Opinião

A rota do machimbombo do munhungu

Elias Quissanga

Neste mês dedicado ao trabalhador, trouxemos uma reflexão, recuperando uma memória que fez parte do dia-a-dia da vida de muita gente humilde e trabalhadora que viveu nos musseques de Luanda no final da década de 1950 e princípio de 1960, propriamente no período colonial.

05/05/2024  Última atualização 10H27

Referimo-nos ao emblemático machimbombo do munhungu, cujo nome resulta, sem sombra de dúvida, da criatividade da gente dos subúrbios luandenses, que apesar de estar a viver   sob opressão colonial tinha, como diz Paulo Flores: "Uma forma alegre de chorar”.

Tudo pejorativo! O pejorativo aqui, talvez seja a palavra ou o adjectivo certo para descrever exactamente este machimbombo. A partir do nome, que segundo a memória popular, provém do Kimbundu e que, traduzido para o português, quer dizer "prostituta”, expressão que provavelmente terá sido atribuída pela mania herdada do colono, que tinha a tendência de taxar tudo o que tivesse a ver com a gente do musseque duma forma pejorativa ou rotulá-lo com o selo de inferioridade.

Ora veja: o kota Cirineu Bastos, um grande conhecedor das histórias da Luanda colonial, por ter vivido parte da sua juventude nela, segredou-nos que o machimbombo do munhungu terá chegado a Luanda em 1957, e na altura, um dos responsáveis da Câmara Municipal ordenou que se lhe retirassem todos os assentos estofados e modernos para que se lhe fossem colocados bancos corridos de madeira porque se destinavam apenas aos habitantes dos musseques, que, pejorativamente, eram denominados "pés descalços” ou "descamisados”.

Pelo seu aspecto físico e a forma como os nativos eram transportados, não é exagero da nossa parte afirmar que o machimbombo do munhungu era também o símbolo da opressão e da desigualdade social que se vivia na Luanda colonial. Havia apenas dois machimbombos, o 15 e o 19, cujas rotas eram: a do Rodrigo Magalhães, no musseque Sambizanga, para o largo Maria da Fonte no Kinaxixi; e a da Maria da Fonte para a floresta no Rangel.

A viagem custava um escudo e meio e o seu trajecto, em termos de lotação no período matinal, era quase sempre descendente, ou seja, da periferia onde vivia a grande massa da população nativa e com poucos recursos, para o centro económico da cidade do asfalto. Eram, como diria Ervedosa no livro "Roteiro da Literatura Angolana”: "[...] criados, pedreiros, carpinteiros, lavadeiras e quitandeiras que desciam a cidade todos os dias no cumprimento dos seus afazeres [...]”. E ao contrário do que se pretendia fazer crer, havia muita gente pacata, com uma educação e sentido de responsabilidade de elevado gabarito.

No interior do machimbombo, o ambiente era frenético, bastante animado e muitas vezes funcionava como um amenizador das makas do dia-a-dia advindas da discriminação social a que os nativos estavam sujeitos. Por lá, todos os problemas sociais passavam por um crivo, e discutia-se: para além dos assuntos políticos, havia conversas diversas e diversificadas, uns falavam dos amores que "kagavam”, outros sobre as suas decepções, havia quem falasse dos craques dos musseques, mas havia ainda os mais audazes, que cochichavam sobre a PIDE(Polícia Internacional de Defesa do Estado)e se atreviam a pôr os outros a par dos assuntos da actualidade.

Portanto, já na cidade, lá ia a quitandeira com a bacia à cabeça, colorindo as artérias vestida à bessangana, animando a cidade com o pregão: "é mbiji, é mbiji é é é, é mbijiyangolosso”… Era graças a si que o Sô Santos, o colono da Baixa, tinha peixe fresco e grosso. E o Zeca então! O menino engraxador do bairro indígena, tal qual cantou Tonito, num texto escrito por Jofre Rocha, sentado numa esquina próximo ao edifício da Fazenda, atraía sobre si os funcionários da Administração Colonial, facturando de "kaxexe”, como diria Bonga, através de um pregão que mais parecia um canto, cujos versos denunciavam a sua condição: "[...] preta ou castanha tem pomada branca, olha graxa patrão, [...] sai graxa patrão, pode sentar freguês, sapato fica bem limpo [...]”.

Do outro lado da rua, entre a multidão com passos apressados e quase entrechocando-se, cenário próprio duma cidade em crescimento, estava o puto Xicola, o ardina mais afamado do bairro da lixeira, que, com as mãos estendidas, distribuía os jornais colocando os citadinos do asfalto informados sobre o que se passava na metrópole. 

Esta é apenas uma pequena amostra da reconstituição da memória daquela que era a rotina diária de muita gente batalhadora, anónima e quase invisível para a administração colonial, mas sem a qual, muitas das benesses desfrutadas por aquela burguesia não seria possível. Entretanto, depois da labuta, segundo Ervedosa: "nas noites de sábado, recebiam a féria, e encontravam no batuque à luz da fogueira [...] a desforra de uma árdua semana de trabalho”. Era assim que o musseque fervilhava de alegria, ao ritmo da Puita, com a percussão da Dikanza, no dedilhar da guitarra e no requintar da "Kilumba”. É deste modo que se forjava a ideia de nação livre e independente para lá do asfalto.

Esta é a nossa singela homenagem a todos os trabalhadores que diariamente se levantam, vão à luta sonhando edificar uma Angola que seja próspera, onde haja o respeito pela diversidade, igualdade de oportunidades e boa terra para se viver. Bem-haja Angola.

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