Reportagem

Rocha Pinto: O bairro que nasceu junto à cabeceira da pista do aeroporto

César André

Jornalista

O bairro Rocha Pinto é uma daquelas localidades que dispensa apresentação. O seu nome está associado a um agricultor português que nos anos 1930 se instalou na zona Sul da cabeceira da pista do antigo aeroporto Craveiro Lopes, actual 4 de Fevereiro, e lá organizou a sua horta e uma cavalariça. Mas o bairro haveria de consolidar-se como tal já no pós-independência

06/08/2023  Última atualização 15H54
© Fotografia por: Santos Pedro| Edições Novembro

De matagal, num ápice o Rocha Pinto tornou-se num dos bairros mais emblemáticos de Luanda. A zona da cabeceira da pista do Aeroporto Craveiro Lopes, hoje 4 de Fevereiro, era uma área privilegiada. Deste local conseguia-se observar a paisagem, as belezas naturais e outros recantos da cidade capital.

No local onde nasceu o que viria a chamar-se bairro Rocha Pinto havia uma lagoa e alguma vegetação com arbustos e areia vermelha à mistura onde habitavam animais selvagens, com destaque para os pássaros que percorriam longas distâncias e "refugiavam-se” na zona, vivendo lá a cantar e a assobiar alegremente, como é de sua natureza. Apesar do ruído da natureza, a que se juntava amiúde o proveniente dos motores das aeronaves que descolavam e aterrizavam na cabeçeira Sul da pista do aeroporto, a zona em geral era calma e havia mesmo quem a considerasse um paraíso. Os pássaros depois de um voo rasante poisavam nos ramos das árvores silvestres, como cajueiros e maboqueiros, bem como das mangueiras, goiabeiras e outras árvores de pomar que lá cresciam espontaneamente. Os pássaros nidificavam aí, aumentavam a sua prole e partiam para longos voos rumo ao desconhecido, regressando algum tempo depois, num ciclo incessante. 

Formada por pequenas ravinas e terra argilosa, o Rocha Pinto era, no tempo colonial, uma zona que tinha sido invadida por capinzal alto, tornando-se local propício para o cultivo de certas culturas e refúgio de certos  animais. Fruto da densa vegetação,  a área serviu também, por muito tempo, como zona de caça de animais de pequeno porte, como coelhos, lebres, toupeiras e ratos do mato, só para citar esses.

Por causa das terras férteis e ociosas que lá abundavam, nos anos 1960 o local foi "invadido” por populações que viviam nas adjacências  como Samba,  Musseque Prenda e Catambor, que ocuparam parcelas de terra para a prática de agricultura de subsistência. Mais tarde surgiram populações oriundas da província do Cuanza-Sul, nomeadamente das regiões da Kibala, Calulo, Gabela, Quilenda, Conda e Mussende, que passaram a habitar e a praticar agricultura no local, dando-lhe um cunho de pequena cintura verde.

Com o andar do tempo era por demais notório o surgimento de lavras com assinalável produção de mandioca, batata doce, milho, feijão e frutas como manga e caju.

Facto destacável nesta reportagem que procura recuperar as memórias perdidas no tempo, na cabeceira Sul da pista do aeroporto, muito antes da chegada dos primeiros contingentes de populações do Cuanza-Sul, como  se disse mais acima, já havia um morador cujo nome, de acordo com algumas fontes, viria a ser o do bairro hoje famoso: o português Rocha Pinto. Este proeminente homem do campo instalou-se solitariamente na zona e tomou como seu um vasto terreno que tinha uma lagoa, bem na cabeceira da pista do aeroporto, onde passou a cultivar uma horta e um pomar e também criava ovelhas, cabritos, galinhas e até cavalos.

As mangueiras do seu pomar davam algumas das mais cobiçadas espécies de mangas de Luanda e que, inevitavelmente, atraíam a miudagem que ia ao local inicialmente com a intenção de observar de perto a evolução dos aviões na pista. O guarda do pomar do fazendeiro Rocha Pinto chamava-se Domingos Salvador "Cabole”. Os miúdos, muitas vezes sob sol ardente, esgueiravam-se por entre o arvoredo, escapando da vigilância do guarda e recolhiam no chão ou nos troncos baixos e carregados a cobiçada fruta.

Para além de Rocha Pinto, residia também na zona um compatriota seu chamado José, que devido ao enorme gosto que tinha por cavalos, de que, aliás, era criador, passou a ser chamado José dos Cavalos, vulgo Zé dos Cavalos. 

Zé dos Cavalos tinha o hábito de passear a cavalo por toda a extensão da circunscrição, o que o tornou bastante conhecido pelas populações que aí praticavam agricultura.

No tempo colonial a zona adjacente à cabeceira do aeroporto Craveiro Lopes, onde estão instalados os escritórios e estaleiros das empresas de construção civil Paviterra  e Mota Engil, tinha visíveis grandes paisagens. A partir deste local  era possível visualizar, sem nenhum constrangimento, os recantos turísticos do bairro da Samba, nomeadamente a  raia Amélia, a contra-costa da Corimba, o carismático Hotel Costa do Sol e os morros da Samba e da Kinanga. 

Ainda a origem do nome

Como dito acima, Rocha Pinto foi um agricultor português que se instalou, nos primórdios dos anos 1930, na zona Sul da cabeceira da pista do aeroporto Craveiro Lopes, tornando-se num dos primeiros moradores da área.

Fruto da sua dinâmica, entrega e dedicação ao trabalho de lavrar a terra e de tratar os seus animais, tornou-se numa figura pública, associando-se o seu nome ao do próprio bairro.  Segundo as fontes que nos deram essa informação, à semelhança do que aconteceu com outros musseques de Luanda, aqui não se fugiu à regra e atribuiu-se ao bairro o nome da grande figura da zona.

Mas uma outra versão oral diz que onde  Rocha Pinto construiu a sua residência existia uma rocha grande, junto da qual havia uma fonte onde os camponeses iam buscar água para irrigar as suas culturas. "Essa era a rocha do senhor Pinto. Então, dessa junção de palavras é que provém o nome do bairro Rocha Pinto”.

Por outro lado, reza a história que a denominação oficial "Belas”  não vincou por muito tempo. Este nome ficou ligado apenas ao aeroporto, que, mais tarde, passou a designar-se Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, até aos dias de hoje.

A designação Belas foi atribuída posteriomente a uma área mais adiante, situada na região Sudeste da província de Luanda, limitada pelas áreas de Talatona (a Norte), Quissama (a Sul),  Viana (a Leste), Mussulo  (a Este) e pelo Oceano Atlântico (a Oeste).

Aquele espaço era considerado reserva estratégica do Estado e é lá onde hoje estão os bairros Talatona, Patriota, parte da via expressa, a centralidade do Kilamba, entre outras infra-estrutruras.

