Opinião

Contágio

Caetano Júnior

Jornalista

Trezentos e sessenta e cinco dias depois da primeira evidência do vírus, 526 mortos, 21.696 infecções, 20.068 recuperados e 1.102 casos activos, Angola pode orgulhar-se de ser das nações do mundo menos afectadas pela doença Covid-19.

21/03/2021  Última atualização 10H57
E está também entre as que melhor resposta deu a esta ameaça à sobrevivência global, sobre a qual se diz  ter origem em Wuhan, localidade chinesa. Sequer é necessário o testemunho da ciência, bastando o senso comum para o atestar.

Nos meses finais do ano de 2019, chegaram as primeiras notícias sobre um vírus invasivo, letal, que se disseminava rapidamente entre os humanos, ameaçando a saúde e a integridade física da população mundial. Na altura, quase ninguém acreditava que a sobrevivência dos autoproclamados seres pensantes estava em risco e as liberdades que tanto prezam e defendem, como a de movimentos e de circulação, estavam a prazo. Não demorou muito para que a realidade que se desenhava para o futuro começasse a adensar-se. De lugares da Ásia, para nós, continente geograficamente longínquo, relatos da disseminação do vírus e de mortes subsequentes já não deixavam margem para dúvidas, nem hesitações: não estávamos, afinal, tão distantes dos asiáticos como supúnhamos. 

Quando a OMS - Organização Mundial da Saúde - elevou-lhe o "estatuto” para Pandemia, a Covid-19 não tinha demorado para chegar à Europa, desta à África e, naturalmente, a Angola. A Sars-COV-2 viajou à VIP, à boleia de hospedeiros, homens e mulheres, que a ajudaram a disseminar-se pelo mundo. A  21 de Março de 2020, registou o País o primeiro caso, depois de, a 17 e 18, terem chegado os dois últimos voos, vindos de Lisboa e Porto, cidades portuguesas, antes de ser decretado o Estado de Emergência, que aconteceu pela primeira vez na Angola Independente. Foram os dois mais polémicos desembarques que se tem memória, cuja atitude de passageiros fez despertar em terra tanto a ira quanto o histerismo. Seguiram-se mais infecções e as primeiras mortes, a 29 de Março.

O País começou então a viver uma verdadeira provação; um calvário que lhe foi imposto por um mal invisível, traiçoeiro, tão sinistro que mudou a forma como as pessoas encaravam a vida; alterou hábitos e costumes, desfez rotinas. Enfim, a natureza de um povo culturalmente afirmado acabou transformada, voltada de patas para o ar. Os piores receios estavam confirmados e os tempos passaram a ser de pavor e ansiedade. Angola fechou-se em si mesma: parentes apartaram-se, amigos distanciaram-se, colegas deixaram de se ver, enfim, casais estranharam-se. A vida passou a limitar-se ao interior de paredes, muito poucas e às vezes carentes das mínimas condições, para muitos agregados.

O confinamento que se seguiu, como medida de protecção contra a pandemia, colocou à prova a resistência e a fé das famílias; testou a capacidade de tolerância entre casais e a profundidade do amor que se tinham. Fez, em muitos casos, emergir mais afecto, carinho e compreensão. Em outros, porém, precipitou o fim da união; propiciou o rompimento da ténue linha que a alimentava. A Covid-19 não apenas inscreve um legado de morte. O rasto de destruição que nos vai deixando atinge-nos o corpo, a mente, o coração e a alma. Devasta-nos no nosso conjunto humano.

Mas a quarentena também devolveu a muitos de nós a sensibilidade; arrancou o potencial de solidariedade que tínhamos adormecido, estendendo-a a quem sofreu com a perda de um ente querido ou àquele que se viu privado do único recurso que tinha para dar resposta às necessidades diárias. Mais do que ensinar-nos a resistir à acção da sua força destruidora, a Covid-19 mostrou-nos a importância da fé; a necessidade da crença em que da adversidade nascem ensinamentos para a vida ou que a resistência e a esperança devem seguir connosco, ancoradas uma à outra.

Por mais trágicas que tenham sido as perdas, em um ano de pandemia e dos males que lhe são periféricos, a verdade é que podia ter sido pior. É a ilação a retirar, num rescaldo sóbrio. Vivemos numa sociedade de necessidades "não resolvidas”, somos um país terceiro-mundista, com carências graves ao nível do saneamento básico e de precariedade na saúde. Em resumo, portamos sérios problemas. Por isso, epidemiologistas pelo mundo adivinhavam um cenário desastroso para nações como a nossa: no prazo de um ano, a Covid-19 ter-nos-ia dizimado.

É verdade que não há ainda razão para celebrar, nem uma perspectiva a curto prazo para que se dê a pandemia como vencida. Mas hoje, um ano depois de o "mal supremo” ter descido sobre Angola, a esperança ganha um tom esverdeado mais profundo. O vaticínio pessimista de especialistas não apenas continua por se confirmar, como eles próprios procuram bases científicas para explicar que "milagre” amparou a desgraça que se anunciava para as nossas nações.

Talvez   seja das medidas tomadas pelas autoridades: o confinamento imediato, mal foram identificados os primeiros casos, a cerca sobre Luanda, o encerramento das fronteiras, sempre que se imponha, e o aliviar ou o apertar das restrições, por força da avaliação do quadro geral. A pronta acção dos angolanos recebeu, inclusive, o elogio de figuras e de organizações internacionais.
E se o quadro que se regista em Angola dever-se também "à nossa elevada imunidade”, como afiançam especialistas? Os angolanos têm, por muitos anos, o organismo exposto a doenças infecciosas, dizem. Que seja, então! Tem-se revelado vantajoso.             

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