Sociedade

Bairro com destino ligado ao aeroporto

Antiga circunscrição de Luanda, que também se chamou Rebocho Vaz,  Cassequel do Lourenço é uma das localidades que acolheram, nos anos 70, os primeiros habitantes provenientes dos bairros Prenda e do Sector da Cacimba, antigo Bairro Indígena, onde viria a ser construída a Cidadela Desportiva.

03/02/2019  Última atualização 12H41
Maria Augusta | Edições Novembro

O Cassequel sempre ocupou uma posição estratégica na vertente económica e política no antigo Distrito de Luanda, devido a implantação na circunscrição do aeroporto Presidente Craveiro Lopes, depois denominado de Belas e hoje 4 de Fevereiro.

As obras de construção do aeroporto tiveram início em 1951, sendo concluídas em 1954 e inauguradas nesse mesmo ano pelo então Presidente da República Portuguesa General Craveiro Lopes.

A circunscrição que sempre teve a designação de Cassequel foi posteriormente baptizada Rebocho Vaz, um general que nos anos 1960 foi mobilizado para trabalhar em Angola, onde, dentre várias funções, exerceu os cargos de Governador Distrital de Carmona (Uíge) e Governador Geral da Província e do Estado de Angola.

O bairro Cassequel surgiu nos anos 40 do século passado. Na época, era um grande matagal onde as populações  ia cultivar a terra e organizavam  pequenas  lavras nas clareiras.

Só a partir dos anos 60, no âmbito de um projecto social do governo português, foram construídas habitações para receber as populações que viviam em alguns musseques existentes na zona urbana de Luanda.

Beneficiaram desse processo de realojamento as populações do Prenda e Bairro Indígena (zona da Cacimba), que foram instaladas em residências “condignas”, no âmbito do projecto “Um Lar Para Cada Família”, promovido pela Comissão Administrativa do Fundo dos Bairros Populares de Angola. Elementos fornecidos pelo Censo de Setembro de 1964 indicavam que o Cassequel, naquela época,  possuía dois mil e 419 habitantes.

Reza a historia que as primeiras casas do Cassequel a serem habitadas foram as construídas nas três primeiras ruas, nomeadamente 17, 19 e 21, que receberam as populações provenientes do bairro Prenda, desalojadas nas áreas onde foram construídas a actual rua Comandante Argueles e a Clinica D. João II (hoje Hospital do Prenda).

As populações provenientes do bairro Indígena e que viviam em casas degradadas na zona da Cacimba, foram realojadas numa primeira fase nas casas construídas na rua onde hoje está a funcionar o posto dos SME, que dá acesso ao antigo Supermercado Lourenço. Contam os moradores mais antigos que a cerimónia formal de realojamento foi orientada pelo Governador Rebocho Vaz.  

 

Construções de raiz

Mário Eduardo “Marito”, antigo morador, diz que as autoridades coloniais escolheram para fazer o protocolo uma jovem modesta que ainda está em vida. Trata-se da Dona Dinó, que pertence à família Tavares, que carregou a bandeja com a fita e as tesouras.

As habitações, construídas de raiz, foram projectadas por um proeminente engenheiro de construção civil. “O bairro está urbanizado, feito com todos os detalhes das suas redes  técnicas e com espaços para construção de quintais”, conta Marito.

No tempo colonial havia no bairro uma secção da Junta da Habitação, onde os  moradores se dirigiam para fazer os contratos das casas e pagar as rendas. Essa instituiçãosituava-se na rua 17 e, lá, para além das populações indígenas, afluíam também famílias de raça branca.

A construção das casas no Cassequel deu maior visibilidade ao bairro, devido à sua arte arquitectónica. As paredes não eram rebocadas, mas as casas atraíam as atenções de quem fosse ao bairro. As casas, mesmo não rebocadas, eram pintadas com as três seguintes cores: amarela, verde e cor de rosa. 

As casas atribuídas aos moradores antigos possuíam o tecto de chapa de zinco,  cozinha, casa de banho e não tinham janelas, apenas uns orifícios de respiração, e as portas eram de madeira maciça.  

Depois de construídas as moradias das ruas 17, 19 e 21 o processo estendeu-se até a rua 1 e de seguida à zona que vai até ao chamado Cassequel das 40, onde as casas foram pintadas com a cor rosa. 

