Opinião

Empreendedorismo é um empreendimento colectivo

Argumenta-se em alguns meios que o motor de desenvolvimento para os países pobres deveria ser o chamado “ mercado informal”, formado por pequenos negócios sem registo adequado nas instâncias governamentais competentes.

27/01/2020  Última atualização 08H09

Dizem, então, que as pessoas empreendedoras no sector informal têm inúmeras dificuldades, porque não conseguem obter dinheiro para concretizar as suas iniciativas e não porque lhes falte visão e habilidades necessárias.
Com efeito, estas são discriminadas pelos bancos e os agiotas cobram taxas de juros proibitivas.
Se lhes fosse permitido terem acesso ao micro crédito, a uma taxa de juros razoável de modo a tornar-se possível montar uma barraca de comida, comprar um telefone celular para alugar a terceiros, comprar algumas galinhas para vender os ovos, deixariam de ser pobres com toda a certeza.
Deste modo, com esses pequenos empreendimentos, formando o grosso da economia do país em desenvolvimento, o sucesso delas traduzir-se-ia em desenvolvimento generalizado.
A descoberta do microcrédito é atribuída a Muhammad Yunes, fundador em 1983 do Banco Grameen, em Bangladesh.
A concessão de empréstimos foi feita a pessoas pobres, especialmente a mulheres, que em geral eram tradicionalmente considerados casos de alto risco.
Não obstante isso , o Banco Grameen ostentou um elevado coeficiente de liquidação de dívidas, atingindo mais de 95%, e assim demonstrando que os pobres são altamente lucrativos.
Com a constatação do êxito do Banco Grameen e outros semelhantes em países como a Bolívia, e da ideia do microcrédito, na sua concepção mais ampla de microfinanças, que inclui a poupança e o seguro e não apenas o credito, rapidamente se espalharam um pouco por toda a parte.
De facto, a receita parecia perfeita, pois o microcrédito possibilitava que os pobres saíssem da pobreza pela via do seu próprio esforço, proporcionando-lhes os meios financeiros para realizarem o seu potencial empreendedor, tanto mais que já não se apoiavam nos donativos do governo e dos organismos internacionais.
As mulheres pobres ficaram particularmente favorecidas pelo microcrédito, que lhes conferiu a capacidade de ter uma renda própria e por conseguinte, melhorar a sua posição de negócio vis-à-vis com os seus parceiros do sexo masculino.
Por outro lado, ao deixar de financiar os pobres, os governos sofrem menos pressão nos seus orçamentos.
Em meados de 2000 a popularidade das microfinanças alcançou um nível de grande exaltação com as Nações Unidas proclamando o ano de 2005 como Ano Internacional do MicroCrédito, atingindo o apogeu em 2006 quando foi concedido o Prémio Nobel da Paz ao prof. Muhammad Yunus e ao Banco Grameen.
Infelizmente tudo isso não passou de badaladas, pois as críticas às microfinanças foram aumentando de tom, mesmo por parte daqueles que foram os pioneiros na sua defesa.
A indústria de microfinanças defendeu sempre e propagou que as suas operações permanecessem lucrativas, sem subsídios do governo ou contribuições de doadores internacionais, excepto na fase inicial de desenvolvimento. Alguns usaram isso como uma demonstração de que os pobres são tão capazes, como qualquer outra pessoa, de actuar no mercado, desde que tenham possibilidade.
Acontece que, entretanto, sem subsídios dos governos ou de doadores internacionais, as microfinanças precisam de cobrar, e na realidade vêm cobrando, taxas quase idênticas às dos agiotas.
Não sendo subsidiadas, as instituições de microfinanças têm de cobrar taxas de juros de 40% a 50% ao ano pelos seus empréstimos, com as taxas atingindo patamares de 80% a 100% em países como o México
Ora, com taxas de juros chegando aos 100%, raros são os negócios suficientemente lucrativos para pagar os empréstimos, de maneira que quase todos os empréstimos feitos pelas instituições de microfinanças foram utilizados para consumo.
Por outras palavras, significa que, a maior parte do microcrédito é utilizada para alimentar o empreendedorismo dos pobres, a suposta meta da prática, e serve para financiar o consumo.
O mais grave ainda, é, que nem mesmo a pequena parte do micro crédito que é direccionado para actividades comerciais não está a tirar as pessoas da pobreza.
Elas necessitam gerar lucros muito elevados porque têm de pagar a taxas de juros de mercado, mas, com o andar do tempo, os negócios foram-se amontoando e os lucros começaram a baixar.
Esse problema nunca existiria se novas linhas de negócios pudessem ser constantemente desenvolvidas, mas a dificuldade reside no facto de existir apenas um leque muito limitado de actividades simples, às quais os pobres se podem dedicar nos países em desenvolvimento, devido às suas habilitações limitadas, à pequena variedade de tecnologias disponíveis e à reduzida quantidade de financiamento que eles podem mobilizar através das microfinanças.
O empreendedorismo encontra-se, assim, na essência do dinamismo económico e, de tal maneira que, a economia não se poderá desenvolver, se não houver pessoas empreendedoras, que busquem novas oportunidades lucrativas, que geram novos produtos e atendam uma demanda não satisfeita.
A falta de empreendedorismo é apontada como uma das razões para a ausência de dinamismo económico em vários países em desenvolvimento.
As pessoas que vivem em países pobres precisam de ser empreendedoras, mesmo que apenas para sobreviver.
A verdade é que, não é a ausência de uma energia empreendedora, a nível pessoal, mas sim a ausência de tecnologias e organizações sociais desenvolvidas e, em especial, empresas modernas, que tornam pobres os países em desenvolvimento. Para cada pessoa ociosa num país em desenvolvimento, encontramos duas a três crianças engraxando sapatos e quatro a cinco vendendo mercadorias na rua.
Os problemas criados pelo microcrédito mostram as limitações do empreendedorismo individual, apesar de serem empréstimos pequenos às pessoas pobres, nos países em desenvolvimento, com o objectivo muito claro de ajudá-las a montar um negócio.
O empreendedorismo tornou-se, ao virar do século XX, uma actividade colectiva, de modo que a pobreza da organização colectiva tornou-se um obstáculo muito maior ao desenvolvimento económico, e não a mentalidade empreendedora deficiente das pessoas, como se pretendeu fazer crer.
Enfatizando a questão, o que efectivamente torna pobres os países em desenvolvimento não é a falta de energia empreendedora individual, pois eles têm-na em abundância.
Por outro lado, o que realmente torna ricos os países desenvolvidos é a sua capacidade para canalizar a energia empreendedora individual para o empreendedorismo colectivo.
Assim, ao longo do desenvolvimento capitalista, o empreendedorismo tornou-se um empreendimento cada vez mais colectivo.
A nível da empresa, o empreendedorismo tornou-se altamente colectivo nos países desenvolvidos. São poucas ou mesmo nenhumas, as companhias geridas por génios e visionários carismáticos e, em seu lugar, surgiram grandes profissionais à frente da sua gestão.
O empreendedorismo eficaz deixou de ser puramente individual durante o século passado.
A capacidade colectiva de construir e administrar organizações e instituições eficazes é, hoje em dia, mais importante do que os impulsos ou até mesmo os talentos dos membros individuais de uma nação na determinação da sua prosperidade.
Os países pobres nunca sairão da pobreza de maneira sustentável se não rejeitarmos o mito dos empresários heróis individuais e os ajudarmos a construir instituições e organizações de empreendedorismo colectivo.

*Ex-ministro das Finanças e antigo Governador do Banco Nacional de Angola