Entrevista

Entrevista

“As soluções dos problemas políticos, económicos, sociais e culturais estão na academia”

Francisco Pedro

Jornalista

O livro “Descentralização Financeira – Perspectivas para Angola”, de autoria do docente universitário Ovídio Pahula vai ser apresentado hoje, às 15H00, no Auditório Maria do Carmo Medina, da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, em Luanda. Em entrevista ao Jornal de Angola, o autor afirma que se trata de uma obra pioneira em Angola, que aborda em profundidade e de forma holística a desconcentração, em geral, e a descentralização financeira, em particular

01/11/2023  Última atualização 05H25
© Fotografia por: DR

Que apresentação faz desta obra, que resulta da sua tese de doutoramento?

"Descentralização Financeira -  Perspectivas para Angola” é o título do livro escrito entre 2010 e 2016, resulta da minha tese de doutoramento defendida em 2018. Essa obra, de pendor científico, vai ser apresentada hoje, em Luanda, no Auditório Maria do Carmo Medina, da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, depois do lançamento feito dia 18, na cidade do Lubango, em que o Professor Doutor Carlos Feijó, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, procedeu a apresentação do livro.

A obra traz vários contributos do ponto de vista da doutrina das Ciências Jurídico-Económicas. Escreveu-se muito sobre a institucionalização do poder local autárquico e autónomo em Angola, na perspectiva política, mas, do ponto de vista académico-científico, essa obra é pioneira na compreensão da dimensão da descentralização financeira, ou seja, sobre as finanças locais como elemento fundamental da institucionalização do poder local autárquico e autónomo. Porque uma coisa é ter uma ideia vaga sobre o que é uma descentralização financeira e outra é ter fundamentos do ponto de vista académico-científico que darão suporte à implementação efectiva das autarquias locais. A obra serve de bibliografia fundamental, sobretudo para as Ciências Jurídico-Económicas e Jurídico-Políticas, não só em Angola, mas no mundo.

 
Tratando-se de uma obra científica, o que realmente traz de novo?

Conforme disse anteriormente, esta obra científica, no que tange à institucionalização do poder autárquico e autónomo em Angola é a primeira, ao nível de doutoramento, que aborda as finanças locais ("ius condendo”), por isso, o Professor Doutor Eduardo Paz Ferreira, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ao prefaciá-la, sublinhou: "A dissertação do Doutor Ovídio Pahula vai precisamente nesse sentido, como resulta claramente da introdução em que o autor explicita que visa uma melhor compreensão do fenómeno da descentralização em geral e financeira em particular, para o que se propõe discernir os conceitos de descentralização e figuras afins, reconstruir o quadro legal atinente ao processo de descentralização, analisar como se devem desenvolver as relações entre o Estado e as entidades descentralizadas e discutir os caminhos para uma melhor descentralização financeira em Angola. Elenca, a este propósito, um conjunto de questões totalmente pertinentes, a que vai procurar dar respostas devidamente fundamentadas”.

 
Que modelo de descentralização financeira apresenta essa obra para a realidade angolana?

Do ponto de vista académico-científico, a descentralização financeira pode tomar várias perspectivas que estão bem desenvolvidas na obra. Todavia, todas as formas de descentralização só são consistentes, perenes e eficazes, em qualquer parte do mundo, se forem acompanhadas, rigorosamente, da descentralização financeira que é, sem sombra de dúvidas, a menina de olho da autonomia financeira do poder local autárquico e autónomo.

 
No seu ponto de vista, quais as mudanças que poderão ocorrer na vida dos cidadãos com a descentralização financeira?

A desconcentração é a transferência de competências  do poder central para as províncias e municípios dentro da mesma pessoa colectiva pública (Governo), concretamente de Luanda, por exemplo, para o interior do país mas dentro da mesma pessoa colectiva pública. Todavia, os governadores provinciais, administradores municipais e comunais, por exemplo, estes dependem de Luanda, porquanto, estamos em presença da desconcentração. Com efeito, as autarquias locais já não são o Estado. São pessoas colectivas públicas, distintas do Estado, de população e território, eleitas pelas comunidades e que vão defender os interesses próprios e específicos dessas mesmas comunidades. Quer dizer que os autarcas vão prestar contas às comunidades e não vão prestar contas ao Governo. Aqui, estamos perante a descentralização. Hoje, estamos perante a desconcentração, apenas, porque os governadores provinciais e os administradores municipais cumprem ordens do Governo Central, ainda que não satisfaçam os interesses próprios e específicos das comunidades dos territórios que dizem "governar”.

 
A descentralização financeira terá impacto directo na qualidade da gestão das despesas públicas?

Sim, e repare que hoje em dia já se fala do orçamento participativo, porque a assembleia autárquica vai ser uma espécie de parlamento local. Então, vai defender os interesses próprios e específicos das comunidades locais. Portanto, os cidadãos irão dizer: "Agora, nós não queremos que se construam duas escolas, queremos que se construam dois hospitais”. Como  os  recursos, do ponto de vista económico, são sempre escassos, serão as próprias comunidades, através das  assembleias autárquicas, que vão sugerir, por exemplo, que no Orçamento (OGE) de 2024, queremos que se faça isso ou aquilo. Hoje, isso não se verifica.

Pode-se, realmente, ouvir o Conselho de Auscultação municipal, mas, as opiniões não são tão vinculativas como se fossem de uma assembleia autárquica.

 
Em relação ao controlo e responsabilidade financeira, como deverá ocorrer na perspectiva das autarquias locais?

O controlo e a responsabilidade financeira, na perspectiva das autarquias locais, ocorre em três níveis: a responsabilidade política, que é feita perante a assembleia autárquica, a responsabilidade administrativa e financeira, que ocorre com a actuação dos órgãos de inspecção do Ministério das Finanças, por exemplo, cuja missão incide sobre se a execução orçamental está em conformidade com as suas regras tradicionais e com a lei. E, depois, a intervenção jurisdicional, que se faz através do Tribunal de Contas. São esses os três níveis de controlo e responsabilidade financeira que vão estar perante as autarquias locais. Não haverá necessidade de o processo de controlo e fiscalização orçamental passar pelo Parlamento. A Assembleia Nacional não interfere no funcionamento das autarquias.

 
O Ministério das Finanças fica com intervenção reduzida?

O Ministério das Finanças vai zelar sempre pela gestão dos recursos financeiros do Estado. Agora, o que nós temos que aferir, aqui, é que na perspectiva da descentralização, as formas de alocação dos recursos serão diferentes da perspectiva actual da desconcentração. Porque a Lei das finanças locais é diferente do regime financeiro local que vigora hoje. A diferença é que o Ministério das Finanças, do ponto de vista jurídico-legal ("ope legis”), é obrigado a alocar os recursos às autarquias locais só que, agora, no âmbito da descentralização.

 
Não havendo liquidez, quais serão as implicações?

Muitos recursos que hoje são alocados à Conta Única do Tesouro, na perspectiva da desconcentração financeira, hão-de ficar retidos na fonte, ou seja, já não serão canalizados directamente para a Conta Única do Tesouro (CUT). Para a CUT irá uma só parte, depois, surgirão fundos, por exemplo, o designado por Fundo de Equilíbrio Municipal, entre outros.

 
O quê que lhe preocupa em relação às despesas públicas?

O maior problema que temos é a centralização excessiva. Porque a centralização excessiva do faz com que a qualidade da despesa pública seja deficiente, esta é a primeira preocupação. Em segundo lugar, nós temos um problema crónico que não conseguimos acertar desde a Independência até aos nossos dias, que é a política monetária, fiscal e cambial. Este é um desafio extremamente sério que o Governo tem de resolver. Há países em que especialistas, professores doutorados, são financiados pelo Estado só para dar soluções. Porquê que nós, desde a Independência, até hoje, não conseguimos estabilizar do ponto de vista económico e financeiro, o país? O que se passa? Porquê que não conseguimos ter uma política monetária, fiscal e cambial estável? Pode haver variações, mas não a um nível de inflação de 100 por cento, ou mais do que isto. Não há nenhuma sociedade que aguente.

 
E que soluções aponta para uma reviravolta?

As soluções dos problemas políticos, económicos, sociais e culturais estão na academia! Não podemos desprezar a academia. Não podemos desprezar aqueles que fazem Ciência. Porque os países desenvolvidos dão importância à academia, então a Ciência é que, seguramente, lhe dá a solução dos problemas políticos, económicos, sociais e culturais. Precisamos de potenciar as nossas instituições. E quando nós sabemos que um quadro Y, beta ou gama, que tenha nascido no Rivungo ou Dirico pode contribuir com o seu conhecimento, então teremos que potenciá-lo e aproveitá-lo ao máximo.

Se conhecemos o quadro que tem competência numa determinada área, porquê que não pode ser convidado para o aparelho central do Estado, não importa se vive no Norte, Sul ou Leste. E por outro, porquê que os salários mais baixos da SADC são de Angola , sendo o país que mais tem recursos naturais, a nível da região e, quiçá, do mundo. Então alguma coisa, aqui, está errada. A Ciência no nosso país está em último lugar no que tange às prioridades do Governo.