Kagiombo ou o aterro sanitário "alimentado” pelo Zé Malanjinho

No tempo colonial existia uma área que desembocava na zona do antigo controlo da Samba, uma extensão de terra vermelha com pequenas montanhas e arbustos.  Nessa zona foi erguida a casa do comerciante José Manuel, o actual Prédio Café. Aí, no tempo colonial, existia um pequeno aterro sanitário a céu aberto, que mais tarde viria a ser chamado Kagiombo. Nos anos 1960/1970, o velho Zé Malanjinho, então funcionário da Direcção dos Transportes Aéreos (DTA), com o seu "katukutuko”, todos os santos dias arrastava um trailer com o lixo proveniente das aeronaves que escalavam Luanda. Os resíduos sólidos que provinham do aeroporto Craveiro Lopes eram compostos por restos de comida e outro tipo de objectos. Num ápice, o lixo era aproveitado pelos moradores das zonas adjacentes que "visitavam” o local, a maioria garotos. Os "catadores” conseguiam retirar do aterro algumas coisas "valiosas”, como  refeições em aparente bom estado de consumo, e peças ou latas de conserva com as quais os garotos jogavam o "bunkiki” (jogo infantil).
Havia mesmo certos populares que chegavam a compor a loiça e o mobiliário de casa com objectos  apanhados nessa lixeira.
O cidadão Zé Malanjinho também era criador de animais domésticos, com destaque para cabritos e ovelhas. Depois da actividade rotineira de deitar o lixo no Kagiombo, Zé Malanjinho estacionava o seu veículo a tracção e, no final da tarde, libertava os seus animais para o "sagrado” pasto sob os cuidados e o olhar atento de Miguel, seu filho mais velho.
André Feliciano André, 60 anos, antigo morador do bairro Realojamento do Prenda, conta que, enquanto garoto, frequentou muito a zona do actual Rocha Pinto. Aliás, era o local de eleição para as brincadeiras das crianças da sua geração.
"Quando estivéssemos livres íamos aí caçar pássaros e relaxar. Além disso dávamo-nos ao luxo de apreciar os aviões a subir e a desaparecerem nas nuvens”,  recorda.
Faustino Maly, antigo morador, diz que tem grandes recordações do Rocha Pinto, sublinhando que, para além da caça aos pássaros, com maior predominância para os rabo de junco e as celestes, tinham o ensejo de assistir às corridas de motocross que se realizavam, na época, nas imediações do Prédio do Café.
"Foram tempos memoráveis”, conta Faustino Maly, que, com os amigos, "não deixavam passar” nenhuma corrida de motocross. "Nas corridas havia dias que as disputas eram bastante renhidas e os motociclistas não levavam desaforo para casa: Bianchi, Anfíbio, Mabeco e Clemente eram os principais  corredores da época”, recorda.
Anibal Kalungulungu, 68 anos, natural da Kibala, aldeia do Tari, diz que guarda na memória boas recordações do bairro Rocha Pinto. Como era proveniente do mato, segundo ele próprio diz, Aníbal Kalungulungu sentiu-se bem, porque encontrou outro mato em Luanda, onde deu continuidade  à sua actividade de caça de animais como mbuinji, coelhos e lebres.
"Foram bons e memoráveis tempos. A gente, enquanto garotos, saía de casa para uma distância de três quilómetros para desfrutar das paisagens que o Rocha Pinto nos brindava. Era um encanto”, enfatiza Kalungulungu.
Com certa mágoa, Kalungulungu diz que a zona foi mal explorada em termos urbanísticos, salientando o facto de "o Governo não ter conseguido fazer uma requalificação adequada do bairro, razão pela qual o local se transformou numa zona pouco aproveitada”.
Tio Aníbal, como é tratado carinhosamente pelos mais próximos, disse mais adiante que à semelhança de outros países, "essa circunscrição devia ser bem aproveitada por ser uma das portas de entrada para a cidade capital”.
"Poderia muito bem ser o espelho para quem vem do Sul do país, se construíssem na zona habitações de alto padrão. Actualmente, o Rocha Pinto é mais um musseque desordenado”, desabafou.

Cintura verde
No princípio da década de 1970, a zona do Rocha Pinto era  uma pequena cintura verde, que abastecia com produtos do campo os mercados implantados no Musseque Prenda, a saber o Mercado do Nunes, bem no coração do Prenda,  o do Banga Sumo, o do Bondo Ambulungo, aí junto à 8ª Esquadra, bem como o do Shabá, na área do Margoso. A comercialização dos produtos nesses mercados era feita por gente, na sua maioria, proveniente da província do Cuanza-Sul. Dos produtos comercializados destacavam-se a kizaka, a jihassa, as couves, a rama de batata doce, a mandioca, batata doce e rena, miengueleca, tomate, cebola, entre muitos outros.

Com o crescimento demográfico, as zonas aráveis foram sendo ocupadas para dar lugar a moradias. Registou-se mesmo a comercialização desenfreada dos terrenos por parte dos proprietários.  Foi também a partir dos anos 1970 que grandes empresas de construção civil e obras públicas começaram a adquirir lotes de terreno através das estruturas centrais do Governo, para montarem os seus escritórios e estaleiros. Foram os casos da Paviterra e da Mota Engil, entre outras.

