, de tal sorte que não podemos correr o risco de o eliminarmos, suprimirmos ou desagregá-lo (Manes). O neuropsiquiatra cita como exemplo os Estados Unidos da América, Reino Unido, Austrália e Países Baixos, para sustentar que o desenvolvimento social e humano resulta da colocação da actividade cerebral no centro das decisões. Estes Estados criaram (Manes) centros de acolhimento do conhecimento em neurociência, que têm a missão de fazer a interligação com a produção do ensino e educação e com o aparelho político para o desenho e aplicação das políticas públicas.

Os aspectos culturais das sociedades devem ser tidos em conta, uma vez que determinam o sucesso a médio e longo prazos dos programas. Ao apreciarmos o desenvolvimento humano nos países citados, com destaque, também, no Ocidente, na China e Rússia, de forma geral, notamos que passaram a olhar para as demandas cerebrais com grande atenção. Aliás, no campo das políticas públicas, razão essencial do crescimento global, as principais potências forjaram modelos políticos ou democráticos com base num padrão de manutenção de poder invariável, tendo em conta os tempos da actividade cerebral que se resume a um aspecto fundamental: a preparação.

Assim, pressupõe-se que tanto os executores como os destinatários das políticas públicas devem estar sujeitos a uma base motivacional forte, assente numa acção concertada e multidisciplinar, no domínio do conhecimento a desenvolver. A seguir, dá-se lugar à incubação, à forja, sedimentando a absorção. A observância deste quadro é tão importante quanto a projecção das vontades humanas e sociais, sendo que daí depende o resultado das políticas públicas. Nesta ordem, é importante respeitar-se os processos mentais, nomeadamente a forma como decorre a actividade cerebral na inscrição de novos modelos, e, de igual modo, respeitar a manutenção invariável de poder, que impõe uma escolha entre os aspectos universais de orientação democrática e a base cultural conservadora.

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