Reportagem

Um palco internacional das artes no coração do Cazenga

Armindo Canda, e Madalena Quissanga

Jornalistas

Localizado na 6ª Avenida daquela jurisdição, o Centro de Animação Artística do Cazenga (ANIMART) tornou-se ao longo das últimas duas décadas, um lugar incontornável no panorama cultural da cidade de Luanda. Dentre as várias actividades culturais acolhidas naquele espaço, a realização do Festival Internacional de Teatro do Cazenga (FESTECA) fez deste modesto recinto um palco para várias companhias teatrais, oriundas de diferentes pontos do mundo.

14/10/2023  Última atualização 08H30
Centro de Animação Artística “Animart” © Fotografia por: Maria Augusta | Edições Novembro
No mês de Julho deste ano, o FESTECA somou a sua 18ª edição, com representação de alguns países africanos, nomeadamente da República Democrática do Congo e de  Cabo-Verde, aos quais se juntaram um grupo do Brasil e outro de Portugal. Nestas 18 edições, o FESTECA já recebeu grupos da França e da Alemanha.

João Carlos, director do centro, conduziu a equipa de reportagem do Jornal de Angola durante uma visita guiada, apresentando os vários compartimentos que hoje o ANIMART possui, destacando os setes dormitórios, onde dormem os vários grupos de artistas em épocas de festivais. Possui igualmente um gabinete da direcção, uma sala de formação artística, um refeitório, um estúdio de música para gravações, uma sala de reuniões, uma sala multiuso, que serve para ensaios e oficinas. Para as apresentações, o espaço possui um anfiteatro que tem a capacidade de albergar 300 lugares, que está a ser adaptado com rampas, para facilitar o acesso dos actores com deficiência e o chão do palco é de madeira.

Projecto da Associação  Globo Dikulu

João Carlos avançou que a ideia do projecto ANIMART surge no Cazenga a 30 de Julho de 1989, quando um grupo de jovens se juntou para realizar um leque de actividades socioculturais, originando a constituição do grupo, numa iniciativa da Associação Globo Dikulu – Acção para o Desenvolvimento Juvenil.

Foram cinco jovens que participaram para o desenvolvimento deste projecto, dentre os mentores consta Orlando Domingos, que teve ajuda de Walter Mateus, Mereldes Andrade, Rui António e Manuel José. Volvidos mais de trinta anos, hoje o projecto tem 350 membros em dez províncias do país, nomeadamente Bengo, Bié, Benguela, Huíla, Malanje, Cuanza-Norte, Cuanza-Sul, Namibe, Zaire e Cunene.

"Os mentores do projecto deram essa iniciativa de modo a ocuparem o tempo das crianças e jovens da comunidade. Para que não enveredassem no mundo da delinquência, a ideia era ocupar o tempo deles com a arte, visto que na época o Cazenga era dado como um dos epicentros da criminalidade em Luanda”, sublinhou.

Do rescaldo que faz das 18 edições, destaca a quarta edição, por ter sido a mais produtiva, com um total de 38 peças de teatro de 37 grupos, desde nacionais e estrangeiros.

A Globo Dikulu é uma organização não governamental que tem colaborações com países, com destaque para Portugal, Brasil, França, Alemanha, Moçambique e Cabo Verde. Entretanto, o governo local tem apoiado, principalmente nas actividades que exigem uma grande organização, como os festivais.

"Temos recebido ajuda do Governo Provincial de Luanda e do Ministério da Cultura e Turismo nas realizações dos festivais de teatro. Mas penso que o Estado não deve dar só o apoio institucional, poderia fazer mais, porque desempenhamos um papel crucial na comunidade. Por exemplo, os dormitórios que o espaço tem resultaram de um financiamento dado pela Alliança Francesa de Luanda, um parceiro internacional”, explicou.

Para além do FESTECA, o ANIMART tem na sua programação o Festival Internacional de Teatro Infanto-juvenil (FESTIJE), o Festival Inclusivo de Artes, Cineminha do Zengá e o Cosmo-poesia, esta última é realizada todos os meses de Setembro e visa dar espaço para os jovens poetas e a comunidade literária a nível nacional.

 "Para realizamos as nossas actividades temos que fazer ginásticas e muitos sacrifícios, uma vez que os apoios são esporádicos e as entradas do público para os espectáculos são grátis”, lamentou.

 Por sua vez, salientou que as terças-feiras e quintas-feiras o ANIMART organiza o Cineminha do Zengá, para que as crianças daquela circunscrição tenham a oportunidade de assistir filmes e desenhos animados. Uma exibição pedagógica, no final da actividade os meninos fazem um resumo sobre o que entenderam do filme.