 

O nome do bairro

Em relação à designação Cassequel antigos moradores dizem não saber de concreto a sua origem. “Não sabemos muito bem de onde surgiu o nome do bairro. Já procedemos a várias investigações mas, nada. Uns dizem que é pelo facto de o bairro, naquela época, possuir muita areia, mas eu discordo, porque essa área nunca teve muito areal”,  diz Júlio Guilherme, que tem 50 anos de vivência no bairro.

Alfredo Pinheiro Luguenda, outro morador antigo, proveniente do processo de realojamento do Prenda (zona do Margoso) diz que os primeiros habitantes eram proprietários de lavras, que,“segundo relatos, quando se dirigiam às lavras falavam ‘tuyeto ku sequele’, que em português significa ‘vamos à areia ou ao areal’. Depois incluíram o prefíxio ‘ca’ e passou a ser Cassequel”.

Pesquisas aturadas feitas pela nossa reportagem não conseguiram descortinar a origem  do nome desse antigo bairro, que no tempo colonial tinha, concretamente na rua 7, um dispensário da tuberculose.

No que concerne à educação, os garotos que residiam no bairro recebiam  aulas numa instituição denominada Escola do Só Padre, ligada a Igreja Católica. Esse estabelecimento de ensino veio mais tarde chamar-se Escola Branca. Além dessa instituição de ensino havia outra que se chamava Escola 24, que se situava na esquina entre as ruas 19 e 21 e que ficou também conhecida por Escola Nova.

Naquele tempo (colonial) os garotos gostavam de ir assistir às corridas de motocross  onde hoje está o Terminal de Passageiros Domésticos. Além desse entretenimento, os jovens tinham como divertimento ir brincar na lagoa do “Tchubum Tchubum”, lá para os arredores do hoje conhecido Bairro do Catinton. Conta um ilustre ex-morador do Cassequel, que insistiu em manter o anonimato, que o nome da lagoa deveu-se ao facto de que quando alguém atirasse uma pedra à agua ela entrava e saía com o som característico: Tchubum Tchubum.

Outra nota curiosa: há quem diga que a designação Catinton veio do som que saía das manilhas, quando os garotos arremessavam pedras sobre elas. “O eco produzido nessas manilhas dava o som de “tim tom” e ao aumentarmos o prefixo “ca” dá literalmente “pequeno tim tom”, disse Marito, filho do finado Rabo Azul,  que era alvo de muita estiga (bullyng) da criançada. 

Além de irem à lagoa do “Tchubum Tchubum”, os adolescentes gostavam de caçar pássaros nas “kisasas” (matagal) do Catinton, sempre com o desconforto de saberem que quando regressassem a casa a surra “já estava programada” pelos progenitores.

Havia também o cinema volante que acontecia quinzenalmente no largo adjacente à antiga loja do senhor Fernandes Gonçalves, junto ao ex-Supermercado Lourenço. O cinema volante era uma produção da Igreja Católica, com os filmes a serem exibidos numa mini camioneta adaptada com equipamentos de projecção. A tela era implantada  em dois tubos fixos de quase dois metros de altura.

Para assistir aos filmes, os habitantes levavam obrigatoriamente as suas cadeiras para melhor acomodação. Os filmes mais aguardados eram as coboiadas (famosos bangue bangue), sobretudo os que envolviam os “peles vermelhas” e os “caras pálidas”.

Ilustres figuras

Em termos de entretenimento não era tudo. Os habitantes do Cassequel  tinham também o Kutonoca, para onde eram convidados músicos de renome, como David Zé, Urbano de Castro, Sofia Rosa, António Paulino e Vum Vum, só para citar esses. Os garotos saiam de lá satisfeitos, pois amealhavam  algumas moedas.

“Como o palco era de madeira, quando os fãs de determinados músicos em atuação  atirassem as moedas, algumas delas passavam pelas fissuras nas madeiras do palco e nós, por baixo, apanhávamos as moedas”, conta Marito.

Com essas moedas (cinco tostões, dois, um e meio escudos) já dava para comprar qualquer coisa para enganar o estômago. Os “mata fome” da altura eram o bolo rocha, a queijada, o pé de moloque, a quifufutila  e outras iguarias.

