Reportagem

Cazenga “Estamos a sofrer com esta vala que foi aberta com a promessa de reabilitação da estrada”

Engrácia Francisco

Jornalista

Apesar de estar interditada para obras, a 7ª Avenida continua muito movimentada. Na rua, observam-se vários pontos de venda, onde os moradores montam bancadas e comercializam produtos diversos, para garantir o sustento das famílias

17/10/2023  Última atualização 12H02
Moradores da 7ª Avenida do Cazenga © Fotografia por: Edições Novembro

Quando a chuva cai em Luanda, os moradores da 7ª Avenida do Cazenga, no bairro 11 de Novembro, vivem os piores dias das suas vidas. Torna-se difícil, por exemplo, transitar de um ponto para o outro, porque as obras de reabilitação desta importante via do município do Cazenga, que recomeçou há dois anos, depois das várias tentativas fracassadas nos últimos 20 anos, continuam longe de serem concluídas. 

A coordenadora do bairro, Engrácia Baptista, de 59 anos, moradora da zona há mais de 40 anos, descreveu, à equipa de reportagem do Jornal de Angola, o ambiente difícil dos residentes.

Com o semblante triste, a moradora explica que, desde o início da obra, a vida dos moradores nunca mais foi a mesma. "Estamos, há dois anos, a sofrer com essa vala que foi aberta com a promessa de reabilitação da estrada, mas que até hoje não vimos nada além de promessas”, lamentou.

Uma das principais inquietações dos moradores são os mosquitos gerados pela água parada na vala. O bairro conta com um único centro médico, o "11 de Novembro", que na época chuvosa fica quase inacessível e sem medicamentos suficientes para atender a procura.

Conta a coordenadora que já teve que levar uma das vizinhas doente pelas costas com a água pela cintura, porque a viatura não chegava até ao local. Engrácia Baptista recorda, ainda, um episódio que viveu com o filho que reside no estrangeiro. Ao regressar ao país, apanhou paludismo.

"Tenho um filho a viver na África do Sul, há muitos anos, e falávamos apenas por telefone. Então, ele decidiu vir para Angola visitar a família. Quando chegou, lamentavelmente, no dia seguinte, apanhou paludismo por causa dos mosquitos que se formam na água parada na vala”, contou.

Hoje, acrescentou, ele não aceita mais voltar porque teme ficar doente novamente, lamentou.

 
Boas lembranças

Sentada numa pedra, na 7ª Avenida do Cazenga, nas imediações da antiga fábrica de tintas "Decorang”, Júlia José, de 82 anos, vende fuba de bombó e petróleo iluminante, para sustentar dois filhos desempregados e os três netos com quem vive.

Também conhecida por velha Nzuzi, por ser gémea, Júlia José vive na 7ª Avenida do Cazenga desde 1981. Ela conta que tem boas lembranças do bairro 11 de Novembro, porém, nos últimos anos, o cenário mudou completamente.

Actualmente, disse, os moradores são obrigados a se recolher para os aposentos a partir das 19 horas, devido à delinquência. "Se quiseres sair depois das 19 horas, tens de andar uma boa distância para pegar uma motorizada, mas, se vires dois ou três cidadãos parados, o melhor é desviar o caminho, porque podem ser marginais", alertou a idosa.

Com a 7ª Avenida interditada, há dois anos, a circulação automóvel entre os municípios de Viana, Cazenga e Cacuaco, através da estrada do Papá Simão, das Condutas e Ngola Kiluange ficou impossibilitada.

"Fecharam as duas entradas, os carros não passam, dependemos apenas dos motoqueiros e muitos deles são assaltados por marginais", denunciou.

Júlia José revela que, antigamente, vivia-se bem no bairro, mas desde que começaram as obras de reabilitação, a delinquência aumentou. "Quando tínhamos a estrada em bom estado, a Polícia rondava o bairro a todo o  momento, mas com essa situação, o cenário mudou. Actualmente, dificilmente se vê a presença das autoridades aqui", lamentou.

 
Três mortes já registadas

Júlia José recorda, com dor, a morte de três crianças na vala de drenagem localizada na 7ª Avenida, em consequência das obras de requalificação iniciadas há dois anos e nunca terminadas.