 "Nesses dias de cinema, fizemos alguns esforços para poder oferecer aos meninos da comunidade uma pipoca, um sumo ou às vezes bolachas”, explicou.

 A organização tem como principal objectivo trabalhar com as crianças e os jovens, para ajudar no desenvolvimento pessoal dos mesmos, utilizando o princípio pedagógico com base na arte.

"Preparamo-nos para que eles possam enfrentar os desafios da sociedade, através das artes cénicas, a dança, a arte plástica e outros ofícios, para além dos eventos que realizamos”, partilhou. 

Novas obras no recinto

A equipa de reportagem do Jornal de Angola constatou diversas obras a serem feitas no recinto do Centro de Animação Artística do Cazenga, especificamente a construção de um banheiro, ampliação do dormitório e rampas.

O director declarou que as obras a serem feitas vão servir para a inclusão de pessoas deficientes, contempladas dentro de um projecto artístico patrocinado pela União Europeia”, visto que o ANIMART é um dos palcos do festival inclusivo "No Meu Mundo”, que  decorre de 12 a 29 deste mês e quem tem como missão dar visibilidades a artistas portadores de deficiência

"As rampas vão facilitar o fácil acesso das pessoas com deficiências no nosso centro, já o dormitório e o banheiro também vão servir para a inclusão destes agentes das artes”, defendeu. 

João Carlos frisou que o centro está com novos projectos, como a criação de uma biblioteca comunitária, que já conta com o espaço e alguns livros, faltando apenas as prateleiras.

Um dos desafios do centro para a contínua realização de actividades culturais, sociais e de solidariedade para com a comunidade e os artistas aspirantes nas mais diversas áreas da arte é o acesso ao recinto, tendo em conta que o estado de degradação da estrada do 6º Avenida do Cazenga não permite o acesso em época chuvosa.

Além dos desafios citados, referiu, a sustentabilidade e manutenção são outras das muitas preocupações que o centro tem, uma vez que falta recursos e meios para a plena funcionalidade e operacionalidade tem sido um dos grandes obstáculos.

"As maiores dificuldades são de natureza financeira e material, faltam meios e equipamentos electrónicos como computadores e outras ferramentas de trabalho que nos garantem a funcionalidade e gestão do espaço”, contou

Um dos ganhos, continuou, é a visibilidade que hoje o espaço tem, garantindo a oportunidade de os jovens aprenderem artes, fruto da resiliência e a persistência que os mentores do projecto mantêm ao longo de décadas.
 

Fazer a diferença na comunidade

Joaquim Oliveira, conhecido nas lides artísticas como "Leo”, disse ao Jornal de Angola que pertence ao "ANIMART” há mais de 16 anos, garantindo ser uma escolha que hoje mundo a sua vida.

 "Comecei a fazer parte do grupo de teatro aqui no centro quando tinha oito anos de idade, numa na altura em que o bairro era muito melindroso e quase que a maior parte dos adolescentes tinham um comportamento desviante. Mas graças a Deus não segui o mundo da delinquência porque encontrei refúgio no ANIMART”, testemunhou.

Em 2010, lembrou, o centro abriu um projecto para adolescentes. Foi quando fez a parte do grupo de pessoas que beneficiaram de uma formação, tendo depois de formado me disponibilizado para fazer parte de um grupo de teatro, onde fiquei durante cinco anos. Depois fez parte do grupo teatral juvenil denominado Arco-íris, tendo feito mais formações que o conduziram para a produção de espectáculos.

Aos 27 anos de idade, Joaquim Oliveira trabalha como voluntário no ANIMART, ocupando o cargo de assistente de produção. 

"Não me preocupo com os valores monetários, faço o meu trabalho com muito amor e gosto de ensinar e aprender com os outros. Hoje sou este jovem por causa da oportunidade que recebi deste local, quero poder retribuir e transformar a vida das outras pessoas”, traçou. 

Joaquim de Oliveira referiu, ainda, que dentro do processo de aprendizagem do centro tem a passagem de testemunho e de conhecimento de diferentes gerações como um exemplo a seguir.

"As gerações que por aqui passaram ensinaram-me muito sobre a vida e a honestidade, e pelas formações que ganhei durante esse todo tempo. Hoje aprendi várias coisas. Estou capacitado e posso trabalhar como técnico de som, de luz e ainda assim consigo encenar, e tudo isso graças a esta casa de arte”, reconheceu.

Muitos jovens deixaram a vida errada para fazerem parte de grupos teatrais.
                                                                     

O olhar da vizinhança

Branca Alexandrino de, de 27 anos de idade, moradora no Cazenga, tem a sua bancada nas proximidades do portão do centro. A moradora realçou que o ANIMART é um centro que incentiva a juventude da comunidade a ter o gosto pela arte. "O centro ajuda muito a comunidade, porque através do mesmo os jovens ficam mais ocupados e não enveredam em maus caminhos. Conseguem ter uma maior visão da arte e da vida”, disse.