 
Do ponto de vista económico e social, se tiver que nos relatar de situações concretas que a obra foca, o que destacaria?

Por vezes, as pessoas se dirigem para a Administração Municipal – no interior do país - e não podem dar um passo sem que, realmente, haja ordens de Luanda. Vejamos, se um empreendedor apresentar um projecto agropecuário num dos bancos depara-se com o seguinte: "Você pode entregar aqui o teu projecto a solicitar financiamento, mas tudo vai ser decidido em Luanda”. Estamos diante de uma centralização excessiva.

Por isso, com essa descentralização financeira vai ser possível descongestionar as principais cidades. Luanda, com cerca ou mais de 10 milhões de habitantes, efectivando-se a descentralização financeira os cidadãos hão-de abandonar as grandes cidades, incluindo Luanda, para se fixar noutras paragens do território nacional. Portanto, havendo efectiva descentralização financeira para as províncias e municípios, muitas pessoas que estão em Luanda deslocar-se-ão para o interior o que vai fazer que haja um desenvolvimento harmonioso e equilibrado, quer das próprias populações, quer do território.

 
Qual foi o custo da obra?

Esta obra orçou cerca de 14 mil euros. Repare que esta obra foi publicada pela colecção Teses, da Editora Almedina que, simplesmente, é a melhor editora portuguesa e uma das melhores do mundo. Só se publicam, nessa colecção, teses de doutoramento defendidas na Faculdade de Direito de Lisboa e na de Coimbra, fundamentalmente. Por isso, é que eu defendo a descentralização. Porquê é que o fundo de investigação e publicação de obras tem que ficar centralizado em Luanda?; não há necessidade. Tem que ser alocado nos conselhos científicos das  faculdades de todas as províncias do país, pois, são esses organismos que produzem Ciência e que vão dizer que a obra do professor fulano está em condições de ser publicada.


Conteúdo do livro

"Descentralização Financeira – Perspectivas para Angola” pertence à colecção Teses das Edições Almedina, uma das mais prestigiadas em Portugal. Prefaciada pelo renomado professor catedrático Eduardo Paz Ferreira, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que destaca o seguinte: "Depois de uma aprofundada investigação pela história, o Doutor Ovídio Pahula define a descentralização como ‘o acto pelo qual o Estado permite que determinados interesses e actividades administrativas e até políticas sejam prosseguidas e realizadas por outras pessoas colectivas distintas do mesmo Estado. Significa que as populações residentes num determinado território (município e/ ou comuna em Angola) elegem os seus órgão representativos para realizarem actividades comuns e próprias no âmbito da defesa de interesses comuns específicos sem qualquer dependência hierárquica’”.

Com revisão editorial de Isaías Hipólito, "Descentralização Financeira – Perspectivas para Angola” contém duas Partes, sendo a Parte I denominada Descentralização, contendo 3 capítulos, designadamente: "Noção, Conceito, Formas de Descentralização e Figuras Similares”; "Descentralização Financeira” e "A Descentralização em Portugal, Moçambique e Cabo Verde”. A Parte II, denominada A Descentralização em Angola, contém 4 capítulos, designadamente: "Período Colonial”, "Período da Independência”, "Caracterização da Situação Actual” e "Perspectivas de Evolução da Descentralização Financeira em Angola”.


Perfil

Naturalidade

Natural de Quiteve, Mucope, província do Cunene

Formação

Doutor em Direito, ramo das Ciências Jurídico-Económicas. Especialidade de Finanças Públicas e Direito Financeiro, pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa

Função actual

Professor Associado na Faculdade de Direito da Universidade Mandume ya Ndemufayo (Lubango) e na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto (Luanda)

Investigação científica

Desde 2010, na área de Ciências Jurídico-Económicas, nos programas de Licenciatura e Mestrado, regendo as disciplinas de Finanças Públicas e Direito Financeiro, Direito Económico, Direito Fiscal, Moeda, Crédito e Bancos, Direito Financeiro Local, Direito Comercial e Financeiro, Finanças, Políticas Públicas e Investimentos.

Formação Profissional

Advogado, com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados de Angola desde 13 de Janeiro de 1998.

 
Publicações

Obras científicas: "Estudos sobre o Sistema Jurídico-Económico Angolano” (2008), "A Evolução da Constituição Económica Angolana” (2010), dissertação de Mestrado. Obras literárias: "Firmezas da Vida” (1999) e "No Fundo da Pedra Há Um Tchingono” (2006).

 
Outras funções

Foi deputado à Assembleia Nacional, no mandato (2017-2022), pela bancada parlamentar do MPLA, círculo eleitoral provincial do Cunene, delegado provincial do Ministério da Justiça na Província do Cunene (1993-2007).

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