Opinião

“Vamos a Calumbo andar de barco, lá também tem”

Guida Osvalda

Todos os vizinhos já tinham ido e gabavam-se de lá ter estado. Na rua e nas imediações, não se falava de outra coisa, senão do grande barco que estava atracado no Porto de Luanda. Eram tantos relatos que despertou a curiosidade de Mariquinhas.

11/08/2024  Última atualização 11H42

Ela não queria ficar de fora deste grande evento e os filhos também não. No entanto, Tunico, marido de Mariquinhas, fazia-se de surdo.

 - Até o casal de mais velhos que mora no fundo da rua foi ver o maior barco do mundo que tem livraria. Sabes que o senhor tem mais de 80 anos, não pode calçar sapatos fechados e foi mesmo de chinelos? Ele anda com o apoio de uma bengala, mas em companhia da mulher foi no barco? - Mariquinhas reclamou junto do companheiro, com esperança de despertar nele alguma curiosidade sobre o assunto.

- Não é o maior barco do mundo. Este barco tem somente a maior livraria flutuante do mundo – o esposo de Mariquinhas respondeu com certa indiferença antes de fechar-se em copas.

O tempo está a escassear! Tenho apenas mais um dia e o barco vai embora – a mulher matutou uma forma de sair de casa com os sete filhos, incluindo uma menina de quatro meses de idade. E o pior é que o Tunico não encoraja, pelo contrário tenta a todo custo matar o sonho dela de sair com os filhos para ver o barco. Acha que levar as crianças ao barco é uma perda de tempo:

- Mas, Mariquinhas, achas mesmo, que esses nossos filhos que nunca foram numa Biblioteca ou Mediateca, vão achar interessante uma livraria cheia de livros em inglês?

- Rheeeé! Tunico sabe desencorajar e matar o sonho dos outros ya, -  ela pensou desanimada. Sem consultar novamente o marido, decidiu carregar os filhos para ver o barco. A mulher sabe que os livros são caros, mas nunca teve o dilema entre comprar os livros escolares ou os de contos e aventuras para os filhos. Para ela os escolares eram prioridade e o resto vaidade. Mas ainda assim decidiu levar às crianças também para sair da mesmice: - Elas estão de férias e vão ter uma aventura para contar quando regressarem às aulas no próximo ano lectivo, pensou.

Sabia que o barco estava no porto de Luanda e nada lhe impediria de lá ir. Para garantir que os filhos não passassem fome, preparou um farnel na véspera. A merenda foi cuidadosamente colocada numa mochila.     

Eram 6h30, quando chegou ao Porto e já estavam na fila centenas de madrugadores, entre idosos, bebés de colo, crianças e adolescentes. Havia grupos organizados de escuteiros, desbravadores e até crianças do pré-escolar de algumas creches.

Todos estavam na fila para ver o navio que tinha a maior livraria com títulos em 10 línguas diferentes. Mariquinhas sentiu-se confortável por ver outras mães com bebés de colo. Pelo menos não era a única mulher que carregava tanta criança. Por volta das 9h30, começaram a registar-se as tentativas de cunhas para furar a fila, os ânimos ficaram exaltados e registaram-se acesas discussões que os agentes da polícia conseguiram controlar.

O número de pessoas aumentou. Era uma avalanche de gente que descia de autocarros, táxis colectivos e privados e de carros próprios provenientes de todas as partes de Luanda.

O número de crianças superava o de adultos: - O interesse é mesmo a livraria? Mariquinhas perguntou-se. No seu caso, a intenção era somente ver por dentro de um  navio e proporcionar um momento extraordinário para os filhos.

- Depois de assistir ao "Titanic” sempre sonhei em subir num barco  – Mariquinhas ouviu  uma adolescente cheia de euforia dizer para um rapaz com ar de sabe tudo. – Espero que este não afunde...

 - O Logos Hope não corre esse perigo – o rapaz respondeu cheio de convicção. – Amanhã, será o último dia em Luanda. Saiu da Namíbia para o nosso país e em seguida vai zarpar para outras terras… provavelmente o Gana.

Mariquinhas observou que para não permitir especulações, os bilhetes, no valor de 500kwanzas, eram vendidos presencialmente. Tamanho rigor deixou algumas pessoas zangadas, pois estavam ali apenas para comprar os bilhetes a fim de visitar a livraria no período da tarde ou para esperar por outros membros da família e amigos que aguardavam por um sinal para chegar à Baía de Luanda. Para sua alegria, ela teve que comprar apenas dois bilhetes, um para ela e outro para o filho de 14 anos de idade.

