Reportagem

Festa da circuncisão entra em desuso no Huambo

Estácio Camassete | Huambo

Jornalista

A tradicional cerimónia da circuncisão realizada desde os tempos remotos, com vários rituais tradicionais, corre o risco de entrar em desuso, devido a desistência de algumas comunidades, que desencorajam tal prática.

19/09/2023  Última atualização 08H57
© Fotografia por: Joaquim Armando-Huambo

Hoje muitas pessoas preferem levar os filhos às unidades hospitalares para a circuncisão, esquivando-se da linha cultural da ancestralidade e deixando a tradição fragilizada.

O rei da ombala do Huambo, Artur Moço, aconselha as famílias que não se revejam na circuncisão dos filhos ao estilo tradicional a realizar o corte do prepúcio no hospital e depois ir  aprender os rituais da ocasião, para que não se quebre a cultura dos povos Umbundu.

Ao proceder desta forma, disse, as crianças vão ter a oportunidade de aprender todo o processo do evamba (circuncisão).


Comunidades do interior mantêm a prática

Apesar de tudo, a cerimónia ainda é muito praticada nas comunidades do interior da província, principalmente nas famílias mais conservadoras das tradições locais.

No evamba, de acordo com o rei, o homem sai bem modelado e aprende como sobreviver, como construir a sua casa, como formar, defender e sustentar a sua família, através das actividades agrícolas, pesca e caça.     

Artur Moço informou que esta prática tradicional regista, nos últimos tempos,  alguma letargia no Planalto Central, ao contrário de outras regiões do país, que exaltam, com muito fervor, os seus costumes.

Não obstante isso, a circuncisão é realizada apenas no tempo de cacimbo, entre Maio e Agosto, para aproveitar o frio e curar rapidamente as feridas resultantes do corte do prepúcio.

O frio também é aproveitado para testar a coragem do adolescente diante das baixas temperaturas e para evitar hemorragia nos cortes. Durante a circuncisão, os adolescentes são preparados e ficam na mata durante várias semanas até que as feridas sarem por completo, aos cuidados do otchiluwe (cirurgião), ao lado do padrinho do grupo chamado (nanwan), em companhia dos mágicos e outros conhecedores da matéria.

Ali aprendem várias actividades, caçam animais de pequeno porte e realizam a pesca artesanal para enriquecer a dieta alimentar, que deve ser tomada sem sal nem óleo alimentar. Durante este tempo, o adolescente aprende a doutrina dos rituais tradicionais e outras práticas e, depois disso, regressa à sua comunidade bem formatado, para enfrentar as dificuldades da vida.

Depois das feridas estarem completamente saradas, o acampamento dos circuncidados termina com uma festa realizada pelas famílias, devolvendo-se os adolescentes às respectivas famílias. A festa é animada com cânticos próprios, ao som do batuque, com muita 'tchissângua' e 'kaporroto'. A seguir, o jovem que antes era chamado de otchilima (incircuncidado) passa a ser denominado tchilombola (circuncidado), ganhando maior respeito da comunidade.


O otchingandji

O soberano  destacou a figura do palhaço, conhecido como "otchingandji”, como um verdadeiro elemento cultural que deve ser bem identificado e preservado na memória cultural do povo angolano. "Ele não faz mal a ninguém, é simplesmente um artefacto cultural. Ninguém tem o direito de chegar a igreja e dizer que aquilo é demónio ou diabo, enquanto não conseguir provar isso. Com este tipo de comportamento, estaremos a nos negar e estragar a cultura africana”, disse em conversa com o Jornal de Angola.

O rei da ombala do Huambo afirmou que, mesmo na condição de religioso, não se pode apagar o passado cultural. "Tem de se aceitar conviver com os valores novos e os antigos”, enfatizou.

Segundo o rei Artur Moço, o otchingandji (palhaço) está no centro das atenções dos ovimbundu e é um animador por excelência, amado por uns e odiado por outros, por ser uma grande riqueza cultural.

"Antes de chegar a civilização europeia, várias práticas tradicionais eram consideradas como religião dos nossos antepassados. Isso é que faz a alegria do povo, mas o colono rapidamente inculcou nas cabeças das pessoas que esta prática era pecado”, lamentou.

O rei lembrou que, no passado, antes da chegada dos missionários, a principal diversão dos povos nativos era a dança do palhaço, acompanhada do som do batuque e outros estilos tradicionais e o povo cantava e batia palmas.

Artur Moço apelou aos jovens a procurarem conhecer o seu passado cultural, sem vergonha, para poderem avaliar onde estão, como estão, para se definirem melhor onde querem ir.

No seu entender, o pior erro de muitas pessoas é pensar que cumprir alguns rituais culturais é estar em contramão à lei religiosa, o que não corresponde com a verdade.

 "Quem for membro de uma igreja pode também exercer actividades culturais. Deus não é contra isso, é só saber separar as coisas. Quando estiver nas vestes de cristão, deve fazê-lo com fervor e quando estiver a cumprir a tradição, não deve misturar com a religião, respeitando cada posição”, aconselhou.


Falta cooperação entre igrejas e autoridades tradicionais


O rei do Huambo, Artur Moço, reclamou da falta de cooperação entre as igrejas e as autoridades tradicionais no Huambo

No seu entender, se estas duas instituições continuarem de costas viradas e sem diálogo, muitos problemas sociais que assolam as comunidades vão ficar sem solução.

Lamenta o facto de muitos religiosos olharem para as actividades culturais como um elemento totalmente ultrapassado e prática de pessoas atrasadas, espezinhando quem pratica tais coisas.

 "Um dos problemas dos últimos tempos chama-se religião, porque apanhou os angolanos de surpresa, de uma forma muito forte e fanática. Não seria perigoso se a religião e a cultura andassem de mãos dadas”, sublinhou.

No seu entender, a religião também faz parte da cultura nacional.

Mas lamenta que, nos últimos tempos, o número de igrejas cresceu em grande medida e isso faz com que a cultura entre em risco, porque se multiplicam as instituições que lutam contra ela.

"Por exemplo, um homem que vem do Congo Democrático, Camarões ou qualquer parte do mundo, em poucos dias já fundou uma igreja, passa de imigrante para profeta, o que está a banalizar a religião”, lamentou.


Mais valorização

O rei da ombala do Huambo disse que ainda é possível fazer com que esta prática volte a ser valorizada como elemento cultural da região. Para tal, é necessário um trabalho de resgate e voltar à massificação da circuncisão tradicional.

Artur Moço apelou ao Ministério da Educação a enquadrar nos seus programas e manuais escolares, ensinamentos ligados aos hábitos e costumes locais. "Se no tempo colonial os portugueses nos obrigavam a estudar nos seus manuais e assimilamos a história de Portugal, os seus rios, heróis e cidades, também é possível estudar o que é nosso”, apelou.

O responsável espera que a região do Huambo consiga reaver muitos dos hábitos perdidos e que ainda são possíveis de serem resgatados, através de muito diálogo entre os mais velhos e a nova geração.

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