O complexo do Clube Desportivo ASA era outro local ideal de diversão, muito frequentado pela rapaziada. Nesse estabelecimento desportivo era possível assistir a filmes em matinés e soirés. O local tinha como porteiro o senhor Sardinha, que era coadjuvado por um jovem chamado Geremias, que morava na Calemba. 

O bairro Cassequel contava com uma agremiação desportiva denominada Clube Desportivo Os Dilangue, no qual pontificaram grandes craques como Carlos Queiroz, ex-treinador do Petro de Luanda, Kudiangonguenha e Pedrito, este que jogou a ponta de lança no ASA, entre outros. O clube tinha como presidente o senhor Lourenço Gonçalves.

 

Mais figuras ilustres

No tempo colonial, o bairro tinha alguns comerciantes lusos, como foi o caso do senhor Fernando Gonçalves, (antigo proprietário do Supermercado Lourenço), senhor Rodrigues e Só Martins, que foi dono da Loja Verde, Só Fernando e senhor Braga. Este último sofria de asma e tinha plantado um jardim particular em frente da sua residência, na curva onde  hoje está implantado o Hotel Término.

Além destes comerciantes, a circunscrição tinha outros moradores de referência. Tratam-se, por exemplo, dos cotas Maninho, velho Zangungu (ex-rei do carnaval, no grupo Kabocomeu, do Sambizanga), Luís Eduardo “Rabo Azul”, Velho Balão, Cota Lena, Cota Cristóvão “Waiawaia” nacionalista do 4 de Fevereiro, tio Cristo, pai do Féfé, o pai do Man Cue, o Tio Guigui, o Man Pelé da rua 15, Manuel Guilherme, pai do Beto Spará, Viriato, pai do Zeca Dilangue, Miguel da Taag, tio Joaquim, tio Raimundo,  Dona Berta, Dona Sarita, Isabel Martins, e  Isabel Charuto, os Piedade. Enfim, a menção de todos os moradores ilustres do Cassequel ocuparia uma edição inteira do jornal.

Dos cotas daquele tempo destacam-se ainda (só para acrescentar mais alguns) o tio Lemos, o velho Menezes, Netinho, Antoninho da Belita, Só Trosso, pai do Honorato Trosso, Jacinto Lemos, Afonso Silva (topógrafo), cota Matias o grande sapateiro do bairro, Dona Esperança mãe do Lubas e Dona Augusta, esposa do cota Santo António.

Dona Esperança, que é mãe do Jacó,  tinha naquela época uma mão de causar inveja quando produzia as deliciosas iguarias como o pé de moleque, o pirlito, o doce de coco e outros biscoitos. Mais tarde, ela enveredou pelo negócio da  kissangua e do kimbombo.

Na circunscrição também residiam, no tempo colonial, renomados músicos da nossa praça. São os casos do Rei Elias Dia Kimuezo, Santocas, Lito Graça (filho da Dona Andreza),  Cirineu Bastos e  Xabanu. Esses dois últimos ainda permanecem no bairro.

Existiam ainda no Cassequel outras figuras proeminentes  como o  Rui Zé, Manecas e Russo (do motocross), Madocas, São Polaco, Romualdo, que jogou no ASA, Pedrito Lukombo, Zé Dilangue, Chiquitinho, Dédé, que jogou futebol no Atlético e mais tarde foi para Portugal, Cota Nandinho, Manzenas, Rui Sovaco, Mitó e Luís Cão, antigo guarda-redes do Progresso do Sambizanga.

Importa salientar que o cota Santo António era o grande discotequeiro do bairro, uma vocação que trazia já desde os tempos em que morou no Bairro Indígena. O cota tinha um arsenal de discos de vinil com canções de grandes músicos da época. Era de causar inveja. O seu filho seguiu-lhe as pegadas e hoje é um dos Djs de referência em Luanda.

No Cassequel do tempo colonial havia também um grande lutador das bassulas. Tratava-se do Lubas, homem muito temido por causa da sua agressividade. O indivíduo lutava muito, tinha o hábito de bater todos, chegou uma certa altura que ninguém ousava enfrentá-lo em contendas.

 

Pós-independência

Já no pós-independência destacam-se o Chikinho, Luís Matias, Morais, Tininho, Lula, Nekito, senhor Barbosa, soba do bairro que vive actualmente no Cassequel do Buraco, Marito, Joãozinho Melingo e Kinkim. Este último era um promissor basquetebolista que teve o infortúnio de perder um braço num acidente de viação.

