Reportagem

Burla milionária em Luanda : “Estamos a devolver dinheiro que não foi desviado por nós”

Manuela Mateus

Relato sobre uma burla, com promessa de casas no bairro Mayé-Mayé, feito por duas mulheres que, embora digam que também são vítimas, estão a ser pressionadas, com mais duas pessoas, por 699 lesados, a assumir a devolução de mais de 100 milhões de kwanzas

02/10/2023  Última atualização 08H39
© Fotografia por: DR

"Eu já pensei em suicídio”. A revelação é de Eva Lopes, uma bancária, de 43 anos, que, com mais três pessoas, uma das quais do sexo masculino, vive, desde 2019, um "autêntico pesadelo”, que, ao que tudo indica, ainda não tem fim à vista.

Os quatro, apesar de serem também vítimas, como alegam, de uma "burla milionária”, estão a ser fortemente pressionados, por outros 699 lesados, a assumirem a devolução de 101 milhões e 200 mil kwanzas, recolhidos pelo quarteto, para a compra de moradias, no projecto habitacional Mayé-Mayé. Uma promessa, de que se soube mais tarde ser falsa, feita por três presumíveis burladoras, uma das quais mencionada como suposta funcionária do Governo Provincial de Luanda e considerada o "cérebro” do "esquema criminoso”.

Os quatro declaram-se inocentes, mas reconhecem que, por terem acreditado na promessa de casas, arrastaram 699 pessoas para uma burla, que só foi descoberta depois de terem perdido o rasto das presumíveis burladoras, que estão, até hoje, em parte incerta.

As três presumíveis burladoras nunca deram o rosto, diante das 699 vítimas, tarefa que coube a cada uma das quatro pessoas que se dizem também vítimas da "burla milionária”.

O número de lesados cresceu de quatro para 703, após o quarteto ter passado a palavra para "pessoas próximas”, entre amigos e parentes, que, além de terem desembolsado valores para a compra de casas no Mayé-Mayé, "arrastaram”, também, outras pessoas.

Os quatro foram abordados, na cidade do Sequele, por duas das três supostas burladoras, moradoras daquela nova urbanização da província de Luanda, com a informação de que uma "pessoa próxima”, sobre quem disseram ser funcionária do Governo Provincial de Luanda (GPL), estaria à procura de indivíduos interessados em comprar casas no projecto habitacional Mayé-Mayé.

"Como tenho um irmão e três primos que estavam à procura do sonho da casa própria, eu passei-lhes a palavra”, conta Eva Lopes, que diz ter desembolsado 750 mil kwanzas, para a compra de três casas, com o objectivo de as arrendar, como forma de investimento familiar.

A informação que chegou a cada pessoa interessada em comprar casas no Mayé-Mayé, um bairro social localizado nas imediações da cidade do Sequele, era de que cada moradia seria vendida por 500 mil kwanzas e o valor poderia ser liquidado em duas prestações.

Houve pessoas que pagaram para a obtenção de apenas uma única casa. Mas são várias as pessoas que elevaram a "fasquia”, dando valores para a compra de entre duas e seis moradias, com pagamento feito, por algumas, na totalidade.

Eva Lopes, mãe de três crianças, todas com necessidades especiais, pensou que, comprando e, depois, arrendando três moradias, seria um "bom investimento”, tendo em conta o desejo que tem de ir viver para o estrangeiro com o marido e os filhos, por motivos de saúde das crianças.

Eva Lopes não tem noção do número exacto de pessoas que "carregou” para o problema, porque, como acentuou, "eu passava a palavra para cada um que vinha ao meu encontro.”

Eva Lopes chegou à fala com o Jornal de Angola levada por Mena Andulo Gunge, sua tia, por afinidade, e, também, integrante do quarteto.

 
Articulação ardilosa

Mena Gunge, professora de profissão, e Eva Lopes não sabiam, inicialmente, da articulação das duas presumíveis burladoras e moradoras do Sequele com a mesma suposta funcionária do Governo Provincial de Luanda e manifestaram interesse pela compra de casas no Mayé-Mayé em ocasiões diferentes.

