Reportagem

Vacinas da Coreia dão outro impulso ao controlo de doenças infecciosas em África

Augusto Cuteta

Jornalista

O Instituto Internacional de Vacinas (IVI, na sigla inglesa), na Coreia do Sul, vai reforçar, a partir de agora, a presença em países pobres e em desenvolvimento, com especial atenção aos do continente africano, no sentido de ajudar estes Estados a atingirem uma maior cobertura vacinal.

07/08/2023  Última atualização 10H37
© Fotografia por: DR

Essa estratégia do IVI, segundo a professora Se Eun Park, da Unidade Clínica, Avaliação, Regulação e Avaliação (CARE) dessa instituição internacional sedeada em Seul, surge do facto de muitos países dos continentes africano e asiático serem os mais afectados por doenças e os que menos cobertura vacinal registam.

Por exemplo, uma dessas doenças preveníveis, mas que África e Ásia ainda não controlaram é a cólera, uma infecção diarreica que atinge ambientes pobres e superlotados.

A situação da cólera, na visão dos especialistas do IVI, agrava-se, ainda, mais com as alterações climáticas, que estimulam eventos extremos, como furacões, inundações e secas, força a migração e obstrui o acesso à água potável e ao saneamento.

"Com isso, os focos de cólera e outras doenças transmitidas pela água têm vindo a aumentar de forma alarmante em todo o mundo”, lamentou Se Eun Park.

O IVI, com apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outros parceiros internacionais, quer melhorar as políticas de acesso aos cuidados de saúde em países de África e Ásia, até por que a cólera, uma vez detectada é facilmente tratável com hidratação adequada e antibióticos, evitando que seja mortal.

Enquanto isso, a situação da cólera, segundo dados apresentados pelo IVI a um grupo de jornalistas africanos que visitou a Coreia, recentemente, é preocupante, por afectar pessoas de todas as idades, numa média de cerca de 2,5 milhões, e provocar a morte de quase 100 mil, em todos os anos.

Para os responsáveis do IVI, a prevenção é a "arma” para reduzir as mortes e controlar os surtos de cólera, exigindo um esforço concertado que visa eliminar o estigma das doenças infecciosas associadas à pobreza; reforçar os sistemas de vigilância para determinar com precisão os seus encargos e melhorar o acesso à água potável, ao saneamento e aos cuidados de saúde de rotina.

Entre outras acções, o IVI defende o desenvolvimento de vacinas novas e melhoradas, assegurar um fornecimento global adequado de vacinas de baixo custo e garantir a vacinação às comunidades vulneráveis à cólera endémica e epidémica.

É desta forma que o IVI, organismo que existe há 25 anos, vai actuar em grande parte dos países pobres e em desenvolvimento, para diminuir os casos de pessoas atingidas pela cólera e baixar as estatísticas de óbitos por esta doença.

 
Angola entre os países endémicos

Em 2012, a carga global apontava que 1,4 biliões de pessoas estavam em risco de cólera em países endêmicos. Estimava-se que 2,8 milhões de casos de cólera ocorriam, anualmente, nestes países e perto de 87 mil casos de cólera eram registados em nações não endémicas.

O IVI referiu que a incidência era maior em crianças com menos de cinco anos. Todos os anos, cerca de 91.000 pessoas (intervalo incerto: 28.000 a 142.000) morrem de cólera em países endémicos e 2500 pessoas morrem de doença em países não endémicos.

Passados três anos, a carga global da cólera em países endémicos, incluindo Angola, de acordo com dados à disposição do IVI, atingiu de 1,3 a 40 milhões de casos e de 21 mil a 143 mil mortes em todos os anos.

Os dados dão, ainda, conta que 2,9 milhões de casos e 95 mil mortes em 69 países endémicos ocorreram, em 2015, com grande incidência sobre a maioria dos países da África Subsariana.

Angola está na lista dos países africanos que notificaram, neste período, entre 10 mil e 25 mil casos de cólera por ano.

A situação no país melhorou nalguns aspectos, mas o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) ainda aponta que, em 2021, Angola procurava recuperar atrasos na cobertura vacinal, uma vez que 43 por cento de menores de cinco não tinha recebido nenhuma dose de vacina, daí a necessidade de um aumento do financiamento para ajudar na reorganização de serviços.

A baixa cobertura de saúde primária e as limitações para armazenar imunizantes, na visão do Unicef, eram alguns dos desafios para a expansão da vacinação em Angola.

Por causa disso, o país está na lista das 20 nações com maior quantidade de crianças que não receberam nenhuma dose de vacina, principalmente no meio rural, onde quase 50% dos menores estão nesta condição.

