Opinião

Ontologia de uma historiografia literária angolana- X

Luís Kandjimbo |*

Escritor

A perspectiva ontológica da historiografia literária angolana pode inspirar uma representação arborescente, uma tríade que compreende as literaturas orais, as literaturas escritas em línguas bantu angolanas e as literaturas africanas escritas em línguas europeias.Com este tópico encerramos as reflexões sobre os problemas que a filosofia da historiografia literária suscitam.Como se sabe, há um silêncio que paira sobre as literaturas orais e as literaturas escritas em línguas bantu angolanas.Á luz do comparativismo historiográfico verificamos que deriva daí a ilusão de inexistência desses campos literários das Humanidades e, consequentemente, a negligência relativamente à legitimidade do seu estudo

12/05/2024  Última atualização 09H45

Ontologia e história

Ao chegar ao fim das nossas reflexões, não podemos perder de vista as controvérsias e os debates dominantes no campo da filosofia da historiografia, onde se aborda a relação entre história e a ontologia. Há quem entenda que tal relação configura uma incompatibilidade. No presente caso, a pergunta consiste em saber se a literatura angolana é um ser ou um ente. Se a literatura angolana é um ser será consideradocomo evento ou não? Admitindo-se que a literatura angolana seja um ser cuja manifestação é o seu ente, então a ontologia da literatura angolana não parece incompatível com a história. A este propósito, as propostas que o filósofo alemão, Martin Heidegger (1889-1976),  formulou em "O Ser e o Tempo” e as controvérsias e os debates que suscitam em África podem ser úteis para a compreensão do problema. Está em causa a relação entre o todo e a parte na historiografia literária, isto é, entre o ser e o ente, por exemplo, entre as literaturas orais, as literaturas escritas em línguas bantu angolanas e a literatura angolana escrita em língua portuguesa. Na Europa e na América, desde as últimas décadas do século XX, esta problemática, relação parte-todo, vem sendo estudada por uma nova disciplina. É a mereologia (do grego "meros”, parte), disciplinaque se ocupa das características formais da relação de parte e das condições de identidade e existência para todos.

 
Ilusão de inexistência

Uma atenta leitura da mais representativa e canónicaHistória da Literatura Portuguesa, de que são autores Óscar Lopes(1917-2013) e António José Saraiva (1917-1993),  permite sustentar a necessidade de desenvolver estudos historiográficos literários comparados. Em artigo publicado em 2014, na revista Guavira Letras, sobre a questão africana na historiografia literária portuguesa, o filólogo espanholElias J. Torres Feijóidentificoufragilidades metodológicas e denuncia "a extraordinária dependência que do campo do poder apresenta a elaboração académica nestas áreas, certamente” e "a profunda ideologização e pouca confiabilidade do campo académico, provavelmente mostrando as carências de método e metodologia na elaboração historiográfica”. Um exemplo disso é a legítima reivindicação e integração de Castro Soromenho (1910-1968) no cânone literário português. Os dois historiadores da literatura portuguesa, Óscar Lopes e António José Saraiva, consideram que "embora tematicamente integrado na literatura angolana”, Fernando Monteiro de Castro Soromenhoé um escritor português esteticamente filiado ao neo-realismo que, apesar das "várias obras de fundo etnográfico e histórico”, escreveu uma "trilogia de romances” (Terra Morta, 1949; Viragem, 1957; A Chaga, 1972), que "pateticamente denunciam a violência colonial numa típica região do Norte de Angola”. Com razão, Elias J. Torres Feijó entende que os autores dessa obra operam com um "conhecimento não justificado, nem alicerçado”. Por essa razão, a História da Literatura Portuguesa "deixa de ser confiável, a menos que entendamos a historiografia como algo subjetivo e submetido ao puro arbítrio do responsável pela selecção”.

 
Literaturas escritas em línguas angolanas

Portanto, aí está o problema ontológico da historiografia literária. Em Portugal, predomina ainda hoje a ilusão de que a condição necessária e suficiente para definição de literatura angolana é apenas o critério linguístico, confundindo-se este com a língua portuguesa. Donde o silêncio que paira sobre as literaturas orais e as literaturas escritas em línguas bantu angolanas. Quem não tinha dificuldades em reconhecer a tacanhez ocidental da "inesgotável auto-suficiência” é o investigador belga, Albert Gérard (1920-1996).Já  defendia a necessidade de se estudar o importante acervo patrimonial constituído pelas literaturas africanas em línguas africanas.Na mesma senda inscrever-se-ia a iniciativa levada a cabo em 1985, por investigadores polacos e britânicos, "Literatures in African Languages. Theoretical Issuesand Sample Surveys”, (Literaturas em Línguas Africanas. Questões teóricas e pesquisas por amostragem).

O linguista alemão Carl Meinhof (1857-1944), ainda na primeira metade do século XX, destacava os provérbios como experiência acumulada de um povo e um dos tesouros inigualáveis em todo o mundo. Aqui o conhecimento da linguagem é ainda mais necessário do que no caso dos contos. Considerava que nos provérbios, sem a história as palavras não fazem sentido.

 
História Literária e romance em Igbo

O professor e crítico literário Ernest N. Emenyonu demonstrou a possibilidade de uma história das literaturas africanas em línguas africanas, ao ter defendido uma tese de doutoramento sobre o romance nigeriano em língua Igbo. Emenyonu partia do pressuposto segundo o qual "o  romance, a poesia ou o teatro igbo contemporâneo são extensões de sua literatura oral”. O desenvolvimento do romance Igboinicia-se em 1933, quando um autor nigerino, Pita Nwana (1881-1968), publicou o romance "Omenuko” cuja tradução em língua inglesa foi realizada por Emenyonu, em 1972.

