Opinião

A morte é pública

Osvaldo Gonçalves

Jornalista

Alguns amigos já nos sugeriram investirmos num negócio de carpideiras, profissão milenária, que, embora seja associada ao Oriente, tem registos na História do Antigo Egipto e na Bíblia.

12/01/2021  Última atualização 07H28
Com a Covid-19, os funerais passaram a estar pela hora da morte.
Em Angola, o primeiro obstáculo é a burocracia. Hospitais, serviços notariais e administrações têm dificuldades em se entenderem em relação aos trâmites a cumprir e as zonas sob sua jurisdição. Os vivos enfrentam grandes dificuldades para enterrar os mortos.

Ainda antes de entrarem em vigor as medidas com vista a travar a proliferação da pandemia provocada pelo novo coronavírus, já morrer ficava caro e requeria muita paciência e expedientes e, na maior parte das situações, entrava em acção a famosa "gasosa”. Agora, os funerais tornaram-se ainda mais caros, somando-se todas as despesas inerentes aos sepultamentos.

Por mais simples que sejam, as urnas estão mais caras, assim como as roupas e sapatos (mandam os costumes que os defuntos sejam enterrados com novas indumentárias). Dos falecidos, só as joias ficam. Mas isso é quando usam peças genuínas em vida, porque a maioria anda com bijouteria.

De há um tempo para cá, passaram a estar na moda os velórios, muito para saber quão conhecido era o falecido. De acordo com o publicado na imprensa, alguns espaços cobravam até um milhão de Kwanzas pelo aluguer do espaço durante 17 horas.
As leis angolanas são claras quanto aos sepultamentos, mas vozes há que questionam a responsabilidade dos enterros. Na opinião de alguns, regista-se muito deixa-andar nos cemitérios, o que só pode ser colmatado se os campos santos tiverem uma administração privada.

Outros acham que tal aprofundaria ainda mais o fosso entre ricos e pobres. Pelo menos na hora do enterro, as pessoas são iguais. Qual quê? Uns vão de sapatos novos, engraxados ou de verniz, gravatas a luzir; outros lhes compram com elas na praça, fazem o laço tipo atacador de sapato, calçam-lhes uns quedelos tipo da antiga Macambira - já viram alguém ser enterrado com chinelos de marca?

A ideia quase generalizada é que saúde só se encontra nas clínicas privadas. Interessante é verificar que junto às unidades de saúde públicas forma-se como que uma cintura de farmácias e laboratórios de análises, quanto mais não seja para venderem analgésicos, antipiréticos e anti-palúdicos, sem falamos em material descartável, ou fazerem a famosa gota-espessa.

Nem mesmo a Covid-19 aliviou esse pensamento, com muita gente a evitar qualquer ida aos hospitais e centros de saúde públicos com medo do novo coronavírus. Todas as mortes, sobretudo, de pessoas consideradas como fazendo parte dos chamados grupos de risco, seja por que motivo for, são sempre questionadas.

Apesar dos alertas que as outras doenças, nomeadamente, o paludismo, as diarreias agudas e a hipertensão não entraram de férias nem estão de quarentena com a pandemia, parece que ninguém fala de outra coisa senão de "Covidi”. Até parece moda...
Até os relatórios oficiais sobre os acidentes de trânsito são feitos e apresentados de tal maneira que levam muitos a creditar que se tornaram menos trágicos, quando os relatos que nos chegam apontam para um aumento na gravidade dos desastres nas rodovias, porque, como há menos viaturas a circular, as pessoas tendem a baixar a guarda e as desgraças acontecem.

Por mais individual que seja morrer, a morte de alguém será sempre social. Para debaixo da terra ou para o forno de carbonização, vai-se sozinho. Mas são necessárias outras pessoas para cavar e tapar o buraco, para acender e apagar o fogo.

Muitos defenderão a existência de cemitérios privados com o argumento de que os sepultamentos já são feitos de forma discriminatória. Alguns dirão até que os funerais nas grandes cidades de Angola foram sempre assim, com alguns a serem sepultados aqui e outros ali.
Connosco não contem: a morte é responsabilidade pública.

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