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Turistas impressionados com o funcionamento do tribunal tradicional de Mbanza Kongo

Turistas oriundos da vizinha República Democrática do Congo (RDC) visitaram recentemente o Museu dos Reis do Kongo, o Kulumbimbi, primeira Sé Catedral ao Sul do Sahara, e o tribunal tradicional “Lumbo Lua Ntotela”, e ficaram admirados com a forma como são realizadas as sessões de julgamento.

23/10/2023  Última atualização 09H00
Os procedimentos utilizados pelos juízes tradicionais não diferem muito dos que norteiam os tribunais judiciais em funcionamento no país © Fotografia por: Garcia Mayatoko| Edições Novembro

O presidente da comitiva dos 35 turistas da RDC, Doddez Moke Tasukay, disse ter ficado impressionado pela conservação dos hábitos e costumes, principalmente o tribunal tradicional do "Lumbo Lua Ntotela”, na cidade classificada como Património Cultural da Humanidade.

Quem visita a antiga capital do Reino do Kongo, Mbanza Kongo, pode assistir às sessões do "Lumbu Lua Ntotela”, localizado por trás do pátio do quintal do Museu dos Reis do Kongo, obedecendo a determinados preceitos.

Os homens não podem utilizar chapéu e, ao se sentarem, não podem cruzar os pés. Também não é permitido o uso de telefone para tirar fotografia, sob pena de pagar uma multa.

As mulheres são obrigadas a usar o pano até à cintura, durante o julgamento, não podem falar ao telefone ou conversar.

O coordenador do Lumbo, Afonso Mendes, esclarece que a instituição já existe antes da chegada dos portugueses. Depois da independência, em 1975, o Governo entendeu que os assuntos tradicionais deviam continuar a ser tratados como no passado, no intuito de conservar o local, hoje classificado como Património Cultural da Humanidade.

O tribunal tradicional do Lumbo Lua Ntotela recebeu, no início deste ano, visitas da  Vice – Presidente da República, Esperança da Costa, e do embaixador dos Países Baixos em Angola, Tsjeard Hoekstra. O diplomata considerou a província do Zaire uma região importante do ponto de vista cultural, histórico e económico.

Tsjeard Hoekstra justificou que o Zaire é histórico porque é Património Cultural da Humanidade. É importante do ponto de vista económico porque possui petróleo.

Devido às suas particularidades,  Mbanza Kongo tem recebido, com frequência, visitas de cidadãos de países como Congo Brazzaville, Canadá, Estados Unidos da América, Brasil, Portugal e França, a fim de realizarem trabalhos de investigação cultural e histórica.

 
Invasão de terras

O coordenador do Lumbo, Afonso Mendes, frisou que  as terras onde viviam os antepassados antes da chegada dos portugueses, chamadas na língua materna Kikongo "mazumbus”, são consideradas património familiar.

O que tem acontecido, acrescentou, é que algumas famílias invadem as terras de outras, violando os limites ou apropriando-se delas na totalidade, facto que tem provocado muitos conflitos entre famílias. A equipa do Jornal de Angola esteve no Lumbu Lua Ntotela e assistiu ao julgamento de um caso que envolvia duas famílias que entraram em conflito devido a acusações de prática de feitiçaria.

Os procedimentos utilizados pelos juízes tradicionais não diferem muito dos que norteiam os tribunais judiciais.

No Lumbu Lua Ntotela ou de forma abreviada Lumbu, os julgamentos acontecem com base numa denúncia feita pelas populações aos regedores, sobas e conselheiros das zonas de origem.

"As populações fazem a denúncia aos regedores do bairro, posteriormente a queixa é transferida para Mbanza Kongo, ao Lumbu Lua Ntotela, a fim de serem julgadas e a situação ser ultrapassada”, esclareceu Afonso Mendes.

O coordenador conta que dias antes do julgamento, as autoridades do Lumbo Lua Ntotela reúnem-se com os regedores dos bairros e aldeias da cidade de Mbanza Kongo para analisar as queixas vindas das suas zonas de jurisdição. As sessões de julgamento acontecem às quartas e sextas-feiras.

No Lumbu, a sessão de julgamento é antecedida de um ritual em que todos os presentes, incluindo os juízes, entoam um cântico acompanhado de instrumentos sonoros artesanais chamados de "Nsansi e Ngongui”  e  batuques.

Após o ritual de abertura, o réu apresenta-se diante dos juízes sentados de pernas cruzadas numa esteira (luandu). De seguida apresenta-se perante a corte, começando com o seu nome completo, filiação, família, tribo e clã e posteriormente presta declarações sobre o "crime” de que é acusado.

O ofendido também faz a sua apresentação. No decorrer do depoimento, os membros da equipa de juízes, num total de três, podem interromper sempre que necessário.

Afonso Mendes referiu que os julgamentos são feitos com base na busca do entendimento e do perdão entre as partes envolvidas no conflito. "Nas sessões, procuramos sempre encontrar mecanismos para que o queixoso e o ofendido cheguem a um entendimento e possam perdoar-se”, sublinhou.

Se o acusado insistir que foi acusado falsamente, pode pedir autorização para consultar adivinhadores ou kimbandeiros a outras localidades. O Lumbu Lua Ntotela autoriza, mas a viagem deve ser feita na companhia do queixoso, que se faz acompanhar de um gravador de som para anotar todos os gastos.

"A viagem deve ser feita em conjunto para que não haja fuga de informações entre as partes, ou seja, entre o queixoso e o acusado”, contou Afonso Mendes, assegurando que, no regresso da viagem, as partes devem comunicar  ao Lumbu Lua Ntotela a marcação do julgamento.

Se se comprovar que a acusação é infundada, o queixoso deve arcar com todos os gastos da viagem, desde o custo da passagem, alimentação, alojamento, entre outros, menos bebidas alcoólicas e cigarros.

Afonso Mendes disse que não é da responsabilidade do tribunal tradicional acusar pessoas da prática de feitiçaria. As pessoas acusadas desta prática é que levam, regra geral, o caso ao Lumbo, para que o acusador comprove tal prática. No Lumbo não são admitidos casos de acusações de prática de feitiçaria contra crianças.


Emolumentos e indemnizações

O escrivão do Lumbo, António Matondo, informou que no caso da acusação ser falsa, o acusador é obrigado a pagar uma indemnização para limpar o bom nome da vítima. Essa indemnização é fixada no valor de um porco, cinco litros de bebidas tradicionais, o chamado maruvo (nsamba, em kikongo), que é consumido em conjunto pelas duas partes.

António Matondo esclareceu que a indemnização inclui, ainda, uma banheira de makaso, cinco mil kwanzas para a compra de ingredientes de cozinha. No final da sentença, as partes envolvidas no processo são aconselhadas a abraçarem-se para acabarem com a desavença. A prática será a mesma caso a acusação for comprovada, devendo o acusado indemnizar a outra parte e no final  há perdão mútuo e abraços.


Bebiana Kuanzambi, 93 anos, é a conselheira do tribunal

A anciã Bebiana Kuanzambi, 93 anos, que trabalha como conselheira do Lumbo Lua Ntontela há várias décadas, explicou que o uso de canções, danças e instrumentos tradicionais nas sessões de julgamento serve como forma para aconselhar o arguido ou acusado para demonstrar o arrependimento do crime cometido.

Bebiana Kuanzambi aconselhou as novas gerações a  informarem-se mais sobre os valores tradicionais e culturais junto dos mais velhos, que considerou "bibliotecas vivas”.

De realçar que no ano de 2022 foram julgados 34 casos no tribunal tradicional do Lumbo, em Mbanza Kongo. Já no primeiro semestre deste ano  foram julgados 30 casos.


Solução de questões costumeiras

Para o docente universitário da cadeira de Teoria Geral do Direito Civil e Direito Processual Penal António Castelo,  o tribunal tradicional do Lumbo ajuda o Estado na resolução de questões costumeiras, conflitos de terras, acusação de práticas de feitiçaria, que no direito positivo não encontram amparo.

António Castelo referiu que existem bens jurídicos penal e civilmente relevantes que somente o direito positivo pode resolver, mas também existem questões que o direito positivo não consegue dar resposta, por serem questões costumeiras.

"O direito positivo não consegue resolver a questão da acusação da prática de feitiçaria, por causa das provas testemunhais que o direito positivo exige, em que o ofendido encontra dificuldades para provar a acusação”, disse o jurista.

Acrescentou que o Estado angolano reconhece a validade e a força jurídica do costume que não seja contrário à Constituição e que não atente contra a dignidade da pessoa humana, para resolver os seus problemas.

"Os casos de acusação da prática de feitiçaria são resolvidos no tribunal tradicional do Lumbo, por exigir a sabedoria espiritual, que no âmbito do direito positivo não se enquadram, não sendo possível o seu alcance. Daí surge o valor do tribunal tradicional do Lumbo”, disse António Castelo. Referiu que existe a chamada justiça comunitária, que pode resolver os conflitos de terrenos rurais dos povos e das famílias, a partir das regedorias e posteriormente evoluir para o tribunal do Lumbo. Caso não se consiga dar solução que garanta uma paz social, deve intervir o tribunal convencional, no âmbito do direito positivo. António Castelo entende que o Estado por si só não tem capacidade para resolver todos os conflitos sociais. "O tribunal tradicional, que está mais próximo das populações, pode ser a extensão do poder e contribui muito na resolução dos conflitos de pouca relevância jurídica”, concluiu.

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