Reportagem

Da luta clandestina à proclamação da Independência Nacional

Rui Ramos

Jornalista

Na clandestinidade fomo-nos consciencializando com o que víamos e vivíamos de injustiças baseadas na discriminação racial e na sociedade em que o não branco não usufruía na vivência e convivência, já na altura os africanos separados na convivência social formaram as suas associações e conviviam uns com os outros e assim foi surgindo a unificação e a proliferação de ideias e sentimentos dentro de uma sociedade desigual e assim os africanos criaram diversas associações, Associação dos Naturais de Angola (Anangola), Liga Nacional Africana e Associação dos Naturais do Sul de Angola.

30/09/2023  Última atualização 14H53
Hermínio Escórcio conheceu as prisões e deportações e, em 1974, organizou a instalação do MPLA em Luanda e participou activamente na preparação do Dia 11 de Novembro de 1975 © Fotografia por: Vigas da Purificação |Edições Novembro
Independente destas associações foram surgindo outros agrupamentos já com cariz político, o MIA, o MINA e outros, que deram origem ao MPLA.

Foram-se disseminando células por todo o território nacional de diversos grupos, por iniciativa de Ilídio Machado, Viriato Cruz, André Franco de Sousa, Eduardo Correia Mendes, Higino Aires, Maninho Gomes, Matias Migueis, Mário António de Oliveira e outros, formaram um amplo movimento para a libertação de Angola a que se deu o nome de MPLA, sendo redigido a 10 de Dezembro de 1956 um manifesto que aglutinou uma série de grupos que nasceram com a ideia da libertação do país.

Como grande parte dos componentes desses grupos já estavam vigiados pelas autoridades coloniais portuguesas, Ilídio Machado, primeiro presidente, sugeriu que a direcção do movimento recém-criado deveria transferir-se para o exterior do país, para que as autoridades portuguesas não abafassem o recém-nascido movimento. Assim, Ilídio Machado deixaria de ser o presidente que passaria para Mário Pinto de Andrade que já se encontrava refugiado em Paris, para dar continuidade à vida e à divulgação do movimento.

Mário de Andrade e os outros camaradas no exterior solicitaram o apoio e colaboração do Partido Comunista Português, para preparação e a fuga do Dr. Agostinho Neto que veio a acontecer saindo de Portugal, numa traineira para Marrocos onde Mário de Andrade já o esperava para lhe entregar a direcção do movimento, e posteriormente seguem para Leopoldville aonde encontraram elevado número de angolanos, que reunidos confirmaram a liderança de Agostinho Neto à frente do movimento.

No Lobito, conforme íamos crescendo, íamos nos apercebendo da separação racial na convivência social entre as pessoas "de cor” e os europeus, havia clubes e associações como o Lusitano Sport Clube, o Lobito Sport Clube, o Rádio Clube do Lobito e o Ferroviário de Nova Lisboa.

Tive a oportunidade de lidar na sua estada na província de Benguela, com personalidades nacionalistas, como Viriato Clemente da Cruz e Amílcar Cabral. Posto em Luanda me integrei nas associações sociais africanas como a ANANGOLA e Liga Nacional Africana e consequentemente o MPLA, assisto a algumas prisões de nacionalistas que coincide com o termo do curso de Medicina de Agostinho Neto, que decide regressar a Angola para ajudar a reactivar a luta. Ele chega a Luanda e monta o seu consultório num dos bairros mais populosos de Luanda, para exercer a sua profissão e desenvolver actividades políticas com outros camaradas, é assim que é preso juntamente com o padre Joaquim Pinto de Andrade, Manuel Pedro Pacavira e outros.

Agostinho Neto e Joaquim Pinto de Andrade foram desterrados para fora do país; Neto para Cabo Verde e Joaquim Pinto de Andrade para São Tomé e Príncipe e depois transferidos para Portugal.