Emenyonu formulou uma definição do romance Igbo, tendo em conta as seguintes características: 1) romance escrito em língua Igbo; 2) transmissão de uma visão do mundo da comunidade étnica Igbo, constituída por uma população de mais de 25 milhões de pessoas; 3) romance, total ou parcialmente, escrito por uma pessoa pertencente à comunidade étnica Igbo.

 
Equívocos de abordagens críticas ocidentais

Já aqui falei do professor universitário e crítico literário beninenseAdrien Huannou, devido às suas posições a respeito do paradigma europeu de história literária nacional.Em 1989, com a publicação de um ensaio exclusivamente consagrado ao tema, "A Questão das Literaturas Nacionais”, inconformado com os equívocos de antologias e abordagens críticas ocidentais, ele reformulava as perguntas iniciais: "Os actuais Estados africanos,que surgiram após a colonização, são nações?”; "Os seus respectivos acervos literários constituem eles literaturas nacionais?”.

O referido ensaio resultava da avaliação crítica dos equívocos de Alain Rouch e Gérard Clavreuill, autores de uma antologia histórica de "literaturas nacionais de escrita francesa”, publicada em 1986, e que abrange a "África Negra, Caraíbas e o Oceano Índico”. Adrien Huannou considera que esses autores assumem uma atitude marginal, quando os debates sobre as questões levantadas configuravam um campo em que se confrontam duas posições: a) crítica panafricanista, a mais antiga, defende a visão unitária e ecuménica das literaturas africanas, a existência de "campo literário negro-africano”; b) crítica nacionalista, formada a partir da década de 70 do século XX, defende a existência de literaturas nacionais.

Na conclusão geral do livro, "A Questão das Literaturas Nacionais” Adrien Huannou tinha formulado uma questão, em seu entender inevitável: "Será a literatura beninense de língua francesa uma literatura nacional?”. Respondeu de modo afirmativo. Neste sentido,considerava que a literatura nacional "é produzida por cidadãos nacionais beninenses, inspira-se nas realidades passadas e presentes da nação beninense e exprime a sua identidade cultural”. Trata-se de uma literatura que "tendo nascido no solo beninense, mergulha as suas raízes no passado do Benin e constitui um espelho no qual se reflecte a sociedade beninense”.

 
Crítica panafricanista ou crítica nacionalista?

Esse livrofoi impulsionado pela avaliação crítica dos equívocos de Alain Rouch e Gérard Clavreuill, autores de uma antologia histórica de "literaturas nacionais escritasem língua francesa”, publicada em 1986, e que abrange a "África Negra, Caraíbas e o Oceano Índico”. Adrien Huannou concluiu que esses autores representavam uma atitude marginal, quando os debates sobre as questões levantadas configuravam um campo em que se confrontam duas posições: a) crítica panafricanista, a mais antiga, defende a visão unitária e ecuménica das literaturas africanas, a existência de "campo literário negro-africano”; b) crítica nacionalista, formada a partir da década de 70 do século XX, defende a existência de literaturas nacionais.

A crítica panafricanista, no dizer de Adrien Huannou,  parte do pressuposto segundo o qual a "literatura negro-africana de língua francesa” é constituída por um único conjunto de obras literárias, existindo semelhanças entre as áreas civilizacionais africanas, além das similitudes dos contextos sociais, económicos e políticos. Essa redução à unidade não permite sublinhar as singularidades.Em suma, é o culto da generalidade e do superficial. Um dos principais defensores da tendência globalizante da interpretação era o francês Jacques Chevrier(1934-2023).

Relativamente à crítica nacionalista, Adrien Huannou refere que o critério da nacionalidade literária permite ter em conta as singularidades de cada uma das literaturas.

 
Armadilhas da história literária teleológica

Do mesmo modo que na Europa os autores e as obras literárias  são classificados em obediência a esse critério, de acodo com os conteúdos socioculturais, vínculos geográficos e políticos, Adrien Huannou entendia que não pode ser negada a existência de literaturas nacionais em África. Acescentava que a função essencial de uma literatura nacional reside no potencial representativo de exprimir, reflectir as diferentes componentes da vida nacional. Parece evidente a conexão ente o critério do sentido de pertença ou de nacionalidade e o critério da língua oficial.

Apesar disso, o professor e crítico literário beninense defendia a necessidade de uma maior especialização dos críticos que se dedicam ao estudo da chamada "literatura negro-africana”, na medida em que a produção crítica generalista está condenada a ser superficial. Em seu entender, o bom crítico das literaturas nacionais africanas deveria adquirir conhecimentos mais profundos sobre as sociedades e os sistemas culturais de que emanam as obras literárias. No contexto em que escreve o seu livro, Adrien Huannou não manifesta interesse pelos debates que se travavam nos meios académicos europeus e norte-americanos sobre a crise da história literária. É que a categórica articulação dos vínculos entre os cidadãos nacionais beninenses, a literatura nacional e a identidade cultural, tendo como base o critério da língua oficial constitui efectivamente uma forma de exclusão.

 
Conclusão

Portanto, como vimos, a apologia da literatura nacional revela-se como uma ilusão de universalidade e racionalidade, que tem a sua génese na noção alemã de "Volksgeist”, o espírito único do povo.Ao apropriar-se rigorosamente do "modelo da narrativa teleológica”, Adrien Huannoutoma-o de empréstimo como um tribuno que, não se importando com os meios,procura alcançar a todo o custo o fim último, o Estado-nação. Por isso, deixa-se seduzir pela aparente vocação benigna do modelo de história literária nacional.No entanto, o desejável não é a tirania monista e glotofágica desse modelo. Revela-se necessário cultivar a busca de alternativas, tendo em conta a complexidades das realidades africanas.

 

*Ph.D. em Estudos de  Literatura, M.Phil.  em Filosofia Geral

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