Sociedade

Gestão Integrada faz baixar taxa de mortes por desnutrição de 40 para 15 por cento

Alexa Sonhi

Jornalista

O país registou 90 mil casos de desnutrição grave em crianças no ano passado, de acordo com os dados disponibilizados pela Direcção Nacional de Saúde Pública.

30/04/2024  Última atualização 08H59
Mães ficam muitos dias com os filhos na sala de tratamento de crianças desnutridas no Hospital Divina Providência © Fotografia por: Edições Novembro

Segundo secretário para a Formação da Sociedade Angolana de Pediatria, deste número, 15 mil foram registadas na província de Luanda, tendo sido diagnosticadas e tratadas nos centros de internamento do Hospital Pediátrico de Luanda David Bernardino, Divina Providência, Hospital dos Cajueiros, Hospital Geral de Luanda, hospitais municipais de Viana, Cacuaco e Icolo e Bengo.

De Janeiro a Fevereiro deste ano, as províncias de Luanda, Benguela, Namibe, Huíla, Bié e Cuando Cubango diagnosticaram 14.535 crianças com desnutrição grave.

Cada uma das 18 províncias do país tem, pelo menos, um centro de tratamento de desnutrição, mas apenas as seis mencionadas apresentam dados actuais, porque as demais registam debilidades nas estatísticas.

"Daí que tanto o número de mortes como o de crianças desnutridas registado no presente ano é apenas a ponta do iceberg, porque se formos bem ao fundo do problema, os dados podem ser mais altos”, assegurou.

O médico garante que a Sociedade Angolana de Pediatria, em parceria com o Ministério da Saúde, está a envidar esforços para redinamizar os centros de tratamento de desnutrição e capacitar o pessoal na forma de abordar pacientes desnutridos, evitando, assim, as mortes.

César Freitas explicou que a província de Luanda possui 49 centros de tratamento ambulatório de desnutrição, distribuídos nos municípios do Cazenga, Luanda, Benfica, Belas, Viana, Kilamba Kiaxi e Samba.

 
Mortes

Segundo o pediatra César Freitas, uma média de 18 a 20 crianças morrem por dia no país devido à desnutrição crónica.

César Freitas explicou que as províncias que mais óbitos registaram no ano passado, devido à desnutrição, foram Luanda, com 256, Benguela, com 302, Huíla, com 204, Cunene, com 110 e Namibe, com 32.

O também especialista em Pediatria realçou que, apesar de os números ainda continuarem altos, houve um decréscimo, se comparado aos anos anteriores. Em 2000, disse, o país tinha uma taxa de mortalidade de 40 por cento, mas, com a implementação do Programa de Gestão Integrada da Desnutrição Aguda, baixou para 15 por cento.

Ainda assim, o país está longe de atingir a cifra estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é uma taxa de 10 por cento.

Segundo César Freitas, o Programa de Gestão Integrada da Desnutrição Aguda permite que crianças desnutridas comecem a ser tratadas no hospital, culminando no seio da comunidade.

O médico explicou que o tratamento das crianças desnutridas tem duas fases. A primeira é no hospital, a chamada "Unidade Especial de Nutrição”, que funciona dentro das unidades de saúde.  Este serviço, clarificou, é mais usado em crianças desnutridas e que tenham outras complicações, como malária, pneumonia, diarreia ou feridas. A actuação nestes pacientes, disse, deve ser urgente, porque a probabilidade de morrerem é sempre maior.

A segunda fase, prosseguiu, deve acontecer na comunidade, porque a criança, depois de receber a alta hospitalar, continua a ser acompanhada em ambulatório, recebe a medicação e prossegue com o tratamento em casa.

Segundo o médico, o Programa de Gestão Integrada da Desnutrição Aguda teve início em 2020, e, com isso, conseguiu-se aumentar consideravelmente o número de centros de tratamento.

 
Definição da doença

O pediatra define a desnutrição infantil como sendo a condição clínica decorrente de uma deficiência ou excesso de um ou mais nutrientes essenciais à saúde. Pode ter origem em desequilíbrios de calorias, proteínas, hidratos de carbono ou sais minerais.

Na desnutrição infantil, esclareceu, há deficiência de nutrientes importantes para o crescimento saudável da criança, como a vitamina A, ácido fólico, iodo, proteínas ou ferro, aliada ao consumo de água não tratada, que provoca diarreias constantes, impedindo a correcta assimilação das substâncias.

Tudo isso, explicou, compromete o desenvolvimento físico, mental e cognitivo da criança, além de exercer influência nos riscos de morbilidade na infância. Por isso, acrescentou, a desnutrição infantil está directamente ligada à morte de crianças menores de cinco anos.