A moradora contou que no passado já frequentava o centro como actriz, mas devido a outras ocupações não conseguiu dar continuidade aos ensaios, tendo optado por afastar-se. "Fiz parte do ANIMART quando tinha dez anos e na altura participei do grupo Flores a Brincar, com o qual fiz várias exibições nas artes cénicas”, recordou.

Branca Alexandrino apelou aos outros moradores para poderem frequentar o centro e aprenderem mais sobre a arte, visto que o centro está no bairro onde vivem.

"O ANIMART oferece ensino nas disciplinas da arte. Hoje já não faço parte do grupo mas continuo a frequentar o espaço e assisto com regularidade aos espectáculos dos festivais. É muito positivo porque o centro ajuda-nos a não nos deslocarmos para outros locais para fazer lazer”, observou.

Lucrécia Domingos, outra moradora do Cazenga que vive perto do espaço do centro, contou que tem sido muito útil para a comunidade, classificando como um lugar que proporciona muitos momentos de alegria. Lucrécia Domingos partilhou que teve a oportunidade de trabalhar como protocolo numa das edições do FESTECA, bem como  disse ter conhecido o actual esposo durante uma das edições do festival.

"Na altura o Venâncio Domingos, meu marido, era encenador e fazia parte dos voluntários do ANIMART. Hoje agradeço ao centro e aprecio a acção de solidariedade dos coordenadores e dos voluntários que incansavelmente têm desempenhado um papel crucial para o bom funcionamento desta importante ferramenta das artes em prol da comunidade”, afimou.

Uma outra residente da 6º Avenida, Luísa Rodrigues, de 19 anos, elogiou a iniciativa de inclusão da comunidade nas actividades realizadas naquele espaço. "O centro é bom, porque as crianças aprendem aulas de teatro, dança, pintura, canto, estudam e aprendem sem pagar nenhum valor. Isso deixa a comunidade feliz”, manifestou.

  A homenagem na 18ª edição

Homenageado na 18ª edição, o Grupo Experimental de Teatro abriu a 18º do Festival Internacional de Teatro do Cazenga (FESTECA) com a exibição da peça "A Panela de Koka Mbala", que fez uma viagem no tempo de cerca de 40 anos, e a edição recordar aos vários convivas memórias dos "velhos tempos".

A peça foi escrita pelo dramaturgo congolês Guy Menga, e reflecte as vivências do reino de "Kokaa-Mbala", liderada pelo rei "Binstamou", quando recebe a queixa de um jovem que foi acusado de abusar a mulher do conselheiro e feiticeiro "Bobolo". Depois do Rei defender o jovem acusado, os problemas da comunidade começaram a surgir. Diante do cenário "Bobolo" ficou enraivecido e convocou uma reunião com os conselheiros do rei. Os conselheiros advertiram várias vezes o monarca para os perigos das suas decisões.

À saída da actividade, Salvador dos Santos, membro do Grupo Experimental de Teatro, mostrou-se contente com a homenagem, e igualmente por ter voltado a relembrar os velhos tempos junto dosseus amigos, das vivências um momento que caracterizou como marcante.

"Como Grupo Experimental de Teatro existimos, explicou, desde 1978 e nunca fomos homenageados. De facto, essa homenagem faz-nos sentir cada vez mais artistas e importantes naquilo que é a própria arte. Desta forma,  sentimos o reconhecimento do nosso trabalho, e acreditamos que a partir de hoje muitos jovens terão noção do nosso trabalho, vão pesquisar e poder beber um pouco daquilo que foi a nossa trajectória", disse.

Quanto à passagem de testemunho aos mais jovens, Salvador dos Santos lamentou não participar da melhor forma por conta das ocupações que tem. "Já não estamos a 100 por cento no teatro.  Tenho as minhas ocupações  mas continuamos ocasionamente a realizar peças,  "sublinhou.

O  actor António de Oliveira "Delon", outro membro do elenco, contou que o momento mais difícil foi unir o grupo. "Já não é como antes. Actualmente cada um tem o seu compromisso. Ensaiamos apenas aos sábados nos os últimos cinco meses. O resultado foi este: uma linda homenagem com mais de 200 pessoas a assistir. Foi incrível", declarou. Para hoje, prevê-se às 10h00 a realização de uma oficina de teatro e intercâmbio. No período da tarde, a paritir das 15h00 serão exibidas três peças, nomeadamente "Restos”, do grupo Twassakidila, "Helena”, do grupo Cia Vela, e "Lueji”, do grupo Arco-Íris, todos de Luanda.

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