Reportagem

Bairro onde foi proclamada a Independência de Angola

César André

Jornalista

Construído nos primórdios dos anos 1950 num lugar estratégico da urbe, próximo das localidades da Vila Clotilde e do Maculusso, a Vila Alice foi, em tempos idos (anos 1930/40), um matagal com enormes cajueiros, cuja fruta era muito cobiçada pelos adolescentes que viviam nas áreas adjacentes. Devido à sua localização geográfica, rapidamente começou a ser desmatado para dar lugar a uma moderna área residencial integrada por casas com diferentes tipologias.

14/04/2024  Última atualização 11H53
O bairro Vila Alice tem o seu lugar cativo na História de Angola, pois foi aqui que o Dr. António Agostinho Neto proclamou a Independência de Angola © Fotografia por: Arsénio Bravo| Edições Novembro
Na verdade, pode-se dizer que dentro da Vila Alice havia e continua a haver vários bairros. Bem se pode falar da Vila Alice como sendo o bairro dos bairros. A localidade é limitada a Norte pela Avenida Hoji-ya-Henda (antiga Avenida Brasil), a Sul pela Avenida Deolinda Rodrigues (antiga Estrada de Catete), a Leste pela Rua do Senado da Câmara e a Oeste pela Vila Clotilde.

Existe uma certa narrativa que indica que os autóctones só tiveram acesso às magníficas residências construídas na Vila  Alice nos anos 1974/75, após o início do conflito armado entre os três movimentos de libertação nacional de Angola, nomeadamente MPLA, FNLA e UNITA. Esta versão não é corroborada pelo renomado jornalista Reginaldo Silva, que reside no bairro desde o tempo colonial, mais exactamente desde 1960/61. "Eu sempre vivi aqui e sempre  estivemos todos juntos. Brancos, pretos e mestiços. A convivência era relativamente pacífica. Apesar dos pesares, com todas as brigas e diferenças vivíamos aqui todos misturados, sobretudo entre os mais jovens”, recorda o escriba.

Para Reginaldo Silva, a "mistura” existente "era resultante da própria natureza dos inquilinos da Vila Alice, um bairro feito pelo Estado português para os seus funcionários da época”.

Nem tudo era um mar de rosas naquele tempo, mas Reginaldo Silva entende que da experiência que teve enquanto criança e adolescente, seja do Bairro Económico, em particular, como da própria Vila Alice em geral, é possível dizer-se que havia, de facto, alguma coabitação social e racial sem aquela tensão que se verificava noutras zonas de Luanda, e não só.

A Vila Alice continua a ser um bairro único, de uma harmonia arquitectónica e paisagística incrível, à semelhança do Alvalade, Miramar, Cruzeiro, Bairro Azul, São Paulo, Ingombota, Maculusso e Saneamento, só para citar estes.

Reza a história que o bairro Vila Clotilde sempre esteve ligado à Vila  Alice. Separados pela Rua ex-Baltazar de Aragão, a história das suas origens é quase semelhante, desde a construção das moderníssimas residências como a toponímia. Considerada como uma das "pérolas” de Luanda, a Vila Alice teve no seu interior algumas zonas "especiais” e de grande influência, como o bairro Económico Dr. Manuel Figueira, o bairro dos Caminhos-de-Ferro, o Largo Cesário Verde e a área da Macambira.

A Vila Alice surge numa época em que o Estado colonial e alguns latifundiários proprietários dos terrenos da zona começaram a ceder os espaços aos interessados em construírem as suas moradias, pagando para o efeito uma comparticipação. Consta que nos anos 1950/1960 uma parte dos terrenos da Vila Alice eram controlados ou geridos pela antiga Comissão Administrativa do Fundo dos Bairros Populares de Angola, que tinha como seu presidente Manuel de Sousa Teixeira de Sambayo, inspector provincial de Obras Públicas. Ainda nos anos 1950, na zona adjacente ao Cinema Império (actual Atlântico), começaram a ser construídas as primeiras habitações sociais para funcionários públicos cujo salário não ultrapassasse um determinado montante, daí o projecto ter-se chamado Bairro Económico Dr. Manuel Figueira. A Vila  Alice nas pro ximidades da actual Rua Senado da Câmara era paredes meias com um musseque, coisa que deixou de acontecer porque o musseque foi deslocado para mais longe.