À ONU News, o chefe de Saúde e Nutrição do Unicef/Angola, Frederico Brito, defendeu mais iniciativas e oportunidades para o fortalecimento da vacinação desde os níveis institucionais ao comunitário.

 
Intervenção do sector Privado

Frederico de Brito descreveu que nas zonas urbanas está a crescer o sector Privado de atendimento na área da Saúde. Por isso, defendeu que haja negociação com as entidades que providenciam serviços privados para que possam ter um pacote completo de cuidados de saúde primários, incluindo a vacinação.

Neste sentido, o técnico do Unicef disse que este caminho pode ser alcançado por meio de convênios com o Executivo, para que, de facto, esse direito básico das crianças angolanas e, também, das mulheres seja realizado em toda a rede sanitária disponível.

Frederico de Brito reforçou a ideia deste plano, pelo facto de Angola ter vivido um conflito de longa duração, que destruiu a infra-estrutura sanitária no nível periférico. Como resultado, disse, a parcela da população coberta por serviços de saúde não passa de 60%.

Apesar disso, o especialista do Unicef elogiou os esforços do Executivo angolano em aumentar, gradativamente, o percentual do Orçamento Geral do Estado (OGE), ao investir no sector da Saúde 15% das verbas, contrariamente aos 7% anteriores.

 
Ajuda financeira para travar a cólera

Voltando à problema da cólera no mundo, os dados da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam que mil milhões de pessoas em 43 países correm o risco de contrair a doença.

Um dos factores que está na base do aumento deste risco, segundo a ONU, é a falta de recursos para combater a pandemia.

"Existe uma pandemia a matar pobres à frente dos nossos olhos e sabemos, exactamente, como pará-la, mas precisamos de mais apoio e menos inércia da comunidade mundial”, afirmou, em Genebra, o chefe da Unidade de Emergências de Saúde Pública do Unicef, Pfaffmann Zambruni. Para evitar esse cenário, a ONU precisa de quase 600 milhões de euros para combater a doença. "É uma situação que não esperar, porque a situação pode piorar”, realça a instituição mundial.

Desde o início do ano, pelo menos 24 países relataram surtos de cólera, um número que ultrapassa os 15 do mesmo período no ano passado, fruto do aumento da pobreza, conflitos armados, alterações climáticas e de pessoas deslocadas ou refugiadas.

Por causa dessas situações, os recursos de luta contra a doença ficam cada vez mais dispersos, afirmam os especialistas. À título de exemplo, realçam que foram solicitadas mais de 18 milhões de doses de vacinas, desde o início deste ano, mas apenas oito milhões estão disponíveis, o que obrigou à interrupção das campanhas de vacinação.

 
Moçambique e Malawi,os mais afectados neste ano

Moçambique e Malawi são os países mais afectados por casos de cólera, durante este ano, numa lista em que constam outros nove países considerados como estarem numa fase de "crise aguda”.

Além de Moçambique e Malawi, segundo a OMS, a situação da cólera é extremamente preocupante no Burundi, Camarões, República Democrática do Congo, Etiópia, Quénia, Somália, Síria, Zâmbia e Zimbabwe. A contribuir para isso, está, igualmente, a questão do fornecimento de vacinas que continua baixo, numa altura que só cerca de 37 milhões de doses estão disponíveis para este ano.

Este facto, realçam especialistas da OMS, obrigou que as campanhas de vacinação tivessem de substituir as duas doses recomendadas em áreas de risco de surtos por apenas uma. Face ao avanço da doença, a OMS pediu, neste ano, pela primeira vez, aos países e instituições doadores um fundo específico de 25 milhões de dólares para combater a cólera.

Nesta altura, a taxa de mortalidade devido a surtos de cólera subiu, em 2021, para 2%, percentagem que os especialistas acreditam ter-se mantido no ano passado e em 2023. Para já, a OMS alerta que o mundo enfrenta um défice de vacinas contra a cólera, um problema que pode se arrastar até 2025.

 
Vacinas de baixo custo através do IVI

Este grito de socorro da OMS sobre a necessidade de se aumentar as doses de vacinas, para impedir que mais de mil milhões de pessoas morram de cólera, mobilizou o IVI, que está a transferir tecnologia, com vista a levar aos países endémicos mais vacinas orais de baixo custo.

Neste sentido, as instituições que estão dentro do IVI, estão há alguns anos a trabalhar na tranferência de tecnologia. É o caso da Shantha, uma companhia indiana, produziu a Shanchol. Essa tecnologia foi transferida, em 2008, e licenciada na Índia, em 2009, e pré-qualificada pela OMS em 2011.

