Opinião

O Fundamento Tradicional Oral como palavra, lugar e dança (Parte I)

David Capelenguela *

*Doutorando em C.S (Sociologia), M. em Direito

O continente africano está localizado nos hemisférios Norte, Sul, Leste e Oeste, sendo o único que se estende pelos quatro hemisférios, e fica entre o Oceano Índico, o Oceano Atlântico, o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho.

18/06/2024  Última atualização 06H15

Um  continente de cerca de 30 milhões de km², com uma população de pouco menos de 1 bilhão de habitantes, é considerada a região mais economicamente pobre do mundo, devido à quantidade de países com baixo Índice de Desenvolvimento humano, entretanto, é uma região muito rica culturalmente, abrigando uma grande quantidade de povos. Estima-se que sejam faladas cerca de 2000 línguas no continente.

Sempre que ouvimos falar de África, é comum referirem-se às belezas naturais, animais selvagens, pobreza, fome, guerras, doenças, entre outras, pois o imaginário social sempre criou simbolismos fantasiosos sobre os africanos, em que algumas representações (as ideias de que a selvageria e o primitivismo residiam no continente africano), permaneceram durante séculos. Já, a parte da África banhada pelo mar Mediterrâneo (Egito e restante da África ao norte do deserto do Saara) era vista como oposta das demais regiões africanas, por acreditarem que suas culturas e estruturas políticas chegavam a ser mais sofisticadas. A chamada África branca ou mediterrânica distinguia-se da recusada África negra. Até o período da Idade Média os europeus acreditavam que a África, abaixo do deserto do Saara, era o lugar de animais selvagens, seres humanos peludos com figuras animalescas e de natureza hostil.

 Fundamento Tradicional Oral

Existem diversas definições sobre a tradição oral, porém dificilmente conseguem defini-la completamente, devido à imensa gama de elementos que a caracterize. Sendo assim, para entendermos a tradição oral, precisamos identificar elementos como o verbalismo e suas diferentes formas de transmissão. Muitas vezes a tradição oral é delimitada por rigorosas regras que têm por objetivo padronizações da verbalização e seus meios de difusão. Porém, existem tradições onde os seus difusores, também chamados de griots, apresentam uma total liberdade de transmitir o conhecimento. Considerados os menestréis, ou trovadores que têm como função animar as recreações populares, através da música, contos populares e poesia, por isso, classificados em três categorias: griots  músicos; embaixadores; genealogistas, historiadores,   poetas ou os três ao mesmo tempo, percorrem comunidades divulgando a sua arte de forma solitária e itinerante ou acompanhando alguma família importante fazendo parte de uma grande comitiva.

Como porta-voz dos nobres, pois enquanto um nobre não pode retroceder em suas palavras, muito menos faltar com a verdade, os griots podem atuar como negociadores nas mais diversas situações como, por exemplo, assuntos matrimoniais, disputas territoriais e até mesmo assuntos militares, e é por essa é outras razões que, a designação mais importante para um griot é quando sobre ele pesa também a função de tradicionalista-doma, ou seja, Grande Conhecedor. Quando o título de tradicionalista-doma é atribuído a um griot, significa que o mesmo é dotado de grande credibilidade e a fidelidade de seus relatos nunca deverá ser alterada, já que a informação que dele advém, ao ser transmitida como tradição oral, costuma-se perguntar se a mesma provém de dieli ou doma. Em outras palavras, poderíamos entender tal pergunta, como um questionamento sobre a credibilidade da tradição a partir de sua fonte.

Diante de tamanha importância da função comunicacional e da manutenção das tradições culturais de sua sociedade, poderíamos afirmar que os griots atuaram como agentes ativos nas transações comerciais e na disseminação das informações entre os países africanos. Independentemente das diversas versões que os griots possam relatar sobre um mesmo fato histórico é importante ressaltarmos que a legitimidade da tradição narrada é válida a partir da existência de uma mesma seqüência de fatos ocorridos. Para uma tradição oral, o testemunho ocular é um elemento primordial para conferir o mínimo possível de distorções.