A construção da avenida 21 de Janeiro, nos anos 1990, desde a Base Aérea nº 9 até à rotunda do Gamek  à direita,  veio "emprestar”um certo desenvolvimento à circunscrição. Essa empreitada trouxe um grande alívio na circulação de pessoas e bens para a  região Sul do país e vice-versa, bem como passou a servir de placa giratória para quem pretendesse atingir a cidade capital a partir  da Estrada Nacional nº 100 (Samba). Por outras palavras, a avenida 21 de Janeiro é um marco que contribuiu imenso para apagar o Rocha Pinto rural, aproximando, geográfica e sociologicamente, essa circunscrição do casco urbano.

Para além da avenida 21 de Janeiro, ao longo desta e não só, foram erguidos grandes empreendimentos sócio-económicos, que deram ao Rocha Pinto a característica actual de uma zona com uma dinâmica social bastante frenética e diversificada em termos de composição demográfica.  Estamos a falar, por exemplo, da Estação Metereológica, das instalações da Caritas de Angola, instituição da Igreja Católica  que acolheu, durante o conflito armado, muitos deslocados do interior do país, que se dirigiam à capital em busca de segurança.

Hoje, o Rocha Pinto, além de tudo  mais que se possa dizer, é uma das zonas comerciais de referência da cidade de Luanda.

Zona militarizada e bastante vigiada

Pelo facto de estar situado  estrategicamente na zona adjacente à pista de aviação, o território do Rocha Pinto era usado, durante um certo tempo, para pequenos exercícios militares.  

Joaquim Contreiras, antigo morador do Musseque Prenda, conta que todas as vezes que fosse acompanhar a esposa à lavra se deparava com camiões de marca Berliet Tramagal carregando militares portugueses para zonas mais afastadas dos campos agrícolas.

Fontes por nós consultadas dizem que no tempo colonial, em termos topográficos e paisagísticos, a zona do Rocha Pinto era semelhante à área da Funda, onde havia montanhas, alguma mata cerrada  e fartas terras agricultáveis. Em suma, era uma zona propícia para movimentações guerrilheiras. Essa eventualidade era uma das razões da movimentação constante de militares portugueses, além da protecção que faziam das instalações aeroportuárias, dos meios aéreos e de outras infra-estruturas.

O contingente militar, segundo relatos, era proveniente de uma  antiga base militar (que mais tarde viria a ser a Escola Político-Militar "Comandante Gika”), que se dirigiam ao local sob supervisão de uma companhia de comunicações que estava instalada no terraço do Laboratório de Engenharia de Angola.

Havia relatos da PIDE/DGS segundo os quais o Rocha Pinto seria um "refúgio dos turras” (como eram considerados os nacionalistas), que, perseguidos, abandonavam os musseques de Luanda e ficavam temporariamente naquela zona.

Paralelamente, ou independentemente da companhia de comunicações no Laboratório de Engenharia de Angola, a PIDE/DGS pusera um grupo de bufos ao seu serviço a residir na zona do Compão (Cassenda), com o intuito de localizar e prender cidadãos suspeitos de actividades independentistas e bloquear ou estancar prováveis actos de subversão armada.

As constantes rusgas nos bairros, que visavam cidadãos de raça negra,  era prenúncio da acção intimidatória das autoridades coloniais. "A intenção dos colonos era impedir que os autóctones se deslocassem de um musseque para o outro”, revelou Joaquim Contreiras. 

Depois dos acontecimentos da Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974, esse quadro viria a mudar, com a partida "compulsiva” dos soldados portugueses para a sua terra  de origem. A relativa estabilidade tornou a localidade do Rocha Pinto mais acessível, o que serviu de incentivo para o movimento migratório das populações de outras zonas da cidade e do interior do país para o local.  É assim que a cidade de Luanda ganhou, definitivamente, o carismático bairro Rocha Pinto, que até então era uma extensão do antigo Musseque Prenda.


Construção atribulada e desordenada

À semelhança do que aconteceu com outros bairros periféricos, o Rocha Pinto não fugiu à regra: o seu crescimento foi feito de forma atribulada e desordenada.

Devido ao descuido das autoridades locais, não se obedeceu aos padrões básicos e mínimos de urbanização, que implicariam o desenho dos arruamentos e a construção de infra-estruturas de abastecimento de água, distribuição de energia eléctrica e rede de saneamento básico. É assim que a partir do viaduto que dá acesso à Samba até à área do actual Gamek à direita, incluindo toda a envolvência, se pode observar que as casas foram construídas de forma despadronizada, sem respeitar os cânones urbanísticos e da arquitectura. O bairro é uma mistura caótica de moradias antigas e modernas de todas as tipologias e de arruamentos que de repente se estreitam em becos e dificultam a circulação no seu interior.  Apesar de todos os constrangimentos à mobilidade, ainda assim o Rocha Pinto é considerado uma área privilegiada, devido à proximidade da Baixa e por constituir a tal placa giratória de acesso e de saída para o interior da cidade. Como dito acima, o bairro beneficia imenso pelo facto de ser rasgado ou estar muito próximo da avenida 21 de Janeiro e da Estrada Nacional nº 100 (zona da Samba). 

José Kafuqueno, arquitecto de profissão, diz que o bairro tem caraterísticas muito particulares, desde a topografia  que o sustenta à precariedade urbanística e à debilidade dos serviços de saneamento e de abastecimento de água. "O Rocha Pinto de ontem teve o condão de ser um local calmo e tranquilo,  num contraste com o postal actual, que resulta de uma grande demanda demográfica”, ressaltou.

Aguardando por uma requalificação que tarda a chegar, o bairro, a cada dia que passa, se vai degradando cada vez mais. A auto-construção anárquica e a falta de saneamento básico são por demais notórios em quase toda a sua extensão.

Apesar dessas vicissitudes, as dinâmicas sociais e as actividades comerciais dão ao hoje Distrito Urbano do Rocha Pinto  um peso considerável no mosaico oficioso do antigo Musseque Prenda.

Estudos realizados no ano 2000 pelo Instituto Nacional de Estatística davam conta que a população do Rocha Pinto era então constituída por 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) habitantes, das mais diversas origens. O bairro continua a ter muitos problemas   estruturais, que resultam numa visível ausência de condições de habitabilidade condignas.

A requalificação urbana da circunscrição implicaria, necessariamente, fazer o reordenamento daquele território pertencente ao  município da Maianga. Especialistas em obras públicas defendem que o facto do bairro ter a particularidade de poder vir a "casar-se” com outros que o circundam,  faz com que tenha um estatuto diferente do que tinha nos primórdios. "Isso acaba por ser importante não só para o próprio bairro como para a própria estruturação da urbanização dos bairros que lhe são vizinhos”, frisou um especialista.

 
Evolução do bairro
A circunscrição do Rocha Pinto tem a particularidade de ser um musseque periférico e ao mesmo tempo de transição, porque, apesar de ter um elevado  nível de pobreza, possui, em determinadas áreas do bairro, alguma facilidade de acesso. Apesar da auto-construção anárquica que se observou por incúria da administração local,  houve iniciativas que despertaram a atenção  de  alguns estudiosos da arquitectura e do urbanismo.

O Rocha Pinto como fenómeno urbanístico consolidado e de referência é relativamente novo. Dados oficiais indicam que o bairro passa a ter existência  legal a partir de 1999, no quadro  de uma reestruturação político- administrativa que o integrou no município da Maianga, a par, dentre outros, dos bairros Maianga, Prenda, Cassequel, Calemba, Mártires de Kifangondo e Cassenda,

António Canivete, 75 anos, antigo morador e actualmente residente na rua João Ngola, afirmou que a ocupação do bairro começou a partir de 1979, com os primeiros habitantes  que se deslocaram de outros bairros da cidade, nomeadamente do Prenda. A sua ocupação, segundo contou António Canivete, foi feita da seguinte forma: primeiro os cidadãos ocupavam (compravam) os talhões e construíam junto aos locais onde viviam os seus familiares ou gente da mesma terra de origem. "É assim que cresceu o bairro”.

Hoje o bairro é constituído por um mosaico heterogéneo de cidadãos   oriundos de diferentes províncias, em muitos casos por força das deslocações causadas pela guerra: primeiro vieram as  famílias do Cuanza-Sul, Benguela e Cuanza-Norte  e depois as famílias de origem bakongo das províncias do Uíge e Zaire.

