Opinião

A manufactura verbal do poema

José Luís Mendonça

Wystan Hugh Auden, (1907 – 1973), poeta e crítico inglês, escreveu um dia que “um poema, seja o que for suplementarmente, é um artefacto verbal que tem de ser construído tão hábil e solidamente como uma mesa ou uma motocicleta.”

11/04/2021  Última atualização 08H41
Esta consideração utilitária da poesia entra em contradição insanável com a teoria da arte pela arte e da chamada poesia hermética, mas colide muito mais com a poesia livresca, poesia sem chão, poesia que ignora, foge ou escapa deliberadamente do património cultural individual do autor, a sua experiência vital, seja ela qual for.
Na manufactura da sua bicicleta verbal, o poeta angolano passa a utilizar ferramentas e outros elementos de ordem sócio-linguística, visto que operamos com uma ferramenta de origem externa: a língua portuguesa.

"As culturas equivalem-se. É na diferença e na pluralidade que se encontra o sentido de humanidade”, disse José Ephim Mindlin, escritor  brasileiro. Esta constatação levanta uma questão muito polémica nos nossos dias e de grande relevância aqui em Angola, país que tem uma língua oficial europeia: o português.
Permitam-me que me socorra do mestre da literatura portuguesa, José Cardoso Pires, quando disse, numa entrevista, que "a mim o que me faz escrever é isso, cada livro é uma busca da minha identificação com o país e comigo próprio”.

É nessa esteira que a ensaísta Ana Isabel Serpa, a propósito deste mesmo escritor, refere que "a obra literária surge como herança e património, como monumento, não deixando, a seu modo, de ser também um documento que reflecte uma época, alberga memórias de um país, vozes, dialectos e falas de classes sociais distintas”.

Portanto, podemos concluir, lendo diversas obras de autores universais, tais como o Prémio Nobel sueco Tomas Tranströmer, que os seus escritos reflectem necessariamente comportamentos viscerais da alma dos seus povos e nações.


"Histórias de marinheiros” (1954)
(Tomas Tranströmer)

"Há dias de inverno sem neve em que o mar é parente  / de zonas montanhosas, encolhido sob plumagem cinza, / azul só por um minuto, longas horas com ondas quais pálidos / linces, buscando em vão sustento nas pedras de à beira-mar. / Em dias como estes saem do mar restos de naufrágios em busca / de seus proprietários, sentados no bulício da cidade, e afogadas / tripulações vêm a terra, mais ténues que fumo de cachimbo. / (No Norte andam os verdadeiros linces, com garras afiadas e olhos sonhadores. No Norte, onde o dia / vive numa mina, de dia e de noite. / Ali, onde o único sobrevivente pode estar / junto ao forno da Aurora Boreal escutando / a música dos mortos de frio).”

Comparemos agora o poema de Tranströmer com este da oratura Kwanyama:

Haisikoti
"Haisikoti, a tua vinda é saudada pelas grandes rãs / e pelas aves aquáticas, / e também pelo homem nobre que perdeu o rabo / quando a chuva aparece, diz: / "eu mato a tua sede, ó terra ressequida! / Esmago-te com água! / Só o areal é forte como eu e me resiste.” / A manteiga da chuva é a rã. / A sua gordura é a tartaruga. / As primeiras chuvas não matarão os bois magros e velhos. / E tu, ó pastor, vais chupar muitos dias de leite / nas tetas das vacas. / A chuva é a mão do cesto no Cacimbo.”

É esta marca, esta inserção natural da obra literária como diferente e plural e que a identifica com o país e com o próprio autor, como um documento que reflecte uma época, alberga memórias de um país, vozes, dialectos e falas de classes sociais distintas, ou seja os tais comportamentos viscerais da alma dos seus povos e nações, que me levou e leva a acesos debates com alguns escritores angolanos que defendem uma pretensa universalidade e uniformidade do discurso literário.

A oficina do poema

O facto de o poema segregar a experiência vital do autor remete-nos para outras questões, como a indagação do processo criativo e daquilo que um escritor chamou de "a premência da transpiração sobre o texto literário”. Como construir um poema com força para existir perenemente?
O professor brasileiro Guilherme Ribeiro atesta:

"Só as obras bem escritas hão-de passar à posteridade”. Essas palavras foram escritas por um naturalista, o Conde de Buffon, conhecido por uma frase que se tornou famosa (le style c'est l'homme même) ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753.
O escritor português Aquilino Ribeiro atesta assim o valor do estilo: "Em literatura o estilo é como o álcool para os corpos embalsamados: conserva-a. Toda a literatura que resiste à corrosão do tempo deve-o ao estilo. Homero, Cícero, Shakespeare, Camões, Voltaire, Tolstoi foram grandes estilistas. Quer isto dizer que o estilo seja uma arte? De modo algum. Mas sem estilo nenhuma obra se salva.”

Por seu turno, Juan Rulfo, escritor mexicano, autor de Pedro Páramo, traz-nos uma elucidação muito útil para a novíssima geração congregada em tertúlias literárias juvenis:
"O trabalho é solitário, o trabalho colectivo na literatura é inconcebível. (…) O poeta tem de ir refreando o cavalo e não partir disparado: se dispara e escreve por escrever, as palavras saem-lhe umas atrás das outras e, então, pura e simplesmente, fracassa. O essencial é, precisamente, contermo-nos, não partirmos desenfreadamente, não nos esvaziarmos (…) um dos princípios da criação literária é a invenção, a imaginação”.

O grande desfio da poesia angolana deste século XXI é um desafio sem limites, em continua progressão, como na aporia filosófica, em que uma resposta traz outra questão maior. Contudo, no dizer do grande poeta antilhano, Aimé Césaire: "Há coisas fundamentais que são sempre verdadeiras. (…) A assimilação, isso significa a alienação, a recusa de si mesmo. (…) para mim, o equilíbrio essencial devia se fazer a propósito da identidade. Daí a importância da cultura.”
Este esforço incide numa re-apropriação cultural e no resgate da tradição, configurando, assim, a tentativa de evitar a repetição dos paradigmas ocidentais.
Foi este precisamente o legado que nos deixou a geração da revista Mensagem (1950-1953) para quem "A nova poesia de Angola teria de encarar o ritmo-emoção característico do homem africano; ritmo-emoção esse que lhe era transmitido pela própria natureza em que ele se integrava e com quem vivia em contacto directo e em plena comunhão.”

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