Após a abertura por pouco tempo da delegação do MPLA em Leopoldville, muitos camaradas que abandonavam o país dirigiam-se para lá para se integrarem nos movimentos de libertação, uns passavam pela UPA para chegar ao MPLA e outros chegavam directos ao MPLA, a UPA é o movimento que já estava enraizado em Leopoldville e com fortes raízes no Norte de Angola. Tive a oportunidade de me corresponder com Lúcio Lara e Aníbal de Melo, correspondência essa que era levada por um amigo português que tinha um irmão em Leopoldville e que viajava frequentemente para lá e que se tornou no meu estafeta e foi assim que recebia permanentes orientações directas do Comité Director, em Leopoldville e depois Brazzaville para onde foram, por terem sido expulsos, e como precisávamos de condições para efectuarmos acções mais acções, que eram as palavras de ordem, que visavam confeccionar e disseminar propaganda a partir de células de 3 a 5 elementos, recebia periodicamente correspondência, bandeirinhas, postais e emblemas, que eram possíveis de reproduzir como todo o material escrito e distribuído clandestinamente.

Dentro das acções eu e o camarada Aristófanes do Couto Cabral, para replicar as afirmações do delegado português no comité de descolonização da ONU, em que afirmava que Angola não havia angolanos que queriam a independência e os que o faziam eram indivíduos sem representatividade que se encontravam no exterior, elaboramos um manifesto, que era o decalque do estatuto do MPLA com a sigla MIPLA-Movimento Interno Popular de Libertação Nacional e entregamos a um delegado da OIT (que tinha vindo Angola a uma grande reunião), documento esse que foi entregue e amplamente divulgado na sessão de descolonização da ONU, contrapondo as afirmações do delegado português.

É assim que eu e os camaradas nas células desenvolvemos actividades clandestinas e tomamos as direcções das associações já existentes e autorizadas pelo Governo português, como a Anangola, Liga Africana e os Naturais do Sul de Angola.

A primeira prisão em 1963

Sou preso pela PIDE pela primeira vez em Junho de 1963, cumpri a minha pena na cadeia de São Paulo e na cadeia central de Cacuaco. Fui julgado e condenado pelo tribunal militar, pelo crime de subversão, separação da mãe pátria e pela luta de libertação de Angola, à pena de 5 anos e meio e 3 anos de medidas de segurança. Sou preso novamente um ano depois de sair em liberdade, por enviar informações para Brazzaville sobre o estado calamitoso em como se encontrava política e militarmente o MPLA no Norte de Angola, na Primeira Região, sou desterrado para a Foz do Cunene, ficando isolado dos centros de convívio populacionais, sou solto 2 semanas depois do 25 de Abril. Posto em Luanda, reúno-me com alguns camaradas que foram soltos na mesma época dos campos de concentração, para solicitarmos da direcção do partido em Brazzaville como continuar a luta organizada e disciplinadamente. Como o MPLA ainda não tinha deposto as armas como aconteceu com os outros movimentos de libertação (FNLA e UNITA), o Movimento das Forças Armadas (MFA), não nos deixava fazer propaganda do MPLA, sem que o MPLA depusesse as armas.

Assim, recebemos informações para disseminarmos a propaganda com a sigla CAPA. Do encontro tomámos a decisão de enviarmos a Brazzaville um camarada para receber instruções da direcção do movimento em como continuar disciplinada e organizadamente a disseminação das orientações superiores, e é assim que é designado o camarada José Van-Dúnem para ir a Brazzaville e quando regressa se recusa a reunir connosco para nos transmitir as orientações que tinha recebido e qual o objectivo que o levou a Brazzaville, tivemos que nos reunir novamente. Lamentámos o sucedido e enviámos o camarada Manuel Pacavira para relatar a Brazzaville o que tinha acontecido e trazer as orientações necessárias.