Reginaldo Silva

Área de transição

A Vila Alice era uma zona escolar, ou  próxima das escolas, porque foi aqui que foi construída a Escola Industrial (depois Instituto Karl Marx-Makarenko, actualmente Instituto Médio Industrial de Luanda), que está em frente ao Cine Atlântico. Do outro lado da extensa Estrada de Catete (hoje Deolinda Rodrigues) situava-se a Escola Comercial, que depois deu lugar à Escola 1º de Maio, e o antigo Liceu Paulo Dias de Novais, que foi transformado no actual Ngola Kiluanje. Paralelamente a essas infra-estruturas escolares foi, posteriormente, construída próximo à zona dos Quartéis a  Escola João Crisóstomo (actual Ngola Kanini). 

Reginaldo Silva contou que a Vila Alice era, por assim dizer, uma zona muito movimentada de transição, e muita gente passava pelo bairro. "Podemos dizer que era e é uma zona de passagem obrigatória para milhares de pessoas que transitam de um lado para o outro”.

Paralelamente a estes estabelecimentos escolares referenciados acima, havia também na Vila Alice o Magistério Primário e a Escola de Aplicação e Ensaio (hoje escola número 1168). Nessa escola eram formados os professores para o ensino primário, que, depois, iam aplicar os conhecimentos adquiridos na outra estrutura académica denominada de Aplicação e Ensaio. "Era um projecto sequencial”, explicou Reginaldo Silva, que na primeira metade dos anos 1960 fez lá a 4ª classe.

Bairro Económico

É importante destacar que a Vila Alice é uma área muito ampla em termos de cobertura e de superfície. E dentro desta área não era homogénea. E depois, em função das zonas, como Cesário Verde, Bairro Económico, Caminhos-de- Ferro, e zona da Macambira, foram se criando depois as chamadas comunidades. Nessas zonas, de acordo ainda com Reginaldo Silva, as pessoas conheciam-se e desenvolveram dinâmicas próprias da vizinhança.

O nosso interlocutor referiu que a área que ele mais domina é a antiga Zona Económica Dr. Manuel Figueira, um Bairro de construções modestas, o chamado bairro Social, que fazia parte da política da habitação económica que o Estado Português desenvolveu a partir dos anos 1950 e que era basicamente para distribuir habitações aos seus funcionários públicos.

Na época, o Estado Português tinha criado uma instituição que se denominava Comissão Administrativa do Fundo dos Bairros Populares de Angola, que fazia a gestão e construía as referidas casas.  A nossa fonte recordou que o Bairro Económico, "que por sinal não tinha muita gente, havia pelo menos ali 100 casas”, fazia parte deste projecto habitacional.  "É um bairro onde eu venho morar, mas que começa a desenvolver-se nos meados dos anos 50. Eu venho para este bairro muito jovem, criança, nos anos 60/61 e lembro muito bem como ele se foi desenvolvendo”, enfatizou.

Reginaldo Silva contou ainda que foi a partir deste bairro que ele e outros amigos mais próximos foram desenvolvendo e criando as suas dinâmicas, incluindo as mais políticas, no contexto do nacionalismo e da sua principal reivindicação que era a Independência de Angola.

Segundo Reginaldo Silva, havia na Vila Alice um foco muito grande de nacionalistas. Por exemplo, o seu pai foi preso pela polícia política portuguesa, a PIDE, isto em 1961, ano dos ataques às cadeias em Luanda, em Fevereiro, seguido do levantamento do 15 de Março no Norte do país. "Então desenvolveu-se ali um foco muito grande de jovens nacionalistas que eram mais velhos do que nós. Um deles, que todos nós conhecemos, é o Aldemiro Vaz da Conceição, que na altura era o ‘Tininho’. Ele, os seus irmãos e outros jovens acabaram por formar um núcleo clandestino ligado ao MPLA”. 

O nosso entrevistado disse mais adiante que esse núcleo, no quadro da repressão da PIDE, foi desmantelado, tendo sido os seus integrantes presos. "O nosso grupo, onde éramos todos mais jovens do que eles e do qual faziam parte o Gustavo da Conceição, o Mário Bárber, o Tó Santana e o Rui Bastos, herdou por inteiro a febre do nacionalismo”.

História da atribuição do nome

As várias consultas e pesquisas efectuadas pelo repórter deste jornal para saber, ao certo, da verdadeira história da atribuição do nome Vila Alice ao bairro revelaram-se infrutíferas.  Mas há várias versões. 

