Reportagem

O angolano que ensina fracções matemáticas com bolas de funge

Alexa Sonhi

Jornalista

Hermenegildo Paulo tem alma de gastrónomo, mas, ao mesmo tempo, é um matemático consagrado. O professor de Matemática é um nome que faz furor nas terras de Joe Biden, por causa do seu método de ensino. O angolano encontrou uma nova forma de ensinar fracções matemáticas aos seus alunos: usando bolas de funge.

10/12/2023  Última atualização 12H44
Hermenegildo Paulo tem alma de gastrónomo, mas, ao mesmo tempo, é um matemático consagrado. © Fotografia por: Arsénio Bravo| Edições Novembro
Nascido na cidade do Uíge, Hermenegildo foi sempre um entusiasta por números. Na adolescência alimentava o sonho de ser professor da disciplina de Matemática, Física ou Química. Do sonho à realidade, Hermenegildo Paulo contou com o auxílio da  mãe, que leccionava no ensino primário.

Natural da província cafeícola do Uíge, onde nasceu há 42 anos, o rigor e os métodos de ensino da mãe, na época professora do I ciclo, ajudaram Hermenegildo Paulo ou o "professor do funji”, como é conhecido nos Estados Unidos, a driblar quase todas as equações nas disciplinas de Matemática, Física ou Química.

A caminhada estudantil foi pacífica e engenhosa. No ensino médio, decidiu seguir as pegadas da mãe, optando por ingressar no Instituto Médio Normal de Educação (INME), vocacionado para a formação de professores. O sonho enquanto criança se materializa. Por ser amante dos números, optou pelo curso de Matemática e Física.

Portanto, a mensagem de estudar para não reprovar e ter um comportamento aceitável estiveram sempre presentes desde muito cedo em casa e na sala de aula: por um lado, o gosto pela ciência e, por outro, uma certa responsabilidade social, porque sempre teve a mãe próximo de si.

O "professor do funji” foi sempre um estudante habilíssimo. Durante quatro anos, frequentou o INME, tendo terminado a formação em 2002, com várias distinções. Por conta disso, Hermenegildo Paulo alimentou o sonho de ser engenheiro ou professor universitário na especialidade de Matemática. Algo impossível para muitos alunos.

Do ISCED do Uíge ao exílio

Não acredita na ideia de que se nasce matemático, mas é verdade que desde pequeno foi instigado a gostar de números. Por isso, ainda na província do Uíge, Hermenegildo Paulo inscreveu-se no Instituto Superior de Ciências a Educação (ISCED), no curso de Matemática. Mas, nem tudo correu como o desejado.

Em 2003, depois de transitar para o segundo ano, viu-se forçado a frequentar os anos subsequentes, por conta do défice de docentes. "Todos os ISCED dependiam de Luanda, porque muitos dos professores saiam da capital do país para, em jeito de seminários, darem aulas no Uíge e nas demais províncias”, lembra.

Pensou inúmeras vezes em optar por outro curso. O sentimento de amor pela terra natal foi posto em causa e a emigração passou a ser o tema de conversa em casa e no seio estudantil. "Tal situação criava muitas dificuldades aos estudantes, a ponto de muitos ficarem seis ou mais anos lectivos sem defenderem a tese de licenciatura”, disse.

Poucas eram as condições para a conclusão do curso superior na cidade do Uíge. Por essa razão, Hermenegildo Paulo optou por ‘emigrar’ para Luanda. Mas, antes aconselhou-se com os pais e familiares directos.  Já na capital do país, depois de vários contactos e rompidas as barreiras burocráticas e administrativas, foi admitido.

Longe da família e das pessoas mais próximas, Hermenegildo Paulo enfrentou o dilema de adaptação. Mas, nem com isso, desistiu dos seus objectivos. Em 2004, o "professor do funji”", como é chamado, estudou o segundo ano, no ISCED-Luanda, e como sempre foi um bom estudante. Em quatro anos, concluiu toda a fase curricular. Em 2007, defendeu a sua tese de monografia.

O explicador - procura emprego 

No ano de 2008, Hermenegildo Paulo, com o diploma de licenciado em Matemática, decidiu correr atrás do seu sonho de menino: leccionar numa universidade a disciplina de Matemática. O jovem oriundo do Uíge percorreu Luanda de lés a lés, distribuindo currículos e cópias do diploma.