Os militares angolanos integrados nas forças armadas portuguesas fizeram uma marcha do RI 20 até à Fortaleza, sede do MFA, para reivindicarem entre outros pontos a composição mista das patrulhas nos musseques para evitar as mortes que estavam a acontecer, e é assim que morre Pedro Benge, cujo funeral sai da Liga Africana para o Cemitério Novo na estrada de Catete e fizemos deste um acto político do MPLA. Com este acontecimento e a evolução de outros eu sigo para Brazzaville à frente de uma delegação para integrarmos os camaradas do interior para o congresso (fracassado), sobre a égide da OUA a unificação das 3 facções do MPLA.

Fracassado o congresso de Lusaka, Agostinho Neto orienta, para o estado maior do exército (as FAPLA) prepararem as condições para a realização da inter-regional na margem direita do rio Londonge na fronteira com a Zâmbia, onde se realizou à inter-regional e são eleitos o Comité Central e o Bureau Político, e orientações subsequentes para a representatividade nas negociações com os portugueses.

Entretanto, com o 25 de Abril começam a surgir novas formações políticas. O movimento das forças armadas não nos autorizava a aparecermos com a sigla CAPA, dizendo que era o MPLA camuflado, que o MPLA deveria se apressar a vir para a cena política para juntamente com os outros 2 movimentos que pegaram em armas pela libertação de Angola, para discutir com o Governo português e é assim que Aristides Van-Dúnem e Manuel Pedro Pacavira juntam-se a Brazzaville para se preparar os acordos de Liamês.

Eu, juntamente, com o Almirante Leonel Cardoso que estava à frente do Governo português em Angola, fomos para o Luso e do Luso para o Liamês aonde se realizaram as negociações para as tréguas mais conhecido por Cessar Fogo (Agostinho Neto chamou sempre tréguas e não cessar fogo, porque se os portugueses não cumprissem com esses acordos, nós MPLA continuaríamos a combater com armas na mão). É nomeado o general Silvino Silvério Marques, que já tinha sido nomeado anos atrás em plena era colonial governador geral de Angola, desta vez para comissário, a uma reunião nas instalações da Liga Africana entre alguns movimentos emergentes que apareceram na época e o MDA liderado pela Drª Maria do Carmo Medina, reunião essa em que o MPLA não estava representado e a Drª Medina exigiu que a reunião só poderia começar com a minha presença, chegado à reunião discutido o assunto que era a presença do Silvino Silvério que era pessoa não grata dos colonizados, ficou assente que iria uma delegação a Lisboa composta pelos elementos representativos do MPLA, que eram o camarada Diógenes Boavida, chefe da delegação, pelo MPLA Francisco Furtado Antas, Beto Van-Dúnem e a representar os movimentos emergentes o Dr. Frestas.

A sede do MPLA na Vila Alice

Recebo orientações do Bureau Político de Brazzaville para se instalar a sede do MPLA e é assim que vou à Vila Alice, encontro um prédio que tinha sido um internato de madres que estava vazio, o guarda orientou-me que o proprietário era a empresa Figueiredo e Irmão com sede no Lobito. Vou a Benguela dirigi-me à empresa exportadora de produtos coloniais e encontro como gerente o Valente que tinha sido meu colega de escola a quem fiz a proposta de aluguer, aluguer este que ficou concretizado, cujas primeiras rendas de 20.000 escudos foram pagas pela minha mulher, chegado a Luanda expus aos camaradas Zé Van-Dúnem e Juca Valentim as démarches feitas para instalar a sede do MPLA. Eles reprovaram a ideia de instalar a sede do MPLA no bairro que pertencia à elite portuguesa, argumentando que sendo o MPLA um movimento de massas deveria ter a sua sede num dos musseques de Luanda. Eu perante essa opinião dei mais uma volta pela cidade e arredores e encontrei as instalações conhecidas por Dona Amália) no musseque do Rangel, negociei com a proprietária do imóvel, para ir instalar o DOM Regional (organização de massas).

Entretanto, a Câmara Municipal de Luanda e sua vereação continuavam a trabalhar como se nada tivesse acontecido de mudança no país e os camaradas que compunham o MDA (Movimento Democrático Angolano), pró-MPLA, o arquitecto Troufa Real, Kinjinje e eu, mobilizou-se uma parte da população e componentes da UNTA (União dos Trabalhadores de Angola), encheu-se a praça em frente à câmara municipal, hoje parque de estacionamento, com bandeiras do MPLA com dísticos revolucionários. Eu e o Kinjinje subimos ao primeiro andar, à sala de sessões, entrámos e dirigimo-nos, batendo palmas para chamar a atenção de todos os presentes, e declarámos alto e bom som que a função da direcção colonial da câmara municipal tinha terminado e o MPLA tomava conta a partir daquele momento. Eles levantaram-se e o vereador Vieira da Costa que era angolano, foi o único que se pronunciou dizendo que já esperava por este momento e retiraram-se, logo a seguir o oficial do exército Pezará Correia veio com uma delegação e negociou connosco para ficar à frente dos destinos do município uma comissão da qual faziam parte o engenheiro Humberto Bessa Vítor, o Dr. Mário Maximino Nelson, Mendes de Carvalho e Domingos Van-Dúnem.

Recebi novo telegrama para me dirigir ao Luso, aonde me iria encontrar com uma delegação do Bureau Político que viajou por terra até lá, composta pelos camaradas Kapango e Lukoki para acertarmos pormenores sobre a chegada a Luanda de uma comitiva da direcção do movimento e quadros chefiados por Lúcio Lara e com orientação de levar comigo o camarada Mendes de Carvalho. Após apoteótica chegada da delegação ao aeroporto de Luanda e a sua instalação, fez-se um comício na Cidadela nos dias seguintes, apresentaram-se os dirigentes chegados às autoridades coloniais e à sociedade e iniciámos a reorganização do movimento a toda a nação e assim Lara e eu inaugurámos as delegações provinciais do movimento em Angola, à excepção do Uíge que fui eu e a Maria Mambo, e ao Namibe foi o Lara e o Pacavira.

Iniciámos os preparativos para a recepção de Agostinho Neto, exigência feita pelo movimento das forças armadas, visto se encontrar em Luanda Jonas Savimbi e Holden Roberto. À chegada a Luanda a 4 de Fevereiro de 1975, Agostinho Neto ficou provisoriamente a morar no bairro do Saneamento enquanto estávamos a negociar uma casa no Futungo de Belas.

A sede do MPLA na Vila Alice n.° 100, hoje rua da Liberdade, onde está instalado o Comité Provincial de Luanda, já era pequena para acomodar todos os serviços e é assim que eu e o Rita, por orientações do Presidente Neto, fomos à procura de instalações maiores para caberem todos os serviços num prédio só, e fomos ter com o engenheiro Manuel Resende, ministro da Construção, para que me desse uma indicação onde poderíamos encontrar um prédio onde pudéssemos acomodar todos os serviços do MPLA. Fomos orientados pelo ministro de que havia um prédio perto dos serviços de Geologia e Minas que tinha acabado de ser pintado e eu e o Rita nos dirigimos para lá e subimos até ao 2º andar e vimos que eram as instalações ideais para o nosso movimento, e até hoje é a sede do MPLA.

Na preparação da reunião de negociações de Alvor, era necessário que o MPLA aparecesse indivisível e acertar com os dois movimentos FNLA e UNITA, para não divergirem os pontos de negociação à mesa com os portugueses, e como até ali não se chegou a acordo com as facções internas do MPLA. O MPLA partiu para os acordos com os outros movimentos.