Eva Lopes era vizinha de uma das presumíveis burladoras, no bloco 10 da cidade do Sequele, enquanto Mena Gunge, também do bloco 10, era professora de dois filhos da outra suposta burladora, esta moradora do bloco 8.

O interesse de Mena Gunge em comprar uma casa chegou ao conhecimento da mãe daqueles dois alunos, depois de a professora ter ficado a saber da informação relacionada com a venda de casas no Mayé-Mayé, através de alguns professores que já tinham entregado dinheiro à senhora para a obtenção de moradias no mesmo bairro.

As duas presumíveis burladoras diziam às quatro pessoas que se dizem também vítimas que não precisavam de encaminhá-las quem viesse a manifestar interesse em comprar casas no Mayé-Mayé, bastando que o quarteto recebesse os valores, uma decisão que, embora já fosse um grande indício de burla, não colocou em alerta as quatro pessoas.

Tanto é assim que não só receberam, como dizem, em mãos e, às vezes, por transferência bancária, o dinheiro dos 699 lesados como também entregaram os valores recolhidos às duas presumíveis burladoras, por via das quais o dinheiro chegou, depois, à suposta funcionária do Governo Provincial de Luanda.

"Houve vezes que eu não quis andar com valores, mas ela pedia a um filho dela para me acompanhar ao banco, para lhe entregar os valores em mãos”, recorda Mena Gunge, que diz ter manifestado interesse em comprar uma moradia, no Mayé-Mayé, para oferecer a uma filha, separada do marido e a viver na casa da mãe com dois filhos pequenos.

A vida relativamente sossegada parou a partir do momento em que vários lesados começaram a pressionar o quarteto, o que veio a aumentar quando se soube que as duas presumíveis burladoras haviam "zarpado” da cidade do Sequele, encontrando-se, até hoje, em parte incerta.

Resultado: um dos lesados, que exigia a devolução de um milhão de kwanzas, fez, no SIC-Geral, localizado no bairro Neves Bendinha, uma participação criminal, dando origem à entrega de uma notificação a Eva Lopes, por ter sido a pessoa que recebeu o dinheiro das mãos do queixoso, e a Mena Gunge, por esta ter dado o valor à mãe de dois dos seus alunos, a outra presumível burladora, informação confirmada por Mena Gunge na conversa com o Jornal de Angola.

No SIC-Geral, durante a audição, feita separadamente, Eva Lopes e Mena Gunge foram aconselhadas a devolver o dinheiro ao queixoso, por estarem as três presumíveis burladoras em parte incerta, ficando assim comprometido um apuramento da verdade, enquanto não forem localizadas.

O conselho foi também extensivo aos dois outros integrantes do quarteto, identificados como Paulina Manuel Nicolau e Silvano Ferreira Tomás, em relação aos restantes lesados, sob pena, no caso de haver incumprimento, de voltarem ao SIC, sempre que for feita uma queixa-crime por algum lesado.

"Temos estado a devolver tanto dinheiro e o meu salário já não tem chegado para o sustento dos meus filhos”, lamenta Mena Gunge, que quer "sair de uma confusão” em que se meteu, revelando ter medo de ser presa, por um crime que reiterou não ter cometido.

Um advogado está a trabalhar na defesa do quarteto e entrou em cena depois de Eva Lopes e Mena Gunge terem sido notificadas pelo SIC-Geral.

 
Detenção e soltura

Dois meses depois de ter estado no SIC-Geral, Eva Lopes foi detida, no município de Cacuaco, na sequência de uma nova queixa-crime, feita, desta vez, por uma outra vítima, um oficial do SIC-Cacuaco, que exigia a devolução de três milhões de kwanzas.

Depois de sete dias de detenção, numa cela do Comando Municipal de Cacuaco da Polícia Nacional, Eva Lopes foi posta em liberdade um dia depois de ter sido presente a uma juíza de garantia, no Palácio Dona Ana Joaquina, onde esperou, das 8h00 às 20h00, pela sua vez de ser ouvida.

Um mandado de soltura foi emitido pela juíza de garantia depois de ter havido um acordo, entre o advogado de Eva Lopes e o advogado do queixoso, onde ficou garantida a entrega imediata, como condição para a libertação da arguida, de um milhão e 500 mil kwanzas, devendo o resto da "dívida”, que teve um aumento de 650 mil kwanzas, como correcção monetária, ser liquidada, parcelarmente, até ao fim deste mês de Outubro.

