Opinião

2020 e os terráqueos

Sousa Jamba

Jornalista

Tenho mais de uma nacionalidade, já que vivi a maior parte da minha vida em vários países. Para alguns de nós da Diáspora, ter várias nacionalidades é, às vezes, visto como uma bênção -- uma forma de podermos fugir de um local perigoso para um outro mais confortável e estável.

08/01/2021  Última atualização 08H00
 Naturalmente, isto tudo é seguido com muita introspecção, incluindo uma espécie de culpa de sobrevivente. Sim, safamo-nos do pior das nossas terras natais — mas há, também, a noção de que fugimos. Nas discussões sobre os nossos países de origem, os nossos argumentos eram invalidados de imediato com a afirmação de que opinar a partir do conforto do Ocidente não era a mesma coisa como estando a falar a partir da linha da frente. Ultimamente, porém, muitos países africanos passaram a valorizar a Diáspora. Há países, como o Uganda e o Zimbabwe, que anualmente recebem milhões e milhões de dólares enviados pelos seus compatriotas no Ocidente. 

 O ano de 2020 desfez a confiança que sempre tínhamos nos passaportes e nacionalidades ocidentais. Novembro passado, eu estava nos Estados Unidos, na Flórida, com os meus filhos, celebrando, de uma forma vicária, o materialismo do fim do ano e as suas prendas. No início deste ano, vim  para o Planalto Central, na Aldeia Camela Amões, onde a pandemia da Covid-19 me apanhou. Integrei logo uma equipa do projecto Camela Amões que foi sensibilizando aldeias remotas sobre este vírus perigosíssimo. Assisti o horror lá no Ocidente a partir da nossa aldeia. Andei de avião, pela primeira vez, em 1974, quando tinha nove anos; o voo foi do Huambo a Luanda. Para mim, voar era liberdade — o homem passava a ser tão livre como os pássaros que vão de hemisférios a hemisférios. Já estive em voos bastante longos: de Nova Iorque a Joanesburgo; de Madrid a Lima, no Peru, na América Latina. Aquilo era chato mas lá no fundo altamente gratificante; viagens que no Século dezanove duravam meses agora estavam reduzidas à horas. O aeroporto era a grande celebração da humanidade, do nosso futuro comum como habitantes deste Planeta Terra. Ver imagens de aeroportos vazios entristeceu-me bastante. 

Sempre pensei que uma das grandes qualidades dos seres humanos é a curiosidade — querer saber das outras culturas e outras experiências. A crise da indústria turística também me entristeceu. Antes da Covid-19, gostava ver caravanas de turistas, vindas de várias partes do mundo, aqui no nosso maravilhoso Planalto Central. Umas das lições de 2020 é que não podemos tomar muitas coisas como certo. 

Em 2020, os Estados Unidos, aquela grande potência que consegue enviar uma bomba teleguiada através dos mares, estava de rastos; a Covid-19 estava atacar e a matar cidadãos diariamente. O Presidente Donald Trump, grande xenófobo e populista, insistia no vírus chinês. Alguns dos seus seguidores até diziam que a história do vírus era um mito. Por décadas, o mundo ocidental temia o emigrante africano, esfomeado, desesperado e sem papéis, que tentava melhorar a vida no Ocidente. Alguns falavam da pureza da cultura ocidental que corria o risco de ser diluída no processo  da imigração. Discursos nacionalistas de repente ficaram abafados com o intenso medo que este vírus metia.  

Nas redes sociais, falava-se então do hábito dos chineses comerem tudo; aparentemente, segundo uma tese, foi o hábito chinês de gostar de sopa de morcego que tinha facilitado a transmissão do vírus para os seres humanos.  Na própria China, houve uma discriminação gritante contra os africanos e negros. Ninguém queria alugar quartos para negros temendo que estes eram portadores da Covid-19. Há um vídeo que circulou nas redes sociais, profundamente triste, em que passageiros de um autocarro chinês forçam um africano a sair do mesmo, já que suspeitavam que ele deveria ser um portador do vírus. 

 Sim, podia se apontar muitos dedos acusatórios; porém, lá estava o vírus que não temia ninguém. Houve, até, uma tese de que este vírus só era para as terras com climas quentes. Bem, está análise não era correcta; começamos a ver o vírus a avançar com muita rapidez no continente africano. Desta vez, vimos, também, a capacidade organizativa de certos países africanos, como o Senegal, em enfrentar o vírus. 

 E cá estamos, mesmo em remotas partes do mundo, a espera da vacina contra a Covid-19. Estamos todos condenados a viver juntos; a erradicação da Covid-19 em todo mundo certamente que irá beneficiar todos os terráqueos. Mesmo as grandes economias que tanto produzem precisam de clientes saudáveis e com dinheiro! 

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