Reginaldo Silva diz ter ouvido duas ou três histórias sobre o assunto, mas nunca conseguiu confirmar, ao certo, nenhuma delas. "Nós temos a Vila Alice e a Vila Clotilde. De acordo com a versão que eu ouvi, eram terrenos pertencentes a um latifundiário”.

Antigamente em Luanda, recordou, os terrenos pertenciam a grandes latifundiários, como eram os casos do Marçal, Rangel, e por aí fora. Todos os terrenos tinham os seus proprietários.

No tempo colonial, de acordo ainda com Reginaldo Silva, nesses terrenos era permitido às pessoas construir mediante o pagamento de um "foral, uma coisa parecida a uma autorização (comparticipação), que era para as pessoas construírem lá no bairro de acordo com um plano”.

Ainda em relação ao nome Vila Alice, e também Vila Clotilde, Reginaldo Silva afirmou que a informação que tem "é que aquela extensa parcela de terra era de um proprietário, e ele deu uma parte para a sua filha Alice, e a outra para a Clotilde, a outra filha. E é a partir desses nomes que surgem os nomes dos bairros Vila Alice e Vila Clotilde”. A nossa fonte fez questão de ressalvar que não se trata de informação confirmada. 

No entendimento de Reginaldo Silva ambos os bairros eram zonas de desenvolvimento urbano, dado que naquela época já havia um mínimo de planeamento na cidade. Este quadro aconteceu nos finais dos anos 40, início dos anos 50.  "Acredito eu que na Vila Alice tenha havido um plano de ordenamento, com a definição das ruas e dos jardins, e a partir daí as pessoas conseguiam obter os terrenos para construir”.

O nosso interlocutor lembrou ainda que a maioria das residências eram construções privadas, excepto as do Bairro Económico, construídas pelo Estado Português, tal como as dos Caminhos de Ferro, bairro que está em frente ao actual Cine Atlântico.

Toponímia portuguesa

A Vila Alice também já foi considerada, nos tempos da outra senhora, como bairro da intelectualidade. A toponímia desta circunscrição é dedicada, na sua maioria, a grandes escritores e poetas de Portugal, e uns poucos de Angola.  Essas referências toponímicas até hoje perduram. A título de exemplo, existem ruas e largos com os nomes de Antero de Quental, Almeida Garrett, António Feliciano de Castilho, António Nobre, Eugénio de Castro, José de Anchieta, Fernando Pessoa, Camilo Passanha, Fernão de Sousa, António de Castro Feijó, João de Deus, José Duro… Alda Lara é dos poucos nomes de poetas angolanos com honras de placa toponímica na Vila Alice.

Uma das ruas mais importantes do bairro, além da que ostenta o nome do poeta português Eugénio de Castro, é a Rua da Liberdade, que antes se chamava João de Almeida, um general português. A rua mudou de nome quando em 1974 o MPLA lá instalou a sua primeira delegação em Luanda.

Questionado sobre o assunto, Reginaldo Silva disse desconhecer os critérios que estiveram na origem da escolha dos nomes das ruas e largos antigamente.

"Há, de facto, essa presença muito forte de nomes de poetas e escritores portugueses e que de algum modo marcam a Vila Alice”, disse.

O nosso interlocutor afirmou não saber quais foram os critérios utilizados na toponímia portuguesa, mas destacou que na Vila Alice, apesar daquela forte presença, nem todos os nomes são de figuras pacíficas para a História de Angola, como são os casos de João de Almeida, Baltazar de Aragão, Arsénio Pompílio Pompeu do Carpo ou Gregório José Mendes.

Defendeu, por outro lado, que a Vila Alice já devia ter os nomes das ruas, largos e outros lugares mudados, como acontece noutras geografias. "Só que aqui tardam a mudar os nomes, vão mudando aos poucos, não sei qual é a política da alteração da toponímia”, enfatizou.

Reginaldo Silva disse entender que, depois de quase cinquenta anos de Independência, o país, e não só Luanda, "já deveria rever essa situação tão delicada relacionada com a alteração da toponímia”.



Largos e jardins com simbolismo

Um dos aspectos peculiares da Vila Alice são os seus largos e jardins públicos que eram bastante arborizados, sobretudo com acácias. E os nomes desses lugares, bem como as ruas, como dito acima, eram (são) de escritores e poetas portugueses.   Camilo Pessanha, cultor do simbolismo, Cesário Verde, o poeta que abriu o caminho ao modernismo e ao neo-realismo e Teixeira de Pascoaes, considerado o poeta do saudosismo, só para citar esses…  O mais famoso dos largos é o do Bocage, que ficou nos últimos anos descaracterizado devido a algumas empreitadas que por lá surgiram e que ofuscaram a sua originalidade arquitectónica. Tudo fruto da sua privatização. Hoje já só restam na Vila Alice os largos Camilo Pessanha, Cesário Verde e Teixeira de Pascoaes.

O Largo do Bocage é hoje um espaço isolado da paisagem circundante por uma vedação.  Ali já ninguém se senta nos antigos bancos do jardim, ninguém vai lá ler um livro ou simplesmente descansar as pernas a meio de uma caminhada. Os namorados ali já não têm lugar para trocarem juras de amor à luz da lua, de acordo com um antigo morador. "Estamos fartos, mas antes tarde do que nunca. Não é possível continuarmos a não poder usufruir do nosso largo, pois alguém entendeu ocupá-lo. Isto é muito duro para nós”, desabafou.

Numa ronda, o Jornal de Angola constatou que na circunscrição a privatização dos espaços públicos continua. Há quem considera que esta prática (ocupação dos espaços públicos) esteja ligada a negócios e interesses de pessoas influentes dentro das estruturas do Governo Provincial de Luanda. No entanto, o GPL, num recente comunicado sobre o assunto, diz que a situação da ocupação dos espaços públicos para fins privados, sem benefício algum para a comunidade, tem os dias contados.

António Marcos, morador na Vila Alice desde 1975, mais concretamente no início da Rua Eugénio de Castro, desafia o Governo Provincial de Luanda a devolver aos moradores o Largo do Soweto, que uma empresa de comunicação privatizou há muitos anos.

De resto, o  bairro possuía cinco largos, a saber: Cesário Verde, Largo do Amor (onde está actualmente a Direcção Nacional Investigação e Acção Penal - DNIAP), António Feliciano de Castilho, Largo do Bocage e Largo do Ringue de Patinagem (onde actualmente tem um ginásio).


Cine Atlântico (antigo Cinema Império)

O incontornável Cine Atlântico

Um dos símbolos incontornáveis da Vila Alice é o Cine Atlântico (antigo Cinema Império), uma das mais antigas salas de espectáculo de Luanda, erguida nos primórdios dos anos 60. Projectado pelo arquitecto Eduardo Paulino, os seus cálculos de estabilidade são da autoria do engenheiro Henrique Jorge Pereira da Silva, posteriormente revistos pelo engenheiro Edgar Cardoso devido à complexidade da estrutura, em particular da sua cobertura atirantada, a qual foi recordista mundial durante vários anos.

Edgar Cardoso, importa aqui sublinhar, foi o criador e projectista da magnífica ponte rodoviária atirantada da Barra do Kwanza, construída 75 quilómetros a Sul de Luanda entre 1970 e 1973 pela então Junta Autónoma de Estradas de Angola.

O Cine Império, em pleno coração da Vila Alice, teve,  também, a prestimosa colaboração de escultores de renome, como Afonso Vidigal, Miranda e Zink. Inicialmente pensado para ser edificado na Baía de Luanda, com parte do edifício sobre a água, acabou por ser construído na Vila Alice. O Cine Império é uma sala de espectáculos com capacidade para 1.500 espectadores. Mais concretamente é um anfiteatro coberto, formal, marcado pela estrutura definida por um sistema de pilares que ascendem acima da cobertura, e pelos tirantes que a sustentam. A cobertura é composta por asnas metálicas suspensas. O edifício é aberto lateralmente, e encerrado nos topos: o corpo principal com dois pisos, onde se situa a entrada, e o corpo do palco e bastidores. No corpo principal, a fachada de composição simétrica é marcada pelo acesso ao topo superior do anfiteatro através de um sistema misto de rampas e escadas. No piso inferior situam-se o bar, as instalações sanitárias e outros serviços de apoio. Ao contrário do corpo de acesso, o bloco do palco é opaco e fechado. As suas grandes dimensões e o seu carácter monumental associam a este espaço, ainda hoje, uma ideia de cosmopolitismo que representa a escala de uma grande cidade.

Não se sabe ao certo quantos anos a obra levou para ser edificada, mas sabe-se que foi inaugurada em 1966 com a exibição do filme norte-americano "My Fair Lady”, realizado por George Cukor, com roteiro baseado no drama "Pigmalião” de autoria de George Bernard Shaw, galardoado com o Prémio Nobel de Literatura em 1925. A sala de espectáculos continua em funcionamento, contribuindo para a programação cultural da cidade. No espaço são exibidos filmes, realizados espectáculos musicais e actividades públicas de carácter político, religioso, cívico e outros. 

Carlos Embaixador, antigo morador da Vila Alice, disse nas redes sociais , ter brincado nos caboucos deste cinema que viu a ser todo ele construído nos anos 60. "Tenho saudades dos meus amigos e colegas de escola que juntos brincámos quando estudávamos no Colégio Alves de Pinho”.

José Pimentel, por sua vez, afirmou ter visto no Cine Império o filme "Lawrence da Arábia”, em 1975.  "Só vi metade. Lá fora, na Vila Alice, o tiroteio era tão intenso que o projectista decidiu interromper a sessão e mandar-nos para casa. Alguns tiros passavam entre nós e o écran”, recordou.

Reginaldo Silva lembrou que viu o Cine Império a ser construído desde o primeiro até ao último dia. O escriba ressaltou que o referido Cine é um projecto que está muito ligado à sua infância. "Vimos esta infra-estrutura a crescer e a ser inaugurada e participámos da sua programação, desde as matinés aos espectáculos que o cinema programava”.

"Aquando da sua inauguração nós éramos miúdos, nem sequer tínhamos dinheiro para ir ao cinema. Festivais de música rock também tiveram lugar nessa sala de espectáculos. Eram músicas modernas. Havia grupos de jovens angolanos que nos anos 60 faziam músicas modernas”.

Antigamente não era muito fácil os jovens adolescentes frequentarem o Cine Império, frisou Reginaldo Silva. "Olha que nós éramos pobres… dos mais pobres da Vila Alice, e não era fácil termos dinheiro para pagar uma sessão da matinée no Império”.

Daí que os jovens adolescentes de então preferissem ir ao Cinema São Domingos, ligado à Paróquia de Nossa Senhora de Fátima, da Igreja Católica, que além de se situar perto do bairro era mais acessível em termos de preçário.  



Ai Macambira, quem te viu e quem te vê

Construído nos primórdios dos anos 50, a antiga Fábrica Imperial de Borracha (FIB), vulgo Macambira, situada na rua Eugénio de Castro foi considerada, durante muito tempo, um dos cartões de visita da Vila Alice.  Francisco Macambira, seu proprietário, segundo reza a história, desgostava ver os negros descalços. Não era tanto a falta de sapatos que o impressionava, mas dava-lhe dó ver as pessoas com a pele carcomida por bitacaias, uns temíveis parasitas que provocavam danos debaixo das unhas. Uma vez, numa viagem aos EUA, o empresário descobriu a solução e esta chamava-se Keds, uns ténis de borracha e lona, dois materiais que a fábrica Macambira produzia. Trouxe a ideia a Angola e lançou os quedes (aportuguesamento de keds), que quase toda a gente passou a usar, em todas as ocasiões, desde os trabalhadores aos estudantes negros.  Consta que os nacionalistas do 4 de Fevereiro de 1961 usavam quedes aquando do assalto às cadeias da PIDE em Luanda. Esses ténis de borracha e lona viriam a ser popularizados com o nome "João Domingos” (o escritor Tazuary Nkeita mais tarde os baptizaria de "Dibengos” num dos seus livros mais conhecidos).  

Gabriel Sebastião, morador no bairro Sambizanga, disse que tinha dois pares de quedes, um de cor amarelo e outro branco, com os quais estilava nos bailes.

Minga Silva afirmou que também usou os quedes da Macambira. "Eram bons ténis e facilitavam nas várias ocasiões. Um dia destes usei-os para não magoar os pés, quando estava na praia e andávamos a apanhar mexilhões em cima das pedras”. 

A antiga fábrica Macambira foi copiosamente demolida para em seu lugar ser erguido um projecto imobiliário que morreu logo à nascença. 

"A Dipanda foi proclamada atrás da minha casa”

A Avenida Brasil, onde ficava a sede da FNLA, é a zona que separa a Vila Alice da zona dos Combatentes. Quando se deu a guerra entre o MPLA e a FNLA, em 1975, a Vila Alice tornou-se uma zona de combates. "A FNLA bombardeava para aqui, e o MPLA ripostava, enfim, era assim o confronto bélico entre os dois”, recordou Reginaldo Silva, destacando que "a Vila Alice é uma área histórica, do ponto de vista da transição do país para a Independência, como base do MPLA, mas não só”.

O nosso interlocutor explicou que para ele o outro elemento importante de destaque, que acaba por ser até o mais significativo, é que a Independência de Angola foi proclamada na Vila Alice. "E foi proclamada aqui como? Eu assisti a este acto. Eu morava numa rua, a Alda Lara, que é muito perto da Estrada de Catete, sendo paralela a ela”.

"Eu costumo dizer, e com bastante propriedade, que a Independência de Angola foi proclamada atrás da minha casa. Lembro-me de ter saído de casa, mais um amigo meu, a pé, e fomos nas calmas e em poucos minutos até ao local onde se encontrava instalado o palanque, no muro da Escola 1º de Maio, onde foi feita a cerimónia da proclamação da Independência”. 

Disse mais adiante que naquela altura a Estrada de Catete não tinha a dimensão que tem hoje, na época era apenas uma linguazinha de estrada com dois sentidos. "A Vila Alice tem, de facto, esse simbolismo todo.  Puxando a brasa para a minha sardinha, que é de muito mais gente, faço questão de sublinhar, sempre que a oportunidade surge, que a Vila Alice tem um papel muito importante na própria formação do país por razões políticas, sobretudo porque foi aqui que se instalou o MPLA, foi aqui que o MPLA proclamou a Independência de Angola, aquela que prevaleceu até aos dias de hoje”.

"A Independência de Angola foi proclamada, de facto, na Vila Alice, na fronteira com a Estrada de Catete. Daí que acho importante destacar este papel da Vila Alice no contexto da cidade e mesmo do país”, sublinhou a finalizar Reginaldo Silva.



Figuras emblemáticas

Das figuras emblemáticas e que entraram para a história do bairro podemos citar os nomes de Carlos Octávio "Caíto”, Bernardo Teixeira "Nado”, que morreu no 27 de Maio… Hermínio Escórcio também morou na Vila Alice, onde se casou; aliás, tratou-se do primeiro casamento registado no bairro. 

Das figuras emblemáticas não é tudo. Destaque também para Jaime de Sousa Araújo, nacionalista ligado ao movimento/partido Frente Nacional de Libertação de Angola – FNLA, que morava na rua Fernando Pessoa. 

"A loja que mais nos marcou, a nós que vivíamos aqui deste lado do Bairro Económico, foi a do senhor Baptista, no Largo do Bocage, que depois foi privatizado em termos de ocupação do seu jardim”, disse Reginaldo Silva.

O músico António Sebastião Vicente "Santocas”, que também frequentou o bairro, disse que a Vila Alice sempre foi o "eterno vizinho” do Bairro Indígena, e, por este facto, era lá que "nós os kandengues recorríamos para comprar alguns bens alimentares, e não só”.

"É na Vila Alice onde estavam as lojas, e outras estruturas de comércio”, recordou Santocas, sublinhando que o comerciante Silva vendia sanduíche com molho de chouriço, "o que para nós, crianças, era uma delícia”.

Naquele período havia problemas de arranjar dinheiro, porque nem todas as famílias estavam em condições financeiras para muitas coisas. "Os estudantes iam para a escola número 83, situada em frente a antiga fábrica Macambira, sem o pequeno almoço e com os quedes todos rotos (furados). Então não era fácil viver naquela fase”, disse o cantor.

Santocas contou que os garotos do Bairro Indígena faziam frequência na loja do senhor Silva com o intuito de comprar as "sandes com o rabo de fora”, como era apelidado o pão. Havia também o cangalheiro que vendia caixões na zona adjacente à Avenida Brasil.



Circunscrição historicamente politizada

As primeiras delegações do MPLA em Luanda foram instaladas em simultâneo. O partido que governa o país instalou os seus primeiros comités político-militares, concretamente, na Vila Alice e no Rangel, este último num dos armazéns da Dona Amália, local que acolheu a primeira delegação do MPLA proveniente do maquis e onde foi realizado o seu primeiro comício na capital. Mas foi na Vila Alice onde o MPLA montou e pôs a sua estrutura política a funcionar em pleno. Foi na Vila Alice onde as tropas coloniais portuguesas, ou o que restava delas, protagonizaram, em meados de 1975, a sua última acção militar em Angola, na sequência de um mortífero ataque que fizeram contra as instalações do MPLA e do qual resultou a morte do Comandante Nelito Soares.

Reginaldo Silva disse lembrar-se bem deste ataque, pois logo pela manhã apercebeu-se que o bairro estava todo cercado pelas tropas portuguesas. Além de Nelito Soares foram mortos a sangue frio outros combatentes do MPLA, tendo o ataque das tropas portuguesas sido uma acção de retaliação contra o desaparecimento de um militar português.

Reginaldo Silva admite que a instalação dos comités político-militares do MPLA na Vila Alice e no Rangel, em finais de 1974, terá acontecido em simultâneo. "O MPLA chega em Novembro de 1974 em Luanda e Agostinho Neto em Fevereiro de 1975, isto é, seis meses depois. Neste período os movimentos, sobretudo o MPLA e a FNLA, começaram a se posicionar nos bairros”.

"Lembro-me que quando a delegação do MPLA chegou, chefiada por Lúcio Lara, eles fizeram um cortejo e foram lá para o Rangel onde fizeram o primeiro grande comício nas instalações da Dona Amália”.

"A base do Rangel pode ser das mais antigas em Luanda, se calhar, em simultâneo com a da Vila Alice. Mas na altura essas bases eram comités, e o da Dona Amália ficou mais conhecido porque foi o primeiro que ganhou o estatuto de base do MPLA”, narrou Reginaldo Silva.

O falecido nacionalista Hermínio Escórcio recordou, numa entrevista que concedeu a este jornal, que o MPLA para ter acesso às infra-estruturas da Vila Alice teve que fazer várias diligências. Contou ter recebido orientações do Bureau Político em Brazzaville para instalar a sede do MPLA, e assim que foi à Vila Alice encontrou um prédio, que tinha sido internato das madres, que estava vazio. "O guarda orientou-me que o proprietário era a empresa Figueiredo e Irmão, com sede no Lobito”.

Ele vai a Benguela, dirige-se à empresa exportadora e encontra o gerente, um jovem de nome Valente, que tinha sido seu colega de escola, a quem fez a proposta de aluguer do sítio. Das negociações ficou concretizado o aluguer. As primeiras rendas, de vinte mil escudos, foram pagas pela sua mulher.

Chegando a Luanda, recordou Hermínio Escórcio na referida entrevista ao Jornal de Angola, expôs aos camaradas Zé Van-Dúnem e Juca Valentim as démarches feitas para instalar a sede do MPLA. Estes reprovaram a ideia de instalar a sede do MPLA num bairro "que pertencia à elite portuguesa”, argumentando que sendo o MPLA um movimento de massas deveria ter a sua sede num dos musseques de Luanda.

"Eu perante essa opinião dei mais umas voltas pela cidade e arredores e encontrei as instalações conhecidas por Dona Amália no Musseque Rangel, negociei com a proprietária do imóvel para instalar o DOM regional (organização de massas) e tal proposta foi aceite”, contou Hermínio Escórcio.

O nacionalista afirmou, também, que "a sede do MPLA na Vila Alice nº 100, hoje Rua da Liberdade, onde está instalado o Comité Provincial de Luanda do MPLA, já era pequena para acomodar todos os serviços e é assim que eu e o Rita, por orientações do Presidente Agostinho Neto, fomos à procura de instalações maiores para caberem todos os serviços num prédio só, e fomos ter com o engenheiro Manuel Resende, ministro da Construção, para que me desse uma indicação de onde poderíamos encontrar um prédio onde pudéssemos acomodar todos os serviços do MPLA”.

Nessa altura, recordou Hermínio Escórcio, foram orientados pelo ministro da Construção de que havia um prédio perto dos Serviços de Geologia e Minas que tinha acabado de ser pintado. "Eu e o Rita nos dirigimos para lá, subimos até ao segundo andar e vimos que eram instalações ideais para o nosso movimento. Até hoje é a Sede Nacional do MPLA”, concluiu Hermínio Escórcio, de feliz memória.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Reportagem