Contam alguns moradores que atingiram a maioridade no pós-independência que o quintal do aeroporto era um dos lugares predilectos para as suas brincadeiras de infância e adolescência. Iam brincar nos aviões estragados do tempo colonial e subiam e desciam às corridas nas montanhas artificiais que abrigavam aviões de guerra. Uma das brincadeiras favoritas do pessoal dessa geração era desafiar a ventania que saía das turbinas dos aviões que iam ganhar balanço no princípio da pista. “Xê, estou xenenê, estou xenenê”, gritavam os garotos, no cúmulo da irresponsabilidade.

O pós-independência revelou outras grandes figuras. Aliás, o Cassequel é o viveiro de muito boa gente que hoje singra em vários campos da vida nacional. No bairro moraram grandes figuras da política, do desporto, do jornalismo e da cultura.Houve uma altura em que o bairro tinha uma vida tão intensa, com torneios de futebol e básquete infanto-juvenil, organizados pelo Duducho, as competições que envolviam os moradores do Cassequel do Buraco, Mártires de Kifangondo, Calemba, Bairro da Polícia e Cassenda. Os intercâmbios com o pessoal do Bairro Popular...


Som ensurdecedor  

O barulho ensurdecedor dos aviões que levantavam voo e dos caça-bombardeiros da Força Aérea que voavam baixinho eram uma marca registada do Bairro Cassequel. Aliás, a maioria das casa acabaram por ficar rachadas (lembram-se dos lamentos de Santocas na canção “Rebocho Vaz”?).

“Era tanto o barulho que mal conseguíamos dormir. Houve casos de moradores que devido ao barulho das aeronaves contraíram problemas de audição. Havia momentos em que os aviões levantavam voo aqui, nessa cabeceira da pista que próximaàs nossas casas. Como o tecto das residências era de zinco, o barrulho tornava-se mesmo insuportável”, disse  Júlio Guilherme.

Mas isso não foi motivo suficiente para afugentar os  moradores, que a dada altura começaram a habituar-se e a controlar essa situação delicada.

 

Episódio trágico

 

Relatos sobre a justificação do nome Cassequel do Lourenço, atribuído na década de ‘80, indicam que tem a ver com um trágico episódio. O Supermecado Lourenço era um dos estabelecimentos comerciais de referência em Luanda. Lá vendia-se de tudo um pouco, incluindo pacotes de leite da Lactiangol.  Não é que num belo dia o motorista de um camião militar de marca “Ural” perdeu a direcção e atropelou mortalmente dezenas de cidadãos, a maioria crianças, que estavam na bicha do peixe e do leite? A tragédia deixou marcas tão profundasque alterou a toponímia do bairro para Cassequel do Lourenço, que até então se chamava Cassequel Um.

Impôs-se de tal maneira esse nome que as autoridades não tiveram outro remédio senão adoptá-lo oficialmente. Até hoje a população continua a diferenciar o Cassequel do Lourenço do Cassequel das 40 e do Cassequel do Buraco.

 

Outros Cassequéis

O governo colonial português, depois de ter construído o bloco de casas cor-de-rosa no Cassequel das 40, partiu para a construção de moradias num declive circundado por ravinas.Essa zona viria a chamar-se Cassequel do Buraco. Nos anos ‘70 o Cassequel do Buraco era quase desabitado.  

Segundo projectos de construção de moradias sociais deixados pela administração colonial, as obras evoluiriam depois em direcção ao actual Bairro Catinton. Ainda hoje são visíveis as manilhas para o saneamento básico implantadas para dar continuidade à empreitada, com o fitode albergar populações que residiam nas zonas de risco da cidade de Luanda.

Na famosa avenida Dom Moísés Alves de Pinho circulavam os machimbombos números 25 e 34, saídos  do Largo da Mutamba ao Cassequel do Lourenço e ao Cassequel do Buraco (e vice-versa). Otrajecto foi depois desviado devido à construção de uma unidade militar dos cubanos na área adjacente ao Supermercado Lourenço. 

 

O Cassequel do Lourenço faz fronteira com as localidades da Calemba, Mártíres de Kifangondo e Bairro Popular