Opinião

Desmistificação de mitos coloniais

Filipe Zau

Jornalista

Gerald J. Bender foi um dos muitos investigadores que, não sendo português nem cidadão de nenhum dos países de língua oficial portuguesa, se debruçou sobre o luso-tropicalismo e os mitos que o fundamentam: o primeiro aspecto está ligado a um suposto bom colonialismo, através de hipotéticas relações de horizontalidade; e o segundo à ausência de racismo, trazendo, como exemplo, o Brasil:

31/03/2021  Última atualização 08H38
"Os portugueses são portadores de uma capacidade especial (que não se encontra em nenhum outro povo) para se adaptarem aos espaços e povos tropicais (não-europeus), atendendo, sobretudo, às suas características idiossincráticas de ordem cultural e racial. Como colonizador, o elemento português era essencialmente pobre e humilde, daí, se encontrar, logo à partida, desprovido de motivações ligadas à exploração, facto que caracterizou outros países congéneres europeus mais industrializados. A sua condição de pobre e humilde levou-o a estabelecer relações de cordialidade com populações não-europeias, como foi o caso do reino do Congo, em finais do século XV”.

No que respeita à descriminação racial, "o maior testemunho de ausência de racismo está no Brasil, cuja colonização resultou num caldeamento cultural e numa população predominantemente mestiça, fruto da liberdade social e sexual que, desde sempre, existiu entre portugueses e não-europeus. Contrariamente à África do Sul e aos Estados Unidos da América, nunca houve em Portugal legislação que impedisse os não-brancos de ocuparem cargos específicos, facilidades, etc. Todo o preconceito ou discriminação que houve nos territórios anteriormente governados por Portugal, basearam-se em aspectos ligados à classe social e nunca à cor da pele”.

Desmistificando os mitos, o politólogo brasileiro Vamireh Chacon, por sinal, um defensor do luso-tropicalismo, opõe-se à ideia de que, alguma vez, Gilberto Freyre tenha afirmado não haver racismo no Brasil e que, desde «Casa Grande & Senzala» o próprio Gilberto Freyre "não doira a miscigenação brasileira”. Por seu turno, o sociólogo angolano Victor Kajibanga refuta a teoria da crioulidade (a variante do luso-tropicalismo para Angola) e afirma haver um "carácter falacioso do mito do não racismo português, que os insignes teóricos da crioulidade também pretendem defender e eternizar de forma camuflada”.

Enquanto o "filósofo nativista português” Pinharanda Gomes, um dos grandes defensores da portugalidade, no seu livro «Fenomenologia da Cultura Portuguesa», publicado em 1969, defendeu as seguintes teses: "a invenção do mestiço era o facto mais importante da colonização portuguesa; o mestiço era a vida necessária ao aparecimento da nova cultura portuguesa; o mestiço seria a ponte de união geográfica de Portugal e o mundo por ele colonizado”; em direcção inversa, o historiador e geógrafo português Orlando Ribeiro referiu: "governadores prestigiosos como Norton de Matos e Vicente Ferreira eram adversos à mestiçagem, embora partidários da elevação social de pretos e mulatos, mas constituindo grupos cuidadosamente separado”.

Tais posições, expressas por ex-governadores coloniais da 1ª República Portuguesa, contrariam a existência de eventuais "métodos de integração” no sistema de relações sociais em Angola, que, segundo o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, foram utilizados pelos portugueses contrariamente a outras colonizações europeias. O norte-americano Gerald Bender e o sociólogo angolano Mário de Andrade afirmaram que esta "integração” dizia apenas respeito à europeização dos africanos e não o inverso. Sempre que os valores e os padrões de vida africanos influenciavam os portugueses, isso era considerado um retrocesso.

Mais recentemente, Cláudia Castelo, investigadora do Centro de Estudos da Universidade de Coimbra, assegurou que, apesar das "ideias mestras do luso-tropicalismo já aparecerem em "Casa Grande & Senzala» e em «O mundo que o português criou", a teoria freyriana do luso-tropicalismo é posterior a estas duas obras. Sem conhecimento das novas realidades que coloca como seu objecto de análise, restou a Gilberto Freyre generalizar a partir do caso brasileiro e "ao invés de um estudo científico, o leitor depara com uma invenção idealizada do ‘mundo português’. O melhor dos mundos, ou pelo menos, o mais democrático, o mais humano, o mais fraterno”.

Só a partir da década de 50, quando o governo português patrocinou a sua primeira viagem a todas as colónias portuguesas, foi quando Freyre universalizou, com convicção, o luso-tropicalismo. O ensaio "Integração portuguesa nos trópicos", que já circulava em meios universitários europeus e norte-americanos, não comporta novidades de fundo. São, no entanto, de registar: o tom mais político e menos sociológico; a introdução dos conceitos de "integração” e "simbiose”; o acentuar da tendência para a generalização e o alargamento do horizonte geográfico a todas as áreas de colonização hispânica dos trópicos. Nesta sua obra é também o próprio Freyre que afirma, que pretende "tornar a luso-tropicologia pragmática, funcional; encerrando um projecto de acção e um sentido político”. E acrescenta: "a civilização luso-tropical, que Freyre descreve e interpreta, não existe, é antes uma aspiração, um destino”.   

Frantz Fanon, na sua obra "Os Condenados da Terra" referiu que "as relações colono-colonizado são relações de massa. Ao número o colono opõe a força”. Do mesmo modo, Kajibanga refere que "a essência social do colonialismo é una”, pelo que não acredita que tenha existido no mundo colonialismos que se caracterizassem por sentimentos de generosidade, em detrimento do saque de recursos naturais (e outras riquezas) e da exploração de mão-de-obra das populações colonizadas”.

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

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