Eva Lopes está a desembolsar, desde Julho, 525 mil kwanzas, para a devolução do dinheiro ao queixoso que esteve na origem da sua detenção, acabando por ficar sem nada do seu ordenado.

A detenção de Eva Lopes despertou o quarteto para o reforço da necessidade de exigir, junto dos órgãos de Administração da Justiça, a realização de diligências com vista à localização das três presumíveis burladoras, para o apuramento da verdade.

"O SIC tem instrumentos para localizar as senhoras”, diz Eva Lopes, citando, como autora da frase, a juíza de garantia da 9ª Secção Criminal do Tribunal de Comarca de Luanda, que lhe devolveu à liberdade no dia 23 de Junho.        

O advogado José Domingos Fernandes, titular da cédula profissional 1.626, declarou, numa conversa com o Jornal de Angola (ver caixas), que os seus constituintes "não tinham a noção de que estavam diante de um crime de burla”, tendo revelado que os documentos, com o timbre e carimbo do Governo Provincial de Luanda, entregues aos lesados pelas três presumíveis burladoras "são falsos”.

Eva Lopes já devolveu dinheiro a 70 pessoas e, até agora, gastou perto de 30 milhões de kwanzas, valor resultante de dois empréstimos bancários e da venda de um terreno e de uma casa, no município de Viana.

"Infelizmente, despertámos tarde”, reconhece Eva Lopes, que diz ser uma pessoa que perdeu "vontade de sair à rua”, por, como disse, lamentando, estar a "ser vista como burladora, até por pessoas conhecidas, quando, na verdade, as verdadeiras bandidas continuam em parte incerta e com o dinheiro de todos os lesados.”

Mais complicada ficou ainda a vida conjugal de Mena Gunge, desde que vários lesados começaram a exigir, aos gritos, junto à porta do seu apartamento, a devolução do dinheiro que recebeu.

O marido de Mena Gunge abandonou-a, por ter ficado agastado com a constante presença de pessoas estranhas à porta do apartamento.

Até hoje, Mena Gunge está a resistir à pressão que sofre, diariamente, para vender o apartamento, a única moradia que tem, para pagar o que não considera uma "dívida”, por não ter ficado, como alega, com "nenhum tostão” do dinheiro que recebeu de vários lesados.

As duas senhoras acreditam que o desespero só vai terminar e que terão a vida normal de volta quando "as três culpadas forem localizadas, detidas, julgadas e condenadas.”


Processo terá "sumido” do SIC

O advogado José Fernandes enviou, a 6 de Junho deste ano, um documento para a representação da Procuradoria-Geral da República junto do SIC-Geral, solicitando a abertura de um processo-crime contra as três presumíveis burladoras.

O advogado destacou, no documento, a necessidade de localização das três presumíveis burladoras, para o apuramento da verdade, que, na sua convicção, está do lado dos quatro clientes, porque, acredita, "também que foram burlados”.

Um processo-crime foi aberto pela PGR, com o número 2022/23-B, e enviado, a 17 de Junho, mediante um ofício com número 3.666, para a Direcção de Combate aos Crimes contra o Património do SIC-Geral, onde recebeu um novo número (2.581/2023-03).

Quando procurou se informar do andamento do processo, o advogado José Fernandes encontrou duas contrariedades: apesar de ter recebido um novo número, quando foi recepcionado pelo SIC-Geral, no dia 25 de Junho, o processo não foi registado no livro de registo de entrada de processos e terá sido extraviado.

O advogado deslocou-se cinco vezes ao SIC-Geral e a resposta que recebeu foi sempre a mesma: "o processo ainda não foi localizado.”

O causídico admite, no entanto, que, por não ter ainda aparecido, três meses depois de ter entrado no SIC-Geral, "o processo pode ter sido extraviado por alguém, com a intenção de não querer que avance.”


Reclamação forense

O advogado apresentou, a 22 de Setembro, à procuradora titular junto do SIC-Geral, uma reclamação, para a abertura de um inquérito para se apurar "o que aconteceu ao documento” na Direcção de Combate aos Crimes contra o Património. "Estamos à espera do resultado da sindicância”, refere o advogado, admitindo que "pode haver uma mão invisível que não quer que o processo avance”.      

