Reportagem

Semba, os prós e contras de um género que se quer Património da Humanidade

Fez um ano no dia 13 de Dezembro desde que o Ministério da Cultura, na voz de Carolina Cerqueira, colocou o Semba no pedestal de candidato a Património Imaterial da Humanidade.

30/12/2019  Última atualização 19H13

Anúncio de alto valor pátrio, a então ministra da Cultura fê-lo no final da reunião da Comissão Nacional Multi-ssectorial para a Salvaguarda do Património Cultural Mundial, que decorreu na Cidade Alta, orientada pelo Vice-Presidente da República, Bornito de Sousa. Antes, este desígnio não passava de murmúrio de bastidores. 

Curiosamente, no dia 11 deste mês a Morna foi oficialmente classificada a Património Imaterial da Humanidade. Antes, por via do Parlamento, em Fevereiro de 2018, Cabo Verde se unia na data de 3 de Dezembro, instituida como Dia Nacional da Morna, em homenagem a Francisco da Cruz, mais conhecido por B. Léza, considerado um dos maiores compositores deste género. O empenho logrou.
Por cá, ainda nada oficial foi avançado, embora a classe musical anseie pelo reconhecimento nacional, cujas propostas oscilam entre um Dia Nacional do Artista ou Dia Nacional do Semba.
Porém, neste intervalo de um ano, dois eventos pressionaram positivamente o rumo dos acontecimentos, nomeadamente, as celebrações do centenário de Liceu Vieira Dias, organizado em Maio, pelo Centro de Estudos da Universidade Católica de Angola, e que reuniu conferencistas oriundos de diversas latitudes, e o Primeiro Workshop Sobre o Semba, organizado pelo Centro Cultural do Rangel “Njinga Mbande”, em Agosto.
No primeiro, mais uma vez ficou evidenciado, na figura deste que é sobejamente reclamado “pai da moderna música angolana”, como a música, neste caso particular o Semba, foi fundamental na Luta de Libertação Nacional. No segundo, vocacionado para analisar os estádios do Semba e a sua posição dentro da cultura nacional, a voz desta classe artística manifestou a falta de uma data que legitimasse a celebração da música nacional.
Nos debates, a discussão continua latente, uns bradam a favor de uma melhor condição para o artista, outros apontam a reconfiguração do mercado artístico, outros ainda reclamam da tardia transversalidade temática na produção de investigação universitária.
Primeiro a dar a voz à nossa reportagem, Carlos Lamartine acautelou, assumindo nunca ter feito música por profissionalismo, mas somente “por hobbie”, em consequência do “ambiente cultural”. Para já, do assunto em questão, disse não ser apologista de um dia nacional do semba. Na sua visão, acredita que tal ovação diminuiria a importância da contribuição dos vários sectores que estabelecem a verticalidade do tronco comum, que é a música. “Eu sou pelo Dia Nacional do Artista Angolano”, defende.
Concretamente, acusa o vazio de não haver qualquer dia da valorização do artista angolano, contribuinte distinto na conservação dos indicadores natos da cultura nacional.
“Parece-me que nós precisámos de trabalhar nesse sentido por vontade própria. Os artistas, através das suas instituições associativas, podem trabalhar para levar ao Ministério e este, por sua vez, levar as nossas preocupações ao Parlamento, de forma a que haja uma legislação sobre o assunto”, opina.
Porém, questionado se o 8 de Janeiro cobre ou não a sentida orfandade de um dia do artista, Lamartine responde que a data não satisfaz a pretensão, dado que envolve, naturalmente, todos os artistas, nas suas diversas especialidades. “Mas não é a especificidade do dia. Nós precisamos é de um dia nacional do artista”, enfatiza.
Quanto à possibilidade de se escrutinar uma figura cuja data de nascimento ou morte seja escolhida para a grandíloqua homenagem, reconhece que sugerir nomes suscita um grande debate e aponta como vislumbre do que pode vir ser, numa escala nacional, a polémica discussão levantada durante o workshop sobre o Semba, concernente à indicação de uma personalidade a quem se pode render homenagem.
“E acho que não há consenso…”, pondera. Na sua visão, corre-se o risco de se reduzir a indicação dessa data a uma figura.
“O Liceu Vieira Dias é um Kimbundu. Naturalmente, representa esta área, particularmente, os da região urbana de Luanda. Não é reflexo generalizado dos Kimbundu. Manuel de Oliveira é representante da província do Zaire, pelo que não espelha a realidade do conjunto de províncias que Angola possui. José Oliveira de Fontes Pereira “Malé Malamba” também é Kimbundu”, aponta.
Lamartine suspeita que estas escolhas possam desembocar numa espécie de particularização do Kimbundu para dominar a cultura do dia do artista. De resto, espera que esta ideia seja amadurecida, num horizonte temporal que aponta não talvez para o próximo ano, tampouco para daqui a 10 ou 20 anos, mas espera que tenha consenso o mais breve possível.
Contudo, a sua preocupação levanta a possibilidade de o semba estar a ser prejudicado por ter ou não maioria Kimdundu, não sendo, para já, um critério objectivo. Sobre isso, Lamartine dissipa eventuais equívocos, alertando que isso não é um problema que deva merecer “um certo preconceito” e que tal só teria cabimento para quem desdenha a música angolana de raiz africana.
“Porque o Semba, hoje, do ponto de vista da sua identidade, é uma música reconhecida pelo país. Essa migração provocou isso. Penso que o Semba é a música que tem, nesse momento, projecção e reconhecimento internacional. Ainda no tempo da escravatura, o Semba foi levado para o Brasil, nas suas mais diferentes formas, que perduram até aos dias de hoje. Os artistas angolanos, no quadro do seu relacionamento com o mundo, possibilitam que Alcione, Tito Paris, Martinho da Vila e outros o cantem”, justifica.
Se este dia do artista traz esperanças para um tributo há muito reclamado para os cultores de Semba, Lamrtine diz que, “apesar do bloqueio imposto pelos meios de comunicação social”, o Semba não morreu e não vai morrer nunca.
Logo, se um dia se concretizar a promulgação do dia nacional do artista, espera recordar efusivamente figuras singulares, entre elas Kiavulanga, Catarino Bárber, Manuel Faria, Male Malamba, Ngola Ritmos e vários artistas que passaram por diferentes conjuntos e momentos da História da Música Popular Angolana.
“Naturalmente, essas figuras terão a oportunidade de ser homenageadas. O dia nacional do artistas pode resolver esta questão. Se calhar, também podríamos fazer um símbolo visível, um busto ou um momenumento, para recordar essas figuras que muito contribuíram na luta da Independência, preservação das nossas fronteiras ou qualquer estágio da nossa vida política e social”, precisa.
Por outro lado, Lamartine não se junta ao coro dos que se mostram cépticos à ideia de elevação do Semba a Património Imaterial da Humanidade. O músico crê piamente que “não foi de forma aleatório que esse pensamento veio à cabeça de Carolina Cerqueira”.
“Penso que reagiu em função da pressão, porque o Semba é mesmo uma palavra que não pode morrer na consciência dos angolanos. É um factor de identidade cultural. É uma marca de um povo. Essa intenção é bem vinda e sou de opinião que o Governo angolano deveria trabalhar no sentido de eleva-lo já a património nacional, o que até ao momento não está feito”, assevera.
Depois da sua consagração a nível nacional, Lamartine espera que pesquisadores de áreas afins possam reunir amostras indiscutíveis do que é de facto o Semba, resultante de um processo de investigação rigoroso, para que não hajam dúvidas da participação deste estilo no processo de construção da humanidade.
Do sonho à realização, não esconde as suas reservas, dado que a realidade ainda deixa muito a desejar. Para si, o Ministério da Cultura tem essa responsabilidade, não devendo jamais deixar passar as propostas que faz à população.
“Precisa de divulgar esse interesse. Eu sou de opinião que não basta a generalização, mas sim a massificação. E a nova geração, desde a fase infantil até à adolescência, deve fazer uso dos instrumentos”, sugere.