Domingas Bandeira, natural do munícipio da Quilenda, actual moradora da zona da Unidade Anti-Terror (UAT),  disse que "o bairro cresceu repentinamente devido às famílias que na altura tinham posses (dinheiro). As primeiras casas foram construídas com chapas de zinco, depois  de pau-a-pique e tijolos”.

No seu caso, disse,  herdou o terreno da lavra da falecida mãe e lá construiu a sua modesta casa. "Não tinha casa. E como a minha mãe tinha aqui um terreno, entendemos erguer aqui a nossa casa. Não é fácil viver em Luanda numa casa de renda, razão pela qual optamos por construir”, adiantou Domingas Bandeira. "O nosso terreno era grande, mas devido à nossa lentidão acabamos por perder alguns hectares e assim vamos nos ajeitando com esse pouco que conseguimos”, acrescentou.

Helga André, outra moradora, contou que nenhum dos seus familiares, inicialmente, dava importância ao local, por ser um autêntico matagal. "Só depois de vermos a zona a crescer é que nos interessamos em vir a correr atrás do prejuízo. Mas valeu a pena aproveitarmos o pequeno espaço que herdamos dos nossos pais. Hoje temos uma casa condigna”.

Carlos Zamba, proveniente da aldeia  de Dala Kaxibo, no município da Kibala,  província do Cuanza-Sul, explicou que veio a Luanda à procura de um primo e "apaixonou-se” pela área do Rocha Pinto, acabando por lá se instalar. "No princípio queria ficar no bairro Margoso, onde tinha os meus familiares, mas depois optei por ficar no Rocha Pinto. É uma zona onde residem muito dos meus conterrâneos e isso facilitou a minha integração”, enfatizou.

Rocha Pinto, note-se, em termos de estruturas económicas tem uma agência de seguros da ENSA, várias padarias, uma das quais deu nome a uma famosa paragem de táxi, além de muitos outros estabelecimentos comerciais, com destaque para o do bem sucedido empresário senhor Canhongo, dois mercados oficiais,  o do Quintalão e o dos Camionistas, e quatro mercados informais de nomeada, fora os inumeráveis pontos de venda nas esquinas e à porta das residências. Sem esquecer as cantinas geridas por cidadãos de países Oeste africanos e por uns quantos angolanos.


A emblemática avenida 21 de Janeiro

A designação desta avenida  está associada à data da fundação da Força Aérea Nacional (21 de Janeiro de 1976). Aproposta do nome da avenida foi feita pelo tenente-general Armindo Bravo da Rosa "Kamaka”, num dos aniversários alusivos à corporação.  Note-se que o mesmo oficial-general é o autor da célebre frase que era muito comum ver estampada nos muros das unidades militares: "Se o inimigo madruga, as FAPLA não dormem”.  O tenente-general Kamaka é ainda autor do aforismo adoptado pelas FAA e que normalmente é legível logo à entrada dos quartéis, em letras garrafais: "A pátria aos seus filhos não implora, ordena!”

Um dos fundadores da Força Aérea Nacional, Kamaka foi distinguido em 2012 com um diploma de mérito, além do seu desempenho enquanto militar, por ter criado na década de 1980 o lema "FAPA-DAA - Asas da Revolução, canhões da liberdade, na construção da  pátria  socialista”. 

Noutra vertente, dizer que a avenida 21 de Janeiro beneficiou, nos últimos anos, de obras de reabilitação em vários dos seus troços. Destacam-se a colocação de lancis nos passeios, arranjos das redes técnicas de energia eléctrica,  telefones, condutas de água, colocação de separador  central, construção de passeios para peões, passagens superiores e a melhoria do sistema de drenagem das águas fluviais.

Dada a importância da avenida 21 de Janeiro, não só para o Rocha Pinto mas para toda a cidade de Luanda, vamos reter-nos um pouco mais no historial da instituição cuja data de fundação deu origem ao seu nome.  A Força Aérea Nacional resulta da integração nas Forças Armadas Angolanas da antiga FAPA/DAA, cuja principal base está precisamente no início da avenida 21 de Janeiro. Este ramo das Forças Armadas  atravessou várias etapas: na primeira, segundo reza a história, procedeu-se à integração de alguns quadros provenientes da guerrilha, com a finalidade de organizar o processo de fundação da Força Aérea. Simultaneamente procedeu-se à mobilização, recrutamento, selecção e incorporação de cidadãos formados, pilotos e técnicos,  que serviram a Força Aérea Portuguesa e a antiga Direcção de Transportes Aéreos (DTA).