 
Níveis de desnutrição

César Freitas explicou que a desnutrição classifica-se em níveis leve, moderado e grave. A classificação é determinada mediante a percentagem do peso esperado em relação à estatura ou à altura desejada da criança, utilizando padrões internacionais estabelecidos pelo Centro Nacional de Estatística em Saúde dos Estados Unidos (NCHS).

Assim sendo, considera-se criança normal se tiver de 90 a 110 por cento do peso de acordo com o padrão da OMS em relação à altura e estatura.  Mas se tiver entre 85 a 90 por cento, ela já tem desnutrição leve.

"É desnutrição moderada se a criança tiver de 75 a 85 por cento do peso desejado em relação à altura e estatura desejada e, se menos de 75 por cento (< 75), é considerada desnutrição grave, que precisa de tratamento urgente com internamento e tratamento exclusivamente hospitalar”, precisou.

Segundo o médico, as crianças com desnutrição grave, se não forem devidamente tratadas, dificilmente chegam aos cinco anos de idade. Já a criança com desnutrição moderada pode morrer ou permanecer com desnutrição crónica, se a abordagem não for eficiente. 

 
Causas da desnutrição

O especialista em Saúde Pública Jeremias Agostinho disse que a desnutrição pode surgir por defeito, tendo em conta o elevado índice de pobreza de muitas famílias, que não conseguem ter uma alimentação equilibrada.

"A desnutrição pode também surgir por erros na alimentação, porque muitas famílias até têm alimentos, mas não os sabem dosear para que as crianças recebam os nutrientes suficientes”, alertou.

A título de exemplo, disse, em muitas zonas rurais, pensa-se que comer frango seja um privilégio, quando, na mesma zona, as famílias criam galinhas, patos e outros animais, de forma natural, livre de hormônios e estrogénios que fazem mal à saúde.

"Há pais, inclusive, que têm possibilidades financeiras, mas preferem dar sumos empacotados cheios de conservantes aos filhos do que comprar frutas diversas e fazer sumos naturais”, lamentou.

A desnutrição infantil, disse, é ainda causada pela falta de acesso aos serviços de saúde, o analfabetismo, falta de infra-estruturas adequadas, saneamento básico precário e pela desnutrição materna.

"Porque mulheres desnutridas são mais propensas a gerar filhos desnutridos. Daí a desnutrição materna ser um factor importante na desnutrição infantil. Mas, também, a desnutrição tem uma relação circular com outras condições sociais e económicas como a falta de políticas públicas eficazes para o combate à pobreza”, asseverou.

 
Tratamento

O tratamento de crianças desnutridas não pode ser feito por qualquer técnico de saúde, segundo o secretário da Sociedade Angolana de Pediatria, César Freitas. "Tem de ser feito por pessoas devidamente qualificadas, tendo em conta que, nestas situações, o sal, as gorduras, as proteínas e o açúcar devem ser bem dosificados”, alertou.

César Freitas realçou que, quando as crianças estão desnutridas, o coração fica frágil e, se lhes for dada qualquer alimentação, podem morrer logo. Por isso, o tratamento deve ser hospitalar, até ter um peso aceitável e ir para casa, prosseguindo com a medicação.

Por esta razão, prosseguiu, estas crianças apenas são tratadas com leite nutricional e as papas F75 e F100, que substituem todas as refeições do dia. Essas papas são encontradas apenas nas unidades de tratamento de crianças desnutridas, visando a sua recuperação paulatina.

Depois de receberem alta médica, os pais levam a criança à consulta de ambulatório, para receber as papas. Vai se alimentando delas até ganhar brilho, ter o rosto hidratado, o coração e o pulmão a funcionar bem, para então se adicionar, aos poucos, outras comidas mais sólidas.

 
Importância do aleitamento materno

Outro aspecto importante que protege as crianças contra a desnutrição, segundo o especialista, é o aleitamento materno exclusivo até aos seis meses de vida. Esta prática tão simples, garantiu, ajuda a salvar milhares de crianças e protege a própria mãe. "É o tratamento mais fiável que há”, salientou.

 
Futuro comprometido

Na visão do especialista em Saúde Pública Jeremias Agostinho, uma criança desnutrida é alguém que praticamente está com o futuro comprometido, porque, se até aos cinco anos não tiver os nutrientes necessários para o desenvolvimento de órgãos- chave como o cérebro, terá muitas dificuldades de desenvolver o sistema cerebral na adolescência ou idade adulta.