O causídico deixou, na conversa com este jornal, a convicção de que não vai ser difícil provar a inocência dos seus clientes, por uma razão muito simples: "existem provas.” Segundo José Fernandes, "uma parte do dinheiro foi entregue em mãos e outra parte transferida para as contas bancárias” das duas senhoras mencionadas pelos seus constituintes como comparsas da suposta funcionária do Governo Provincial de Luanda.

O advogado defende o bloqueamento das contas bancárias das três presumíveis burladoras e a necessidade de o SIC-Geral saber, assim como terá sido feito pelo SIC-Cacuaco, se uma delas está ou esteve vinculada ao Governo Provincial de Luanda.

No âmbito da linha de defesa que traçou para provar a inocência dos seus quatro clientes, o advogado tomou conhecimento de que as três presumíveis burladoras "já são conhecidas do Serviço de Investigação Criminal”, por os seus nomes terem sido "citados noutros casos de venda ilegal de casas em centralidades da província de Luanda.”

À espera da reacção da Polícia

Os nomes das três presumíveis burladoras não estão propositadamente mencionados nesta peça jornalística, por estar o Jornal de Angola à espera de um pronunciamento do porta-voz nacional do Serviço de Investigação Criminal (SIC), superintendente-chefe Manuel Halaywa, para quem foi enviado, há mais de um mês, um questionário, com perguntas, a maioria, relacionadas com o crime de falsificação de documentos de natureza diversa.

Os nomes vão ser divulgados se houver uma confirmação, por parte do SIC, da existência de uma investigação criminal, com as três senhoras como suspeitas.

O Jornal de Angola já ouviu, no entanto, o porta-voz do Governo Provincial de Luanda, Wilson dos Santos, que, depois de ter sido informado do motivo do contacto, garantiu, na resposta, por telefone, que, "numa avaliação preliminar, nunca tivemos uma funcionária com esse nome.”

Uma informação que colide com uma outra, avançada pelo advogado José Fernandes, que disse ter ouvido de um instrutor processual do SIC no município de Cacuaco que o Governo Provincial de Luanda (GPL) terá confirmado, no âmbito de uma diligência feita pelo SIC, que a senhora em causa era funcionária de um departamento do GPL, mas que nunca integrou qualquer comissão de distribuição de moradias.

Ainda sobre o assunto, o porta-voz do GPL, na sua resposta, declarou, também, que "o Governo Provincial de Luanda não tem autonomia, nem competência, de distribuir casas”.

As duas presumíveis intermediárias e comparsas da suposta funcionária do Governo Provincial de Luanda abandonaram a cidade do Sequele, depois de terem começado a ouvir do quarteto que a maioria das pessoas que pagou já estava a pressionar, alegando cansaço na espera pela execução da promessa de casas no projecto Mayé-Mayé.


Pedidos ignorados

As duas senhoras ignoravam sempre os pedidos que o quarteto fazia, para que fosse a dupla a entrar em contacto com as pessoas que fizeram pagamento, para assim ficar diminuído ou removido o sentimento de desconfiança que já havia.

Mena Gunge refere que a presumível intermediária que recebeu das suas mãos dinheiro de lesados nunca aceitou o conselho de encontrar-se com aqueles, mas, para dar a entender que havia transparência em todo o processo, chegou a levá-la a um local, no interior do Mayé-Mayé, onde seria, como alegou, feita, nos dias subsequentes, a distribuição de moradias.

A presumível burladora desapareceu, dias depois, do Sequele, e Mena Gunge soube, mais tarde, que se mudou para uma moradia localizada nas imediações do Estádio Nacional 11 de Novembro, podendo o seu apartamento, na cidade do Sequele, ter sido arrendado, uma suspeição que Mena Gunge levantou por ter encontrado "novos moradores”, de quem ouviu que a senhora "já não vivia no apartamento”.

Mena Gunge conseguiu localizar e chegar à nova moradia onde a senhora estava a viver. A presumível burladora não manifestou interesse em receber Mena Gunge, quando soube da sua presença, impressão que teve por aquela só ter saído de casa para a atender depois de

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