Depois de longa espera, bem organizados, Mariquinhas e os sete filhos foram encaminhados para um dos quatro autocarros disponíveis para encaminhá-los para o navio. Dentro do navio, ela, assim como os outros visitantes, foi acomodada numa sala oval que parecia uma canoa, com uma grande tela, onde um jovem que falava espaninglês começou a palestrar sobre a história do navio com a maior livraria flutuante do mundo.

A mulher não entendeu absolutamente nada do que o jovem alto e loiro falava e não foi a única: ouviu um burburinho atrás de si das pessoas que questionavam se não havia ninguém no navio para passar a explicação em português aos visitantes.

Quando a comitiva entrou finalmente na livraria, os seus filhos, assim como as restantes crianças, correram para todas as direcções onde estavam expostos mais de cinco mil livros escritos em diversas línguas, com destaque para o inglês. As dezenas de crianças conseguiram, em pouco tempo, desarrumar as estantes, misturando todos os livros. No canto do olho, viu o seu quinto filho, de seis anos de idade, a colocar um livro com a capa muito colorida embaixo do braço.

- Mamã, eu quero esses aqui. – O pequeno havia colectado mais quatro livros. – Vou levar o que está em inglês.

- Vou te dar um soco! – Mariquinhas ameaçou o filho com rispidez. - Você nem o abecedário em português sabe e quer um livro que está escrito em língua estrangeira? Só bicho…

Mariquinhas foi comparando os preços com os do mercado nacional e de facto os da Hope estavam relativamente mais baratos, principalmente os livros cristãos, incluindo as diversas Bíblias.

- Papá, quero esse. – Mariquinhas viu, no canto do olho, uma pré-adolescente a indicar uma diversidade de livros, incluindo uma Bíblia infanto-juvenil e sorriu quando ouviu a resposta do progenitor: 

- Não, não queres nada! Isso não é assim"ah quero um livro e pronto”. Vocês são três, assim compro pra quem? E aqui nem aceitam multicaixa nem nada. - O senhor desculpou-se afastando rapidamente os filhos da secção de livros em português para outras áreas. 

Mariquinhas ficou aliviada quando se apercebeu que não era a única pessoa que tinha subido para a maior livraria flutuante do mundo só por curiosidade. Algumas pessoas andavam pela livraria sem demonstrar sequer interesse pelos livros. Já tinha conseguido atingir o objectivo: estar a bordo de um navio.  

Na saída da livraria, Mariquinhas viu uma diversidade de desenhos que retratavam a história do Filho Pródigo, uma parábola bíblica contada por Jesus Cristo.

Como não comprou nenhum livro e nem tinha dinheiro para comprar pipocas ou gelados decidiu, no restaurante do navio, dar o lanche para os filhos que também aproveitaram brincar naquele espaço. Passaram-se duas horas e Mariquinhas, achou que tinham permanecido no navio tempo suficiente. No entanto, na hora de sair, a filha de quatro anos desatou aos gritos. O choro da criança chamou atenção de todos: a menina recusava-se a sair do navio!  

- Ainda não, mamã. Não quero sair, o barco ainda não andou. Mamã, quero ver o barco a andar na água...

-Era o que me estava a faltar – pensou Mariquinhas que procurava uma forma de acalmar a filha que, entretanto, literalmente foi arrastada pelo irmão mais velho para fora do navio.

- Mamã… vamos esperar um pouco! Só até quando o barco andar no mar. Como é que vamos já a casa, se o barco ainda não andou? – A criança perguntou aos soluços. – Não viemos para andar de barco?

- O barco está avariado – o filho mais velho de Mariquinhas respondeu pausadamente. – Vês as cordas que estão presas no barco? – Perguntou, indicando os cabos da âncora principal. -  São para evitar que o barco afunde. Vês aquelas manchas castanhas no barco? – Apontou indicando a proa do navio. - Precisam de ser pintadas. Vamos chamar o tio Rui, o mecânico que trabalha no carro do papá para arranjar o barco, ok?

- Depois do tio Rui arranjar o barco, vamos passear nele no mar? – A pequena fungou enquanto enxugava as lágrimas cheias de esperança de que cedo ou tarde vai ter o prazer de andar de navio.

Mariquinhas suspirou aliviada olhando para o seu primogénito que abraçado à irmã prometia:

- Enquanto o tio Rui não arranja este barco, vamos até Calumbo andar de barco, lá também tem.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião