Reportagem

Um engenheiro de telecomunicações na pele de instrutor de maquinistas

Edna Cauxeiro

Ano 2011, 6h20 da manhã. Parecia um dia como outro qualquer. O engenheiro de telecomunicações e maquinista de comboios, Manuel Kiala, 42 anos, mal imaginava que tal data ficaria para sempre marcada, pela negativa, na sua memória.

18/10/2023  Última atualização 09H48
© Fotografia por: DR

Partira da estação da Estalagem e ia a caminho da do Bungo quando colheu três crianças que apareceram, de repente, a brincar na linha férrea. "Na altura, eu nem tinha filhos. Uma das crianças morreu no mesmo dia, as outras duas nos dias seguintes. É uma situação que nem gosto de lembrar. Senti-me muito mal. Péssimo! Aquilo aconteceu entre a estação da Estalagem e a da Gamek. Foi muito difícil para mim, sentia-me mal até quando olhava para os meus sobrinhos, que eram crianças. Foi o momento mais triste que eu tive como maquinista. Tentei parar o comboio, mas não fui a tempo. Eram crianças de uns 8, 7, 5 anos”, lamentou.

Depois do acidente, teve o acompanhamento de uma psicóloga, tendo regressado um mês depois ao trabalho. "É uma situação muito triste, que me acompanha até hoje. Eu ia a 50 km por hora, as crianças apareceram de repente”, disse.

Não foi a única vez em que esteve envolvido num acidente trágico. É um risco que corre diariamente, fruto do acesso fácil que a população tem à linha férrea. Conta que, certa vez viajava para a estação de Malanje, para onde levava combustível. Quando faltavam dois quilómetros para chegar ao destino, apareceu na linha férrea uma senhora com três filhos. "A senhora quis se matar, e aos filhos, atirando-se à frente do comboio. Deus foi tão grande, que os três filhos conseguiram soltar-se das mãos dela e fugir. Mas ela foi "colhida” pelo comboio. Eu não fui a tempo de reduzir a velocidade. Não é fácil lidar com essas situações. Mas a minha melhor terapia é fazer ginásio. Quando vou ao ginásio, esqueço-me de quase tudo. Há dias em que vou de manhã e à tarde. Há dois anos que treino de segunda a sábado”, contou o maquinista.

Manuel Kiala considerou o comportamento da população, que vandaliza as estruturas criadas à volta da linha férrea, muito negativo, tendo deixado um apelo às pessoas no sentido de abandonarem tais práticas. "O comboio está para ajudar muita gente. É confortável, permite evitar atrasos, por causa dos engarrafamentos, leva muita gente e muitos meios. Quando há acidentes e mortes, o comboio fica parado por duas a três horas. Então as pessoas não têm a dimensão do real problema que causam quando há essas situações trágicas, quando roubam brita ao longo da linha férrea, colocando os passageiros e os maquinistas em risco”.

Pelo facto de já terem sido criadas barreiras mais fortes, mas, ainda assim, insuficientes para conter a vandalização da linha férrea por parte da população, o instrutor de maquinistas defendeu a revisão da lei, no sentido de responsabilizar os incumpridores. "Acho que a lei deve ser revista e as pessoas responsabilizadas pelos danos que causam circulando pela linha férrea e vandalizando toda a estrutura à sua volta. As pessoas cometem e não têm nenhum castigo severo. É preciso obrigá-las a pagar uma indeminização para deixarem de vandalizar a linha férrea. Furtam alguns meios como, por exemplo, ferros e malha sol. Isso é que fez com que as crianças chegassem até à linha, onde foram "colhidas” pelo comboio”, lamentou.


O maquinista

Nunca sonhou ser maquinista de comboios. Depois de ter concluído, em 2003, o curso médio de mecânica no então Instituto Médio Industrial de Luanda (IMIL), também conhecido por Makarenko, na especialidade  de  Atlas e  Motores, foi encaminhado para o Caminhos-de-Ferro de Luanda (CFL) para fazer um estágio e concluir o projecto final do curso médio. O seu excelente desempenho agradou aos responsáveis da empresa, que o convidaram a fazer parte dos quadros do CFL. "Gostaram do meu trabalho, ficaram orgulhosos do meu desempenho e convidaram-me para trabalhar. Entrei como um simples mecânico, mas em função de alguns conhecimentos que já tinha de mecânica, porque para ser maquinista, tem de se ter conhecimentos plenos de mecânica e de electricidade, fui crescendo. Isso facilitava o meu trabalho. Foi assim que eles pensaram em me convidar para ser maquinista”.

Chefe Kiala, como é tratado pelos colegas, começou como mecânico em 2003, profissão que exerceu até até 2008, altura em que foi convidado a fazer o curso de maquinista, uma profissão que considerou muito linda e de grande responsabilidade, na medida em que leva muitas vidas e, por vezes, materiais perigosos como gás e combustíveis.

"Temos de ser sérios e acatar todos os regulamentos que aprendemos durante a formação, porque levamos vidas. Temos de conseguir levar a profissão a bom porto”, disse.

O percurso mais longo que fez ao longo da linha férrea foi do troço Luanda-Malanje, que são 424 quilómetros e que pode ser feito em até 12 horas.

Formado em engenharia de sistema de telecomunicações pelo Instituto Superior Técnico de Angola (ISTA), com o tempo, apaixonou-se pela profissão que exerce e pela rotina de levar e trazer pessoas, facto que o deixa orgulhoso, pois sente que consegue "levar Angola adiante”, contribuindo diariamente para as pessoas chegarem a tempo no serviço e regressarem a tempo a casa, uma vez que, disse, o comboio não fica no engarrafamento. "E anima-me bastante quando as pessoas vêm me agradecer, no final de cada viagem. Agora, com essas novas construções, estamos num bom caminho. A empresa está a receber novos meios, novas estações, coisas que não pensei que chegassem a Angola tão cedo, mas chegaram e sinto-me orgulhoso por fazer parte desse processo. São melhorias bastante significativas para a empresa e para o país”, reconheceu.

Manuel Kiala pediu ao povo angolano que confie no trabalho desenvolvido pelos profissionais dos CFL que, garantiu, estão a dar o máximo de si para o desenvolvimento do país. Para isso acontecer, disse,  a equipa em que está inserido precisa da colaboração da população "no sentido de respeitar o comboio, não vandalizar, não usarem a linha férrea para se matar. É muito triste! As pessoas não imaginam a dor que é para nós quando há perdas de vidas. É muita dor. Chegamos a casa com a sensação de derrota, de incumprimento do dever. Então peço à população que respeite as instalações dos Caminhos-de-Ferro de Angola. É um bem para todos, sobretudo para nós, funcionários, porque esse é o nosso ganha pão”

O maquinista teme que tais vandalizações possam um dia causar um acidente de grandes proporções, que obrigue a empresa a parar, colocando  ele e os colegas em situação de desemprego . "A população também tem que lutar por nós. Estamos aqui para dar o nosso melhor, mas sem a vossa ajuda fica muito difícil”.


As belas paisagens de Angola

O maquinista realçou a beleza natural do país, que tem apreciado nos dias em que faz viagens de longo curso, mas mostrou preocupação pelo facto de ver produtos agrícolas estragarem-se sem que os agricultores consigam escoá-los para Luanda e outras províncias. "O comboio ajuda a 70, 80% mas, ainda assim, há muitos empresários com boas ideias, que deviam ser apoiados. Reitero: há muita mercadoria que se estraga sem necessidade, ao longo das vias por onde passo durante as viagens.

Pelo facto de ser o primeiro e único maquinista na família, Manuel Kiala é o orgulho dos seus entes queridos. Aparentemente forte e dono de um porte físico atlético, o maquinista emocionou-se ao falar do pai, falecido há dois anos, antigo funcionário do Banco de Comércio e Indústria (BCI). "Perdi o meu pai há dois anos. Ele representava muita coisa para mim, porque acompanhou de perto os meus estudos, o meu crescimento, então sinto muito a falta dele e me dói muito o facto de ele já não estar vivo. Ele sentia-se muito orgulhoso de mim. Inclusive, todos os prémios e bónus que eu recebia na empresa, levava para ele. Quando não fosse uma lapiseira, era uma camisola ou agenda. Ele ficava muito feliz.


Modernização e segurança

No comboio antigo, o instrutor de condução de comboios tinha de colocar a cabeça fora da janela para ver quem estivesse a embarcar e desembarcar. Os comboios novos e mais modernos, de marca DMU oferecem mais  segurança ao passageiro e facilidade ao maquinista. "Basta eu clicar nesse botão, as portas fecham-se automaticamente. Temos mais segurança em relação aos comboios passados porque algumas pessoas gostavam de embarcar com o comboio já em andamento, com o risco de caírem. Tivemos o caso de uma passageira que, ao tentar apanhar um comboio, acabou por cair e bateu com a nuca no chão. Acabou por morrer. Também tivemos um colega que, ao tentar subir no comboio, caiu e perdeu a vida”, relatou.

Já no novo comboio, basta que a porta esteja fechada, o passageiro não tem onde se agarrar para subir. Não é a única vantagem da nova locomotiva. Dentro da cabina, o maquinista pode falar para os passageiros, bem como anunciar-lhes as estações pelas quais passam , permitindo-lhes conhecer melhor a cidade de Luanda.

A conversa já ia no fim, quando um cidadão atravessou a linha férrea, ignorando a buzina do maquinista e a rápida aproximação do comboio. "Está a ver como é que essa gente age? É muito complicado! É o nosso dia-a-dia.

Procuramos saber como são remunerados os funcionários dos CFL. Para o maquinista, o que aufere dá para gerir algumas situações, mas podia ser mais, na medida em que, considera, é um trabalho de muitíssima responsabilidade. "Num acidente, se as coisas não correrem bem, eu posso vir a perder o emprego. Com as situações que enfrentamos, ganharmos um salário baixo, é complicado. Nós levamos muitas vidas. Temos de conseguir juntar algum dinheiro para o futuro”.



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