"A única coisa que disse aos senhores da administração foi: já morreram três crianças, vocês não sentem pena? A chuva está a se aproximar, como vai ser desta vez?", questionou, indignada.

Júlia José construiu a casa, na 7ª Avenida do Cazenga, com a ajuda do segundo marido, então brigadeiro das Forças Armadas Angolanas, com quem teve dois filhos. "Graças a esse relacionamento, os meus filhos formaram-se e consegui uma casa de dois quartos, sala, cozinha e casa de banho, onde moro com eles e os netos", sublinhou.

Para auxiliar nas despesas, a anciã arrendou o anexo de um quarto, sala, cozinha e casa de banho, no valor de oito mil kwanzas. "Não é muito, mas já consigo tirar daí dinheiro para aumentar no negócio", afirmou.

 
Luta pela sobrevivência

Com a ajuda de uma bengala, Júlia José desloca-se ao mercado da Asa Branca, a pé, para comprar os produtos para revenda.

"Coloco o saco de fuba na cabeça e a bengala no braço direito até chegar ao meu destino”, conta a idosa que, devido às constantes dores que sente nos membros inferiores, já não vende todos os dias.

"Não dá para depender muito dos filhos. Eles também têm as suas responsabilidades", notou. A idosa revelou que já houve momentos em que foi interpelada por delinquentes a solicitar petróleo ou fuba. "Se não entregas és agredida. Só Deus sabe!", exclamou.


Obstrução da via dificulta actividade dos mototaxistas

A mobilidade, da 7ª Avenida do Cazenga para outros pontos do município, é feita com recurso aos mototaxistas, que cobram entre 150 e 200 kwanzas.

Na placa dos motoqueiros, encontrámos o cidadão Barba Branca, de 48 anos, residente na rua do Tanque do Cazenga.

Segundo o mototaxista, diariamente ganha, no máximo, três mil kwanzas, a mesma quantia que tem que entregar ao patrão. "No fundo, acabamos por trabalhar só para os patrões e comprar gasolina", lamentou.

Outro motoqueiro, Domingos Manuel "Jacaré", 43 anos, explicou que a obstrução da rua acaba por dificultar o trabalho dos mototaxistas. "Não conseguimos fazer longas vias, porque estão todas fechadas. Isso dificulta a nossa actividade diária”, disse.

No final da rua, encontrámos uma paragem para os motoqueiros. Jovens com idades entre 18 e 30 anos cobram 200 kwanzas por dia aos mototaxistas, para a limpeza do local.

Horochi, de 22 anos, disse que por dia trabalham três indivíduos na placa, com a responsabilidade de controlar e cobrar o valor aos motoqueiros. "Nós fazemos a limpeza do local todas as sextas-feiras e escoamos a água parada, por isso, cobramos esse valor", informou.


Crianças vítimas das escavações

Na paragem da Decorang, encontramos o menino Jair, de 6 anos de idade. O menor foi a primeira vítima da escavação das obras de requalificação da 7ª Avenida. A mãe, Africana Barros, conta que desde o início das obras que vive dias difíceis, por causa do risco que os filhos correm ao brincar.

"No princípio do ano passado, o meu filho caiu no buraco e fracturou o braço esquerdo", disse, acrescentando que a família não recebeu qualquer ajuda da administração local ou dos empreiteiros responsáveis pela obra naquela altura.

Com o perigo à espreita, as crianças sentem-se oprimidas para brincar. Entrevistadas pelo Jornal de Angola, algumas crianças disseram que, com o início das obras, tiveram que mudar o tipo de brincadeiras.

Carlos, 14 anos, que estava entre cinco menores que jogavam "Não te irrites”, disse que antes podiam jogar à bola, correr, brincar "bica bidon" e "Às escondidas”, mas hoje já não podem fazer nada disso. As brincadeiras, actualmente, estão limitadas. "Jogamos cartas e ficamos mais tempo a assistir televisão para não nos ferirmos”, disse.

 
Silêncio da Administração Municipal

Numa altura em que se aproxima a época chuvosa, os moradores dizem estar preocupados com o silêncio da Administração Municipal do Cazenga, que até ao momento não se pronunciou sobre a situação.