O Presidente Kenyata ofereceu-se para uma reunião em Nakuru, Quénia, para acertos dos pontos a discutir com os portugueses. Para o encontro de Nakuru, o Presidente Neto acorda com Jonas Savimbi a convidar Holden Roberto para irem a Nakuru. Pela UNITA foi o José Ndele e Wilson Santos, pelo MPLA, fui eu e Ludi, fomos a Kinshasa à sede da FNLA e transmitimos os convites e ele acedeu e assim rumamos para Nakuru para o primeiro acerto.

Por achar sério e oportuno, tenho o prazer de realçar o registo do Dr. Fernando de Oliveira, na altura director de gabinete do ministro da Informação Dr. Rui Monteiro.

Começando pela certidão de nascimento do novo País – a sua Constituição fundadora -, é necessário recordar que, na sequência do Acordo de Alvor, havia sido elaborada uma "Lei Fundamental”, bem como uma "Lei Eleitoral”, que foram publicadas no "Boletim Oficial”, em Junho de 1975.

Promulgadas pelo Alto Comissário, na sua feitura consensual sobre a responsabilidade dos três Movimentos que integravam o Governo de Transição, envolveram-se juristas por eles indicados, destacando-se a Dra. Maria do Carmo Medina e o Dr. Antero de Abreu, pelo MPLA, o Dr. Onofre dos Santos, pela FNLA, e os Drs. Fernandes Vieira e Fernando Fonseca Santos, pela UNITA. Mas, rapidamente, esse projectado edifício jurídico havia de se tornar letra morta e irremediavelmente ultrapassado. O conflito interno agudizou-se dramaticamente na capital (começando pelo que se chamou a "batalha de Luanda”, em 9 de Julho) e por todo o País.

As principais forças da FNLA e da UNITA saem de Luanda em meados de Julho; em 30 de Julho o então Alto Comissário General Silva Cardoso demite-se e é substituído pelo Almirante Leonel Cardoso; em 12 de Agosto, os Ministros do Governo de Transição da FNLA e da UNITA abandonam Luanda e os seus cargos e, finalmente, em 22 de Agosto, é publicado pelo Alto Comissário o Dec.-Lei nº 458/A-75, que procede à suspensão parcial do Acordo de Alvor, "ficando transitoriamente suspensa a vigência do Acordo no que diz respeito aos órgãos de governo de Angola”. Porém, nem esta suspensão legal por parte da potência colonial administrante, nem pela postura e comportamento dos três Movimentos e de todo o Povo Angolano, alguma vez se pôs em causa o facto definitivamente adquirido de que a Independência haveria de sobreviver a 11 de Novembro deste ano. Daí que, logo a partir de Setembro/Outubro, o MPLA (e certamente também os outros dois Movimentos) começou a trabalhar na preparação dos instrumentos legais fundadores da Independência que se avizinhava.

Tudo isto se processou aceleradamente, no meio da voragem das batalhas e vicissitudes do conflito armado que entretanto se generalizara (a invasão e ocupação ao norte pelas tropas do Zaíre e do ELP português e a invasão da parte sul do País, ocupação e progressão do exército sul-africano); das  tentativas de solução bilateral entre os Movimentos (encontro entre Lopo do Nascimento e José Ndele, em Lisboa, em 25 de Agosto); diversas intervenções diplomáticas africanas, desde a visita a Angola de uma delegação da OUA, em 20 de Outubro, até à Cimeira da OUA, realizada in extremis em Kampala, em 2/4 de Novembro. Entretanto, as colónias irmãs ascendiam à sua independência: Moçambique, a 25 de Junho, Cabo Verde a 5 de Julho. S. Tomé e Príncipe, a 12 de Julho.

Em Angola, a par das sucessivas batalhas e ocupações no terreno, assistia-se ao gigantesco êxodo humano daponte aérea”, em que, entre 17 de Julho e 31 de Outubro, abandonaram o País cerca de trezentas mil pessoas (oficialmente, 235.315 para Portugal, 30.000 para a África do Sul e 17.000 para o Brasil). Com esta dimensão, a paisagem humana modificava-se radicalmente, num curtíssimo espaço de tempo.