 A palavra

Para os povos do Ocidente africano, a fala humana  é vista como o poder da criação. A oralidade representa uma atitude diante da realidade dos factos vividos e não uma ausência de habilidade para reproduzir os acontecimentos ocorridos. De forma bem diferente de textos escritos, no que se refere à leitura e interpretação de um registo, oral,  deve ser executado, decorado, digerido e muitas vezes exigem-se um retorno constante à fonte para que o seu  verdadeiro significado seja literalmente compreendido.

As civilizações africanas, tanto no Saara quanto ao sul do mesmo, eram em grande parte civilizações baseadas na palavra falada, mesmo na África Ocidental onde já existia a escrita, a partir do século XVI, poucas pessoas sabiam escrever e o acto de se escrever ficava relegado a um plano secundário diante dos interesses da sociedade. Diante de tais factores,                 seria um grande erro considerarmos que a civilização africana era primitiva por priorizar a comunicação oral em detrimento da escrita. Para que as tradições orais de uma civilização sejam bem compreendidas, faz-se necessário observar a atitude da mesma em relação ao discurso. Tal postura é completamente diferente das civilizações que registram de forma escrita todas as mensagens importantes. Por outro lado, uma sociedade oral faz o uso da palavra como uma forma de se preservar a sabedoria ancestral através do testemunho verbal.

Para os africanos, os princípios fundamentais da oralidade e seus reflexos nas manifestações culturais assentam no emprego da articulação da palavra como forma de expressão da língua, que detém um alto grau de importância. A oralidade pode expressar aspectos místicos, relatar factos ocorridos durante um determinado período histórico. Compreendendo que de uma maneira geral, todas as tradições africanas postulam uma visão mística do mundo, se na Europa, a palavra magia é vista em um sentido negativo, em África,   a palavra, que se traduz na fala é considerada a materialização das forças místicas interiores do espírito, é vista como a manipulação das forças visando prover o equilíbrio do Universo.

Muitos estudiosos africanos afirmam que ao se estudar a tradição oral africana, deve-se aprender a trabalhar mais lentamente para que sejam entendidos e assimilados elementos de uma memória coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma.      animou as forças cósmicas que dormiam estáticas através da fala.

 O lugar

Conscientes de que enquanto facto social, a dança está expressa de mediações entre categorias de natureza estética, fisiológica, psicológica e cosmológica, no qual o corpo é produtor e produto de processos sociais, para que ela se preserve de estado identitário de alma e força natural, deve, inevitavelmente incorporar um assentamento de lugar.

O lugar é fundamental na construção da pessoa e da comunidade. A pessoa é construída pela própria comunidade, ela tem seus traços pessoais, na sua forma de organizar as suas influências, tem a sua trajectória, mas o seu pertencimento é uma comunidade. É o chão onde pisa, dialoga com os espirito que lhe são inerentes, é enfim, o chão onde repousa a alma, É diferente da ideia de indivíduo (indiviso, aquele que não se divide), na tradição mais ocidental. A pessoa é o contrário, é aquilo que é compartilhado, é o que se compartilha no pertencimento de todos, da raíz, que é o que constitui a comunidade. É essa a perspectiva que dialoga da tradição africanaao mundo.

 A dança

Todo movimento tem um porquê. Ele diz de uma vivência em contextos tecidos com muitas histórias costuradas entre afetos e desafetos que são capturados simbolicamente em grafias da tridimensionalidade do corpo. A cor grita em poéticas envolvidas na corporeidade negra de tradições ancestrais que persistem em nos lembrar que existem diferenças e que elas devem ser aludidas, não iludidas. A pluralidade de corpos e fazeres se apresenta cada vez mais diversa solicitando de nós um olhar atento, crítico e reflexivo acerca da constituição de ideias universais presentes sobre as epistemes hegemónicas. Da mesma forma que a fala humana pode animar e incorporar-se de movimento aquilo que está inerte, para que a fala possa surtir efeito, a mesma deverá ser dotada de ritmo, já que,  considerada o grande agente activo da magia africana devido ao facto da mesma ser revestida tanto de   poder para criativo como de poder animador, é a partir dela, que se pode identificar o quanto é importante para os africanos o uso da palavra associada ao ritmo, assim como diz Hampaté Bã:

Nas canções rituais e nas fórmulas encantatórias, a fala é, portanto, a materialização da cadência. E se é considerada como tendo o poder de agir sobre espíritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram forças, forças     que agem sobre espíritos que são por sua vez, as potências da acção.

(Hampaté Bã, 1972)

A África é rica em danças, cantos, contos, provérbios e entre outros. Pensar, em dança no universo dos africanos é se deparar com muitas questões pertinentes como: o que são as danças africanas? Por que elas estão tão presentes no cotidiano dos africanos? Quais são os seus tipos?  A designação "danças africana” pode ser reconhecida como sendo uma denominação que abrange ao mesmo tempo uma visão artística, política, ritualística e cultural.

A dança africana é a repetição do gesto aprendido, dentro da tradição, ou seja, não é uma simples repetição do gesto do professor, mas um conhecimento perfeito do gesto, o que deixa o dançarino livre para improvisar e para responder por gestos e com a sua inspiração.  Trazendo em si um imaginário simbólico, porém muito complexo, que tende a excluir o conjunto de danças que não trabalham a partir dos movimentos locais africanos e s, mas sim a partir de uma ideia do que são essas danças, as danças africanas podem ser consideradas manifestações culturais, no entanto, a maioria dos ritmos dançantes africanos estão ligados à aspectos religiosos. Neste sentido, ao dançar, o corpo se apresenta como uma espécie de ligação entre o mundo espiritual e a terra. Se o Corpo em Diáspora anuncia a conexão com os contextos, não se pode perder de vista a relação intrínseca entre corpo, natureza e universo. A percepção desta ligação pode levar ao despertar de algo fortemente gravado na memória corporal, ou seja, na construção histórica da corporeidade, visto que os ritmos, as danças, os batuques dos africanos tocam a identidade corporal de muitas pessoas.

As danças africanas podem ser consideradas manifestações culturais, no entanto, a maioria dos ritmos dançantes africanos estão ligados à aspectos religiosos. Neste sentido, ao dançar, o corpo se apresenta como uma espécie de ligação entre o mundo espiritual e a terra. Se o Corpo em Diáspora anuncia a conexão com os contextos, não se pode perder de vista a relação intrínseca entre corpo, natureza e universo. A percepção desta ligação pode levar ao despertar de algo fortemente gravado na memória corporal, ou seja, na construção histórica da corporeidade, visto que os ritmos, as danças, os batuques, tocam a identidade corporal e espiritual de muitas pessoas.

Paulo Freire, em sua obra "Cartas a Guiné Bissau” (1984), apresenta um exemplo desta ligação, ao tratar a África como um local de costumes que se espalham para várias partes do mundo, mesmo que desprezado pela maioria. O autor comenta que, ao pensar na dança e nos costumes africanos em relação à natureza, percebe-se que permitem realizar um reencontro conosco mesmo, afirmando que, ao se pisar pela primeira vez na África, é possível encontrar as suas matrizes. E acrescenta:

A cor do céu, o verde-azul do mar, os coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o gingar do corpo das gentes andando nas ruas, seu sorriso disponível à vida; os tambores soando no fundo das noites; os corpos bailando e, ao fazê-lo, "desenhando o mundo”, a presença entre as massas populares, da expressão de sua cultura que os colonizadores não conseguiram matar, me fez perceber que eu era mais africano do que pensava. O quanto foi importante pisar no chão africano e sentir-me nele como quem voltava e não como quem chegava (FREIRE, 1984, p. 13-14).

 

*Doutorando em C.S (Sociologia), M. em Direito

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