Um detalhe que chama a atenção é que todas as casas possuem um pequeno muro na porta, para impedir a passagem das águas para o interior das residências, devido às enchentes causadas pelas chuvas.

Mas, essas medidas não têm sido suficientes para travar a força das águas. As grandes enxurradas obrigam os moradores a recorrerem às motobombas para evacuar as águas do interior das suas residências, como conta Josimar Correia, que vive no bairro há 25 anos.

"Moro numa rua sem saída, com mais 33 residências, e quando a vala enche a água escoa para dentro das nossas casas, chegando até à altura da cintura. Temos vivido momentos muito desagradáveis”, lamentou.

A atenção com as crianças, segundo os moradores, deve ser redobrada, porque o mínimo descuido pode ser fatal.

Ainda na 7ª Avenida, o director da Escola primária 3054 avançou que muitas vezes as aulas são interrompidas, devido às enchentes, pois a escola também acaba por ficar inundada.

Muitas vezes, prosseguiu, os alunos são obrigados a ajudar a tirar a água com baldes.


Nova administradora aponta 7ª Avenida como prioridade
A nova administradora do Cazenga, Nádia Neto, nomeada na semana passada, afirmou que tem como prioridade a reabilitação da 7ª Avenida do Cazenga. "Para a implementação dos programas do Executivo, entre eles a reabilitação da 7ª Avenida, espero contar, igualmente, com o apoio da comunidade”, disse no final da cerimónia de tomada de posse na sede do Governo da Província de Luanda.

No mês passado, o Presidente da República, João Lourenço, através do Despacho Presidencial n.° 222/23, de 14 de Setembro, autorizou a despesa e a abertura do Procedimento de Contratação Simplificada, pelo critério material, para a execução da empreitada de reabilitação da 7ª Avenida do Cazenga, no valor de global de 7,6 mil milhões de kwanzas.

As obras de reabilitação da 7ª Avenida fazem parte do Plano Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM).

O Despacho surge da necessidade de conclusão deste projecto, com impacto significativo na vida social dos munícipes residentes naquela circunscrição administrativa de Luanda, na sequência da rescisão do contrato com a empreiteira Engeniun, por incapacidade técnica para levar a cabo a execução das obras.

Ao governador da província de Luanda, Manuel Homem, foi delegada competência, com a faculdade de subdelegar, para aprovação das peças do procedimento e verificação da validade e legalidade de todos os actos praticados no âmbito do procedimento, incluindo a celebração e assinatura dos contratos.

De acordo com o despacho, o Ministério das Finanças deve assegurar os recursos financeiros necessários à implementação do contrato.


O preço da travessia
Eduardo Diogo, 19 anos, e mais sete amigos encontraram uma oportunidade de negócio. Os jovens montaram uma ponte improvisada, com paus e sacos de areia, para permitir uma travessia mais segura. Os moradores pagam uma taxa de 50 Kwanzas sempre que quiserem fazer a travessia.

"Construímos essa ponte há dois anos. Cortámos alguns paus e plantámos sobre a vala cheia, e pregámos para ficarem bem seguros. Actualmente, suporta até a passagem de motos. Os motoqueiros pagam cem kwanzas por cada travessia”, disse Eduardo Diogo. 

Quem não aceita pagar a taxa é obrigado a andar longas distâncias para chegar ao outro lado da vala. Eduardo Diogo sublinha que, com a chegada do tempo chuvoso, ele e os amigos pensam em reabilitar a ponte improvisada ou construir uma nova.


Ponto de venda
Apesar de estar interditada para obras, a 7ª Avenida continua muito movimentada. Na rua, observam-se vários pontos de venda, onde os moradores montam bancadas e comercializam produtos diversos, para garantir o sustento das famílias.

O serralheiro Ramiro Bezerra, de 60 anos, conta que já se viu obrigado a fechar o estabelecimento devido às enchentes que, por diversas vezes, destruíram os equipamentos e materiais de trabalho.

O aumento da delinquência é um dos problemas que muito inquieta os moradores, que deixaram de circular à vontade devido ao número cada vez mais crescente de roubos registados em plena luz do dia.

Muitos dos meliantes usam as manilhas, deixadas pela empreiteira no meio da Avenida, como esconderijo e ponto de controle às potenciais vítimas, situação que preocupa os moradores.

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