Como consequência, realçou, vai-se ter crianças com aprendizado bastante reduzido e com dificuldades sérias para captar informações. "A mãe pede prato, ela traz colher, diz vermelho, ela entende amarelo, ou seja, não entende nada de forma correcta, será alguém com défice crónico de aprendizagem”, notou.

Com o défice crónico de aprendizagem, segundo Jeremias Agostinho, estas crianças no futuro podem, com muita facilidade, enveredar para a delinquência, comércio ilegal e outros serviços de subserviência, porque o cérebro não desenvolveu, logo, não aprendeu nada que lhe pudesse permitir ter uma vida melhor.

 
Um sério problema de saúde pública

Para Jeremias Agostinho, a desnutrição deve ser encarada como um sério problema de saúde pública, a ser tratado com urgência, porque é o futuro do país que está ameaçado.

A desnutrição em crianças menores de cinco anos, disse, deve ser uma doença de notificação obrigatória, não importa a zona do país em que for registada.

"Porque 20 ou mais crianças a morrerem diariamente por causa da desnutrição é de extrema preocupação. Esta problemática transcende ao Ministério da Saúde, e é transversal a todos sectores, logo, os demais ministérios devem estar envolvidos na luta contra a desnutrição”

 
Como reverter o quadro

Como estratégia para se reverter o quadro, o especialista em Saúde Pública defende maior aposta na educação, por esta ser a base de desenvolvimento de qualquer nação.

Jeremias Agostinho defende, igualmente, que a merenda escolar deva ser dada em todas as escolas primárias do país, por ser fundamental na estimulação da ida às aulas para as crianças mais carenciadas.

Segundo Jeremias Agostinho, a criança se sentirá mais motivada a ir à escola porque sabe que terá comida e, até chegar a hora do lanche, ela já aprendeu várias matérias, compreendendo assim a importância da alimentação e tipos de alimentos a consumir.

"Tudo isso terá um grande impacto na vida de qualquer pessoa, porque só alguém com formação conseguirá um emprego que lhe permitirá sair da linha da pobreza extrema”.

 
Aprendizagem comprometida

Na visão do psicopedagogo Acílio Manuel, é importante olhar-se com muito mais atenção para as consequências da desnutrição no futuro da criança, que são drásticas, não só para a família, mas também para sociedade em geral.

Acílio Manuel explicou que a falta de nutrientes no organismo da criança afecta diretamente o cérebro, porque, para este órgão funcionar bem, precisa de ser alimentado por uma substância denominada trifosfato de adenosina, produzida pela glicose.

Logo, se o menor estiver desnutrido, não terá glicose suficiente para produzir esta substância, o que compromete seriamente o desenvolvimento do cérebro, causando danos irreversíveis na parte cognitiva e psíquica, por ser o órgão que comanda o corpo todo.

O psicopedagogo frisou que, quando o cérebro está comprometido, afecta a mobilidade e a motricidade no armazenamento dos conhecimentos e a reutilização das informações que a criança for recebendo em casa, na escola ou em outro lugar.

Como consequência, realçou, estas crianças terão sempre deficiência do ponto de vista intelectual. "Na escola, terão menos competências do que outro colega bem nutrido, terão dificuldades para aprender a ler ou a escrever, assim como resolver cálculos numéricos”, esclareceu.

Ao chegar à fase adulta, prosseguiu, serão pessoas obrigadas a trabalhar em cargos menos qualificados e com menores rendimentos, perpetuando também, desta forma, o ciclo da pobreza.

 
Recuperação leva tempo

Em Luanda, os centros de maior referência no tratamento de crianças desnutridas estão no Hospital Pediátrico David Bernardino, Divina Providência e no Hospital dos Cajueiros.

No centro de tratamento do hospital Divina Providência, por exemplo, que tem capacidade de internamento para 23 camas, estão hospitalizadas, neste momento,15 crianças com desnutrição grave.

As mães, sendo trabalhadoras ou não, são obrigadas a mudar a sua rotina, fixando morada no hospital para que os filhos desnutridos consigam sobreviver, porque a recuperação leva tempo.

É o caso de Marina Mendes, de 20 anos, mãe de dois filhos, que tem o menino mais novo, de dois anos, internado há 15 dias. Ela não sabe explicar como a situação se tornou tão crítica.

"Eu não trabalho, fico mesmo em casa com os miúdos. Deixei de dar leite do peito aos sete meses, mas com o tempo o menino foi perdendo muito peso, até as costelas aparecerem. Já não comia bem e chorava muito. Nas consultas, só acusava paludismo e febre tifóide”, contou.

Como Marina vive no Camama, a vizinha aconselhou-a a levar o filho ao Hospital Divina Providência, para fazer uma consulta de nutrição. Quando lá chegou, teve de o internar com urgência, porque a desnutrição do menino era grave. "Ele já não tinha peso para a idade dele. Em casa, ninguém aceitava cuidar dele porque ficou muito estranho, parecia esqueleto. Até eu ficava com medo do meu próprio filho. Como não sabia como fazer, eu chorava muito” lamentou.  

No centro de desnutrição do Divina Providência, o filho de Marina é alimentado de duas em duas horas. O menino, segundo a mãe, já está a recuperar, o aspecto é outro. Apesar de ainda não ter previsão de alta, Marina está satisfeita com os resultados, embora ele ainda precise de ganhar mais peso.

Ao contrário de Marina, que pela primeira vez teve um filho internado por desnutrição, Guiomar dos Santos, de 40 anos, já é conhecida no Hospital Pediátrico de Luanda, porque, no ano passado, já lá teve internado o seu quarto filho.

Mãe de cinco filhos, Guiomar dos Santos diz não saber como o quarto e quinto filhos ficaram desnutridos, porque, apesar de passar o dia na praça a vender, em casa fica a filha mais velha, de 22 anos, que prepara a comida para os irmãos.

"Já me ensinaram como cuidar deles e da sua alimentação. Quando tenho dinheiro, procuro cumprir com tudo que me mandam, mas, ainda assim, vim internar novamente com este que ficou mais grave do que o anterior”.

Guiomar está internada há uma semana, mas o filho ainda inspira muitos cuidados. E o negócio que sustenta a família está quase paralisado, porque a filha mais velha tem de dividir o tempo com a escola, praça e cuidar dos irmãos mais novos.

Nos centros de tratamento do Divina Providência e da Pediatria de Luanda, a alimentação das crianças é à base de leite nutricional nas primeiras duas semanas. Depois, são dadas papas denominadas F75 e F100, exclusivas para crianças desnutridas, até recuperarem o peso.

Para a protecção das próprias crianças, nestes centros, não há ar-condicionado nem ventiladores manuais. Porque os pacientes desnutridos devem estar em ambientes mais quentes para evitar gripes e outras doenças respiratórias, tendo em conta que a imunidade deles está comprometida.

Além de cuidarem das crianças, os centros também ensinam as mães a cuidar melhor dos filhos, mesmo com poucos recursos, evitando que cheguem ao ponto da desnutrição.


UNICEF reconhece esforços  para salvar a vida das crianças

O representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) no país, Antero Almeida de Pina, disse ao Jornal de Angola que os dados mais recentes sobre a desnutrição que a instituição possui foram disponibilizados em 2015-2016, aquando da realização do Inquérito de Indicadores Múltiplos e de Saúde (IIMS).

Antero Almeida de Pina explicou que a UNICEF está a aguardar por dados mais actualizados, quando forem disponibilizados os resultados do último Inquérito de Indicadores Múltiplos de Saúde (IIMS 2023-2024).

Contudo, disse, há estimativas internacionais indicando que a situação em Angola é preocupante. Mas, acrescentou, verifica-se que o Governo continua a envidar esforços para salvar a vida das crianças, cuja situação foi agravada, nos últimos anos, devido ao impacto das alterações climáticas e da pandemia da Covid-19.

Antero Almeida reconhece haver um nível de desenvolvimento notável, com a construção de mais hospitais, centros e postos de saúde, incluindo o aumento de médicos e enfermeiros.

 

Crescimento populacional

Entretanto, prosseguiu o representante do UNICEF, o crescimento populacional em Angola traz consigo muitos desafios ao Estado para poder assegurar todos os serviços básicos a que as crianças e as suas famílias têm direito.

Antero Almeida de Pina realçou que o IIMS 2015-16 mostrou que a taxa de fecundidade no país é de 6.2, chegando a 8.2 nas áreas rurais. Por isso, disse, o UNICEF procura sempre analisar os factores que contribuem para o desenvolvimento integral da criança, de modo que ela atinja todo o seu potencial.

"Como parceiros do Governo, o papel do UNICEF é apoiar a elaboração e implementação de Estratégias Nacionais que respondam às reais necessidades”, frisou.

O representante do UNICEF acrescentou que a organização está também a prestar apoio ao Governo, a fim de olhar para as despesas públicas em saúde e nutrição e analisar o Orçamento Geral do Estado, para ver até que nível o Estado pode dedicar mais recursos a estas áreas, de forma a salvar mais vidas.

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