Entre 1977 e 1978  foram organizadas as primeiras esquadras  operacionais de All-III, MIG-17 e de transporte e reconhecimento com aeronaves do tipo DC-3, Cessna e Islander.

A partir de 1978 registou-se a chegada ao país dos primeiros quadros nacionais formados em Cuba e na ex-União Soviética e  a recepção e implantação do sistema de Defesa Anti-Aérea e da Rede de Radares de Vigilância, que em 1987 viriam a desempenhar um papel importantíssimo na Batalha do Cuito Cuanavale. Em 1981 foi criada a Escola Nacional de Aviação Militar Comandante José Maria Paiva "Bula”, no Negage, como resposta à necessidade de pessoal aeronáutico no interior do país.

Quatro anos depois  é criada a Escola Nacional de Aviação Ligeira Comandante Nzembo Faty "Veneno”, no município do Lobito.  Entre 1985 e 1988 a Força Aérea passa a ser equipada com meios de ataque e de defesa anti-aérea tecnologicamente evoluídos, o que lhe permite ter uma acção de vigilância em toda a extensão do território nacional.


Prédio Café, referência incontornável

No tempo colonial, o lendário Prédio Café era propriedade de um comerciante português que se instalou no Rocha Pinto nos anos 1950. O seu negócio era a venda de produtos de primeira necessidade. Trata-se do senhor José Manuel, que à semelhança do senhor Carvalho, no Cassenda, dominava o comércio  na zona a escassos metros do antigo controlo em direcção à Samba.

Homem de trato fácil, segundo relatos de alguns moradores, esse comerciante era bastante atencioso com os populares que viviam nas casas adjacentes à sua loja. É assim que alguns destes populares, na sua maioria funcionários públicos, beneficiavam de "vale” ou "fiado” (crédito) para aquisição de bens de primeira necessidade, e não só, na loja.

Nessa área do Rocha Pinto (Prédio Café),  na zona fronteiriça  com os bairros da Samba e do Prenda, para além da casa do comerciante José Manuel, existiam  residências de gente assimilada, segundo Carlos Kinguaya, um antigo morador. O nome do prédio foi dado já no pós-independência, quando o seu proprietário, o comerciante José Manuel, no eclodir do conflito armado, fugiu  para a Metrópole (Portugal) com a respectiva família.

Depois do confisco por parte do Estado, o imóvel foi entregue ao Ministério da Agricultura, que lá instalou a empresa que fazia a comercialização de café, que se denominava ENCAFÉ. A verdade é que, com o andar do tempo, a fértil imaginação popular transferiu para o prédio parte do nome da empresa que o ocupava. Daí o nome Prédio Café, uma referência obrigatória quando se quer atingir aquela zona do bairro  Rocha Pinto, e não só.

No pós-independência, a zona viu nascer  uma  paragem de táxi e um mercado informal de referência, bem próximo ao Prédio Café. O mercado passou a chamar-se Praça do Imbondeiro.

De referências não é tudo. A rua que separa os bairros Prenda e Rocha Pinto, para quem vem do Gamek e que desemboca na área da Samba passando pela passagem inferior, é uma referência que deve ser retida por qualquer automobilista consciencioso, pois é uma escapatória para quem pretenda atingir o centro da cidade quando a avenida 21 de Janeiro está engarrafada.

Por fim, dizer que o maior presente que os moradores do Rocha Pinto esperam receber um dia das autoridades é a notícia da requalificação do bairro, que, acredita-se, vai melhorar as condições de habitabilidade e, em geral, de vida das pessoas.

Esta é a radiografia possível do bairro Rocha Pinto, que, dentre várias outras queixas dos moradores, nunca beneficiou de projectos de canalização de água ao domicílio.

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