Enquanto isso, na Coreia do Sul, surgiram as vacinas Euvichol e Euvichol-Plus, com transferência de tecnologia em 2010/2011, licenciadas neste país asiático, em 2014, e pré-qualificada pela OMS, em 2015 e 2017, respectivamente.

Em 2014, a Incepta, de Bangladesh, produziu a Cholvax, que foi licenciada neste país para uso doméstico em 2020. Antes disso, a Vabiotech, do Viatname, surgiu com a mORCVAX, que foi  reformulada e licenciada para atender aos padrões da OMS. Também, chegou a ser autorizada no Vietname para uso doméstico, em 2009.

Entre as produtoras de vacinas para controlar a cólera está, igualmente, a sul-africana Biovac, com transferência de tecnologia neste ano e iniciado, igualmente, em Janeiro último.


Outros males, novos desafios

O IVI, que tem 40 membros, entre os quais países africanos como o Rwanda, Egipto, Senegal e Libéria, mais a OMS, além de produzir vacinas contra a cólera, também, desenvolveu outros produtos de imunização e controlo de doenças.

O IVI e parceiros têm desenvolvido programas para controlar e eliminar doenças como salmonella não tifóide invasiva (iNTS), estreptococos do grupo A, SFTSV, shigella, hepatites A e B, tuberculose, AAdV-55 e Covid-19.

Na lista, consta ainda acções de pesquisas e desenvolvimento de produtos para combater a paratifoide A, zika, hentavirus, doenças pulmonares, Síndrome HPS, febre de Lassa, MERS, MERS-CoV, dengue, chikungunya, shistosomíase e o HPV (Papilomavírus humano).

Quanto ao HPV é uma infecção sexualmente transmissível que afecta milhões de pessoas no mundo e pode levar a patologias no sistema reprodutivo, como condiloma acuminado, comumente chamadas de verrugas genitais.

No quadro desses programas, o IVI contribuiu para que, 2020, os casos de mortes de cólera fossem reduzidos em 20% e pode alcançar os 50% até 2025. Mas, os esforços é que atinja os 90% em 2030 e garantir a eliminação da doença em 20 países.

 
Multiplicar o impacto das iniciativas

Este ano, o IVI pôs em marcha uma estratégia de cinco anos para aumentar o seu alcance e multiplicar o impacto, através de três iniciativas. A primeira tem a ver com a amplificação das capacidades centrais da instituição em investigação laboratorial, desenvolvimento de vacinas, epidemiologia, vigilância e eficácia dos produtos imunizantes.

A segunda iniciativa está relacionada com a expansão da sua presença internacional e, em terceiro lugar, o IVI vai estabelecer uma estrutura de governação mais inclusiva e reactiva.

Como operador do programa Global Training Hub for Biomanufacturing da OMS, em parceria com o Ministério da Saúde e Bem-Estar da Coreia e OMS, o IVI está, igualmente, a liderar cursos de treinamento e reuniões de consulta para, em última análise, aumentar a capacidade de fabricação de vacinas em países de baixa e média renda.


Outros feitos em 25 anos de existência

Nos últimos 25 anos o IVI, com os seus 39 países e a OMS como Estados-membros da Ásia, África, América e Europa, conseguiu instalar laboratórios de biossegurança de nível 3, os chamados BSL3, na sua sede.

Desenvolveu duas vacinas orais contra a cólera com baixos custos de desenvolvimento e instalou o  laboratório para licenciar a vacina conjugada tifoide (Vi-DT).

Entre os feitos do IVI, está ainda o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19, em parceria com mais de 20 empresas que garantiram um total de mil milhões de doses à COVAX.

Há, igualmente, a assinalar a disposição de vacinas para nove doenças infecciosas de importância para a saúde global em ensaios clínicos.

Nos últimos anos, a instituição contribuiu para que mais de um milhão de pessoas fossem vacinadas, através de campanhas em toda a África e Ásia.

Fora isso, os especialistas do IVI publicaram mais de 1.300 artigos em revistas e a patrocinou cerca de 40 ensaios clínicos, desde 2005.

Mais de três mil profissionais de vacinas foram treinados, no quadro do Curso Internacional de Vacinologia anual do IVI.

Desta forma, nos seus 25 anos de aceleração das vacinas para a saúde global, o IVI acredita que a imunização segura e eficaz deve ser acessível às pessoas mais vulneráveis do mundo.

"Através de pesquisas, parcerias e capacitações, continuaremos a trabalhar para um mundo livre de doenças infecciosas”, rematou o director-geral do IVI, Jerome Kim, num artigo sobre os 25 anos da instituição, comemorados no ano passado.

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