  A preparação  e organização da proclamação da Independência

Na incerteza da realidade que mudava a cada instante, obrigando a quase uma "navegação à vista”, pelo lado do MPLA foi-se trabalhando na preparação daqueles instrumentos fundamentais, a saber, a Constituição e a Lei da Nacionalidade, o texto solene da Proclamação da Independência e a confecção dos símbolos do novo Estado. Essa tarefa foi obra de um núcleo muito reduzido de dirigentes e militantes e desenrolou-se, principalmente, num marco espacial centrado na Cidade Alta, no Palácio do Governo, onde funcionavam o Ministério da Informação e o Ministério da Justiça, e o adjacente Bairro do Saneamento, por detrás do Palácio, onde residiam os Ministros, nomeadamente Manuel Rui Monteiro, Carlos Rocha Dilowla, Saydi Mingas e Augusto Lopes Teixeira (alguns Ministros da UNITA e da FNLA já tinham abandonado as suas casas vizinhas, saindo de Luanda).

O "trabalho de casa” foi feito, literalmente, na casa do Manuel Rui, onde, pela noite adentro, encontravam-se ou apareciam juristas como a Dra. Antonieta Coelho, o Dr. Aníbal Espírito Santo e o Dr. Orlando Rodrigues, dirigentes como Lúcio Lara, Lopo do Nascimento, Saydi Mingas e Henrique Santos Onambwe. Bem próximo, solitariamente na sua casa, Dilowla esboçava o que viria a ser a parte económica da Constituição, concertando-se com Saydi Mingas.

Nos últimos dias, também deu o seu sábio contributo o Dr. Óscar Monteiro, jurista moçambicano que, seu amigo pessoal e colega de Coimbra, estava alojado na residência do Manuel Rui. Por outro lado, a Lei da Nacionalidade que, no essencial recolhia o acordado em Alvor e, mesmo antes, em Mombaça – a consagração do ius soli -, ia sendo preparada no gabinete do Dr. Diógenes Boavida, já então ministro da Justiça, com a colaboração principal do Dr. Antero de Abreu e da Dra. Maria do Carmo Medina.

Naquelas longas e tensas noites, e também no mesmo local, trabalhava-se na feitura dos símbolos da futura República: o hino "Angola Avante”, em que à bela letra do Manuel Rui se juntava, estrofe a estrofe, a harmonia dos acordes do Rui Mingas; a bandeira e a insígnia, com as ideias e matrizes iniciais do Henrique Santos "Onambwe” e o traço esmerado do Marcos Almeida "Kito”, sob a supervisão do Helder Neto.

Como é evidente, todos estes projectos eram depois levados à aprovação da direcção do MPLA, designadamente do Presidente Agostinho Neto, que se encontrava as mais das vezes no chamado "Estado Maior”, no Morro da Luz, na Samba. E o "estafeta” era normalmente o Dr. Manuel Rui Monteiro. Já a sua execução material era feita na Direcção Geral de Informação do Ministério da Informação, no rés-do-chão do Palácio, então chefiada por Luís de Almeida, que viria a ser, mais tarde e por décadas, o decano dos Embaixadores angolanos.

Foi no seu gabinete que se ultimou também o texto da "Proclamação da Independência”, cuja matriz inicial foi da autoria de Carlos Rocha Dilowla, beneficiando dos contributos de Lopo do Nascimento, José Eduardo dos Santos e também, na versão "literária” final do Manuel Rui e de mim próprio. Aprovadas, por aclamação, pelo Comité Central do MPLA no próprio dia 10 de Novembro, a Lei Constitucional da República Popular de Angola e a Lei da Nacionalidade, ainda nesse mesmo dia houve que as dar à estampa na Imprensa Nacional, cujos tipógrafos estavam naturalmente a postos, de modo a que, no dia seguinte, fosse publicado o nº 1 do novo "Diário da República”. O que efectivamente veio a acontecer (embora com tantas gralhas que, logo no dia 12, saía uma extensa corrigenda no nº 2…). Esse nº 1 do novo jornal oficial da República estampava os dois documentos fundadores do novo Estado, a sua certidão de nascimento: a Lei constitucional, vertida em sucintos, mas fundamentais sessenta artigos, e a Lei da Nacionalidade, em oito curtos artigos, definindo a nova cidadania angolana.

Aquela mesma emergência marcou a confecção material da bandeira e da insígnia e o primeiro ensaio de entoação do Hino, por um coro improvisado pelo Carlos Lamartine, na então Emissora Oficial de Angola, primeiro com Rui Mingas, Catila Mingas e o próprio Manuel Rui e depois com um grupo de jovens apressadamente encontrados para o efeito.

Ao meio-dia do dia 10, o Alto Comissário Leonel Cardoso, num acto realizado no salão nobre do Palácio, para o qual convocara a imprensa, declarava solenemente que Portugal se retirava de Angola e "entregava a soberania ao Povo Angolano”. Foi a solução, algo ficcional, que em Lisboa o Governo português, largamente dividido sobre a situação em Angola, encontrou para se recusar a reconhecer formalmente o novo Estado e o novo governo instituído na capital. Feita essa proclamação unilateral de uma independência difusamente sem destinatário, o Alto Comissário e o seu staff abandonaram o Palácio, dirigiram-se à Fortaleza, onde arrearam a "última bandeira portuguesa em solo angolano” e daí saíram para a base naval na Ilha de Luanda, onde embarcaram nas "últimas caravelas”, os navios "Niassa” e "Uíge”, duas fragatas e uma corveta.

Por circunstâncias que não interessa agora revelar (fora incumbido de entregar a bandeira portuguesa arreada na base de Belas ao Tenente da Marinha portuguesa Soares Rodrigues), tive a oportunidade de assistir à retracção do último dispositivo militar português em terra, ao longo da Ilha, e recordo o quadro ímpar a que assisti: quando entrei na base, ainda havia na porta de armas fuzileiros portugueses; quando saí, uma escassa meia hora depois, todos tinham embarcado, a porta de armas estava escancarada e as crianças e o povo da Ilha entravam por ali dentro, com manifestações indescritíveis de alegria. Sabe-se que, depois, num desígnio de afirmação mais simbólico do que real, os navios portugueses terão permanecido nas águas territoriais angolanas (que na altura tinham uma extensão legal de 20 milhas…) até às zero horas do dia 11. Mas a sede do poder, o Palácio, havia ficado vazio desde as catorze horas, entregue aos serventuários angolanos, mais velhos de impecável libré branco, "criados do Senhor Governador”.

Por volta das dezasseis horas, Hermínio Escórcio, com um pequeno destacamento militar que fora buscar à Vila Alice, tinha lá ido preencher esse vazio, assegurando depois, com o seu proverbial optimismo, de que "estavam criadas todas as condições” e de que "estava tudo no papo” …Cerca das seis da tarde, Manuel Rui dirigia-se à Televisão e aí fazia um apelo à serenidade para a noite que se avizinhava. E bem necessária era essa intervenção acalmante: chegavam à cidade os ruídos e os rumores das batalhas em Kifangondo, no "Morro da Cal”, e muita gente tinha nos ouvidos o que, ainda nessa mesma tarde, ameaçava pela rádio. Holden Roberto: "Estaremos em Luanda até à meia noite. Até logo, Luanda!”.

Todas as atenções, e todo o ajuntamento humano, convergiam para o Largo 1º de Maio (hoje, Largo da Independência) onde se iria passar o histórico acto. Entretanto, 400 aparelhos de televisão haviam sido instalados pelo Ministério da Informação nas Comissões de Bairro e outros locais públicos, em toda a cidade, principalmente nos musseques, para que toda a gente pudesse assistir em directo ao acontecimento.

