Opinião

Adeus ao “Ti Manel” do Ngola Mbandi

Carlos Calongo

Jornalista

Orientado pelo Maneta, a entregar à Tia Chica (de feliz memória), um pedaço de papel que, mesmo não estando perfumado, continha a tentativa de reconciliação do namoro deles (zangava-se muito e à toa), vi-me forçado a violar a orientação de não circulação aos corredores do Ngola Mbandi, em tempo de aulas.

17/04/2021  Última atualização 07H00
Feito valente, lá fui eu, portando mais um pedido de desculpas do Maneta, que para lá de ser kota da banda é amigo dos meus irmãos mais velhos, relação que na cultura bantú nos remete à condição de kandegue dele também, obrigado a cumprir as ordens com a mesma dedicação com que cumpria a dos irmãos de sangue.
Todos sabiam que a inflação à regra, mais do que desafiar o "poderoso da escola”,custaria umas boas galhetas daquele que era um dos mais temidos funcionários do Ngola Nbandi, de sua graça, Manuel Domingos Francisco, comumente conhecido por Ti Manel, assim mesmo, com atropelo ao protocolo da escrita.

Com a mania que os puros rangelistas e cazenguistas tinham de acharem os mais vivos do Ngola Mbandi, desafiei o silêncio comprometedor do corredor que leva à sala 16 para, com êxito, cumprir a missão de relançar o namoro dos moços cangaceiros, esfregando as mãos de contente, pelo dever cumprido.

Pensando ter ludibriado a ordem, menos de dois minutos após o regresso, irrompeu à sala 3, onde estudava a sexta classe, o Ti Manel, que sem muita conversa, deu-me um soco bem composto nas costas que ficaram doridas, sem exagero, pouco mais de 20 minutos, tal era o peso da sua compleição física."Pensas que não te víné? Foste à sala 16 fazer o quê? Não sabes que em tempo de aulas ninguém deve deambular pelos corredores. Quando não tem professor na sala, têm que se ocupar estudando, para que amanhã tenhas um bom diploma…E tem mais. Saiba que diploma não se dá, arranca-se; de que forma? Estudando!

Acredito que o filho único do casal de quem muitas vezes fui o alcoviteiro, não sabe que a sua existência custou-me o soco do episódio aqui narrado, e que nem por isso fez-me abdicar da missão de ser o carteiro do seu pai, quase sempre o culpado das desavenças com a moça, uma verdadeira pétala humana revestida de invejável calma e mansidão.

Pouco me interessava com as pessoas que procuravam saber a razão do irmão do Maneta, por sinal meu amigo de idas e vindas no Ngola Mbandi e não só,  não levar as cartas. Melhor que a minha, a razão do Maneta, que veio a tornar-se meu compadre, padrinho do meu filho mais novo, tem maior e melhor serventia, aqui dispensável.

Assim como terão razão os que dizem que pai nem sempre é quem gera, mas quem cria, para muitos estudantes do Ngola Mbandi, o Ti Manel foi um pai, um homem que marcou gerações e gerações de quadros angolanos. Houve até alguém que disse, "depois do Tio Pacheco, pai do Miguel da Rádio Nacional de Angola, que é irmão cassula da Mena Pacheco, minha madrinha de casamento, o Ti Manel era a pessoa que disciplinava qualquer aluno insurrecto no nosso Ngola Mbandi”. 

Homem firme e rigoroso, Tio Manel que também celebrizou-se pela frase "Nem que te pintes com molho de tomate, se não estudares reprovas”, trabalhou no IMS de Luanda, foi director da escola Angola e Cuba, no Cazenga, onde, para além de ter deixado a sua marca, terminou a missão em ambiente de alguma crispação com certos professores, que numa Assembleia de Trabalhadores, roçaram a indelicadeza ao falar com o kota.

Nos dias de exame então, Ti Manel, sem auxílio de ninguém, controlava a distribuição e realização das provas, sozinho, e era um regalo a forma empenhada como, apressado, passava pelos corredores abanando a parte traseira que Ngana Nzambi lhe avantajou com ele, como se de uma Tia Manuela se tratasse. Era só alegria. 

Hoje, o Tio Manel já não faz parte do mundo dos vivos, os seus restos mortais repousam desde ontem, 16, no cemitério do Benfica, em Luanda, levando consigo um pedaço de quem estudou no Ngola Mbandi, nos finais das décadas de 70 e nas de 80/90.

Há mortes e mortes. Umas capazes de alterar até a programação antecipada dos textos a publicar, como foi esta que levou de nós o senhor Manuel Francisco Domingos, "Ti Manel”, uma espécie de "capataz” que, com braço duro/ferro, exerceu múltiplas funções na emblemática escola Ngola Mbandi, sobre a qual dedicarei outros testos em outros momentos. Paz eterna à sua alma.

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