Participou nos diferentes concursos públicos que o Ministério da Educação organizou e outras instituições públicas. Para infelicidade de Hermenegildo Paulo, os resultados foram sempre negativos. Insatisfeito com a realidade, optou por ser professor ao domicílio e leccionar em estabelecimentos de ensino privado.

O sonho de entrar para o funcionalismo público nunca enfraqueceu. As portas voltaram a abrir-se em 2011. Como bom matemático, mudou de estratégia, estudando os exames anteriores. Ficou apto. A alegria transcendeu Luanda e estendeu-se ao Uíge, sua terra natal.

Os dias que antecederam a cerimónia de entrega das guias de colocação foram de enorme expectativa. Mas, foi sol de pouca dura, como soe dizer-se na gíria. No acto de entrega das guias, apenas um pequeno grupo foi contemplado, com a justificação de que os demais apurados receberiam as guias nas semanas seguintes.

A espera pela tão ansiosa data de entrega das guias de colocação criaram-lhe expectativas e problemas de saúde. Infelizmente, o acto nunca aconteceu. E como diz o velho adágio, "Deus ajuda quem cedo madruga”, no ano seguinte Hermenegildo Paulo voltou a concorrer ao concurso público da Educação.

Foi admitido! Desta vez, a sorte bafejou-lhe e foi seleccionado para dar aulas na escola da Força Aérea Nacional, vulgo "Fapa”.

Viagem para os Estados Unidos da América

Hermenegildo, o jovem talento que sempre se mostrou curioso no ambiente escolar, demonstrando habilidades intelectuais nas áreas de Matemática, contou, que em 2016, começou a ter problemas de saúde. Os desníveis hipertensivos eram o que mais o preocupava.

O ano de 2016 entra para a história do professor Hermenegildo. Com a ajuda dos pais e de familiares angariou dinheiro e viajou para o exterior, mais concretamente para os Estados Unidos, onde um dos irmãos mais velhos já se encontrava a residir há vários anos. Nos EUA, Hermenegildo Paulo foi submetido a uma série de exames médicos.

"Nunca sonhei em viver fora, nos Estados Unidos. Parecia algo impossível, distante de se alcançar. O meu desejo na altura era apenas visitar o meu irmão que vive no estado de  New Jersey, perto de de Nova Iorque, e regressar para Angola em Janeiro de 2017, e continuar a minha experiência como funcionário do Ministério da Educação”, revela.

Com o o potencial tecnológico e a oportunidade de uma nova carreira profissional, decidiu mudar de planos e fixar-se nos Estados Unidos. O professor de Matemática na escola da Força Área Nacional, vulgo "Fapa”, decidiu refazer os planos de vida. Com o apoio moral do irmão mais velho, Hermenegildo Paulo resolveu reunir a documentação necessária que lhe habilitava viver nos Estados Unidos.

A língua inglesa tornou-se no seu primeiro empecilho. Por recomendação do irmão mais velho, passou a frequentar o curso intensivo de inglês. Viu-se forçado a abandonar Nova Iorque e fixar-se na cidade de Portland, estado de Maine. Três vezes ao dia, frequentava o curso intensivo, cuja duração foi de um ano.

"Eu só me dedicava em aprender a língua, e com todos os erros possíveis, me negava a falar português. Hoje, falo o inglês fluentemente e os meus amigos já não se riem de mim”.

Decisão

Hermenegildo Paulo foi sempre um homem inconformado. Depois de aprender a língua e falar fluentemente o inglês, procurou adquirir uma equivalência da sua formação académica. Procurou por pessoas conhecedoras na matéria até lhe ser indicada uma instituição onde isso fosse possível.

"Para minha surpresa e alegria, recebi a mesma equivalência de licenciado nos EUA. A formação, feita toda em Angola, foi reconhecida com o mesmo grau. E como desejava continuar com o meu sonho de leccionar Matemática, enviei a minha documentação à administração da cidade”, lembra.

Analisado o processo pelas instituições de ensino dos EUA, constatou que Hermenegildo Paulo possuía requisitos para leccionar Matemática da 6ª à 8ª classe, mas para tal precisava de frequentar uma disciplina importante para professores, que lhe permitia trabalhar em simultâneo com alunos com necessidades especiais. "No ISCED, nunca tivemos esta disciplina, por isso fui obrigado a frequentar esta formação. No fim de tudo, fiz provas e as notas foram adicionadas ao meu curriculum para fazer face às exigências dos Estados Unidos, para professores que desejam dar aulas de Matemática”.

A caminhada de Hermenegildo Paulo pelos EUA afigurou-se promissora. Abriram-se outras oportunidades. Enquanto frequentava a formação para professores, os responsáveis pelo sector da Educação do estado de Portland  concederam-lhe uma licença provisória como auxiliar na "King Middle School”.

Terminada a agregação pedagógica, foi-lhe concedida a licença profissional com a validade de cinco anos. Trabalha na King Middle School  desde 2020. Questionado sobre as burocracias com a tramitação da documentação para se fixar legalmente nos EUA, o professor Hermenegildo conta que teve algumas dificuldades.

Outra das soluções encontradas para resolver a problemática da legalização foi ter se casado com uma cidadã norte-americana, que lhe permitiu ter a declaração de  residência, gozando assim de quase todos os direitos como se de um cidadão norte-americano se tratasse.

Funge de bombó no ensino  das fracções matemáticas

Hermenegildo Paulo tem alma de gastrónomo, mas, ao mesmo tempo, é um exímio matemático. Por ser tão criativo e comprometido com o ensino, Hermenegildo queria que os seus alunos aprendessem fracções matemáticas de forma mais simples, uma exigência do estado de Portland para os alunos da 6ª, 7ª e 8ª classes.

"E como o material didáctico é muito pesado, pensei em trazer para a escola outra realidade, que não fosse a americana. Daí que decidi fazer do funge de bombó na sala, usando as medidas contidas nos livros para que os alunos nunca mais se esqueçam da matéria sobre fracções”, disse.

Na opinião do professor Hermenegildo, quando se cozinha as bolas de funge, são usadas como fracções matemáticas. Numa aula conjunta com os alunos, calculou-se tudo, a quantidade de água a usar, a fuba, quanto gastariam para comprar o feijão, a kisaca e o frango.

Calculou-se também o número de alunos por cada sala de aula, duas, três, quatro e inclusive a escola toda. Os molhos foram feitos em casa do professor e levados para a escola em marmitas, já a primeira porção do funge foi feita pelo professor em plena aula e, em seguida, os alunos fizeram as outras porções de funge.

"Cara jornalista! A aula foi simplesmente um sucesso, porque todos os alunos africanos já conheciam e os próprios americanos amaram e denominaram de "Fufu Friday”. Porque era feita pelo menos em todas as sextas-feiras de cada mês, acabando por se tornar uma tradição no estabelecimento de ensino”, explicou.

Para alegria dos encarregados de educação, o nome de Hermenegildo Paulo passou a ser referência entre os  alunos, bem como na comunidade onde residia. Os alunos fizeram um abaixo assinado a pedir que a direcção da escola colocasse o "Fufu Friday” na ementa de alimentação da cantina escolar. 

Mestre em liderança

Fruto do seu bom trabalho na escola, a direcção da instituição notou em Hermenegildo sinais de liderança nata e muita criatividade, por esta razão o mesmo foi convidado a participar de um mestrado em liderança de instituições educacionais, tendo se destacado entre os demais da sala de aula.  

Por conta do seu excelente desempenho, este ano Hermenegildo Paulo foi convidado para concorrer às candidaturas para o cargo de gestor escolar.

"Aceitei o desafio candidatei-me e graças a Deus fui seleccionado para ser o director-adjunto da Gerald E. Talbot Community School, que é uma instituição do ensino primário que lecciona do ensino pré-escolar até à 5ª classe, cujas aulas terão início  no próximo ano lectivo”, realçou.

Como angolano, Hermenegildo Paulo se sente orgulhoso por saber que o conhecimento adquirido em Angola teve a mesma validade nos Estados Unidos, o que lhe permitiu trabalhar, sem problemas, num país estrangeiro e tão avançado tecnologicamente.

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