Antes de chegar ao Largo (mais precisamente ao pequeno palanque próximo situado do lado direito da Estrada de Catete), as três viaturas que conduziam o Presidente Neto e seus familiares, andaram por ali perdidos e às voltas até encontrarem a entrada para a tribuna, tal era a concentração e a confusão reinante no local. Mas, por fim, ao som da parafernália de tiros festivos disparados para o ar e dos cânticos a palavras de ordem difundidas pelos altifalantes, "às zero horas do dia 11 de Novembro”, tal como estabelecido no Acordo de Alvor, pela voz de Agostinho Neto, "em nome do Povo angolano, o Comité Central do Movimento Popular de Angola (MPLA), proclama solenemente, perante a África e o mundo, a Independência de Angola”. E logo a seguir irrompe uma estrondosa ovação quando Neto anuncia que "correspondendo aos anseios mais sentidos do Povo, o MPLA declara o nosso País constituído em República Popular de Angola”.

A bandeira da nova República foi depois içada no mastro defronte à tribuna pelo pioneiro Dinis Kanhanga e pelo Comandante do 4 de Fevereiro, Imperial Santana e é entoado, pela primeira vez em público, o "Angola Avante”. Naqueles derradeiros meses, Carlos Lamartine andava a cantar "Dipanda Wondó Tula Kia”- a independência está a chegar… – e agradecia a Agostinho Neto.

Agora, "com os olhos secos”, Neto por certo chorava interiormente de alegria por ver realizada a sua profecia do poema "Içar da Bandeira”, que escrevera em Agosto de 1960 na prisão do Aljube, em Lisboa. A velha Xica, do Waldemar Bastos, bem podia já dizer "posso morrer, posso morrer, já vi Angola independente!”. E os meninos do Huambo, do Manuel Rui, iam "aprender como se ganha uma bandeira” e "o que custou a liberdade.

O que se seguiu naquela noite, não estava inicialmente previsto: a ida ao Palácio. À última hora, entendeu-se que a tomada do poder implicava também a tomada dos símbolos do poder e, no caso, o derradeiro símbolo do poder colonial era precisamente o Palácio do Governo, de onde a colónia tinha sido dirigida durante séculos. Por isso, finda a cerimónia, a comitiva do Presidente Neto e uma imensa multidão dirigiu-se para o Palácio.

Aí, foi feito um brinde de champanhe, impecavelmente servido por aqueles que antes eram os "criados do Senhor Governador” e o Presidente Neto e comitiva foram à varanda principal e acenaram à multidão que ali chegara. Neto não falou na altura, apenas Manuel Rui improvisou, na sua proverbial verve poética, como já o fizera antes na tomada de posse do Governo de Transição: "Está definitivamente enterrado o tempo em que, das varandas dos palácios coloniais, erguidos com o trabalho forçado do nosso Povo, os sorrisos de ouro e os gestos de abastança procuravam disfarçar a fome, a usurpação e o genocídio. A máscara do colonialismo acabou”.

No dia seguinte, ao meio-dia, no salão nobre da então Câmara Municipal de Luanda, hoje sede do Governo Provincial, Lúcio Lara dava posse formal a Agostinho Neto, como Presidente da República Popular de Angola. Assistiram ao acto representantes de 28 Países, 17 dos quais manifestaram de imediato a disposição de reconhecimento do novo Estado.

Iniciava-se então a "batalha do reconhecimento” internacional, crescendo, dia a dia, os reconhecimentos dos Estados de todo o mundo. A potência colonial, que em 10 de Novembro havia "entregue a soberania ao Povo Angolano”, quando finalmente reconheceu a República Popular de Angola, uns meses depois, em 22 de Fevereiro de 1975, foi o 88º Estado a fazê-lo.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Reportagem