“O Semba ainda tem hipótese”

Já Dionísio Rocha aplaude a iniciativa mas, independentemente da nobreza da intenção de se tornar o Semba Património Imaterial da Humanidade, analisa-a como tardia.
“O Semba ainda tem hipóteses, mas não está a ser publicitado como a Kizomba e quem está a fazer isso somos nós, os angolanos, que não queremos promover o Semba", disse.
Preocupado com a massificação, Dionísio Rocha aconselha ser imperioso jogar com o tempo, dado que antes foi patrocinada uma forte campanha de promoção mundial da Kizomba, quando essa seria a grande oportunidade para o Semba, mas que, infelizmente, foi desperdiçada. Para o músico, Ignorou-se por completo que o semba foi sempre a grande bandeira nacional, quer se admita, quer não.
Relativamente à reclamação sobre o Semba não ser o único género do país, Dionísio recorda que esta é uma discussão que já vem sendo debatida oficiosamente. Nestes casos, a réplica que tece, com fundamentação sociológica, para os seus colegas músicos e outros que assim questionem, é a de não se esquecer que o Semba foi criado na zona de centro, onde primeiro se desenvolveu a televisão e a rádio.
“No inicio da década de 60, em todo mundo surge uma explosão musical. Podemos ver que temos os Beatles, Elvis Presley e outros a atingirem a consagração mundial. E nós também tivemos essa mordidela. Tínhamos um Liceu vieira Dias, que tinha escutado os sons de alguns instrumentos ao longo da fronteira entre Angola e o Congo, passando depois também pela zona de Malanje, absorvendo a marimba, kissanji, hungu e traduziu isso em melodia de viola. E assim vem cá para Luanda, de onde os pais eram naturais, não obstante ter nascido na fronteira com o Congo, trouxe para cá esse ritmo. Depois, agrega-se à batucada de Xodô e isso se tornou popularizado em Angola”, explica.
Porém, compara Dionísio, nas outras províncias não houve a massificação permanente dos seus ritmos, para que se pudesse equiparar ao Semba. Contextualmente, o Semba foi tomando proporção internacional, tanto que era quase obrigatório chegar a países como o Brasil e a plateia pedir ao artista, não importava quem fosse, que cantasse “Muxima”.
Na leitura que faz dos factos do passado, Dionísio conclui que isso é resultado da massificação desses nossos números musicais, facto que não pode permitir a leitura da inexistência de outros géneros musicais angolanos igualmente ricos, mas que exige a decência de se perceber que apenas se popularizam regionalmente.
Sobre ser ou não polémico apontar uma figura representativa para um possível dia nacional do artista ou do Semba, não titubeou: começou a lista em Liceu Vieira dias.
“Um deles é o próprio Liceu Vieira Dias, que eu considero o ícone da música angolana ou do Semba, pelo menos. Podemos aproveitar tanto a data do nascimento ou da morte. Outro nome seria o de Alberto Teta Lando. Para além destes dois, há um leque de músicos, como é o caso de todo o conjunto Ngola Ritmos, porque não pode ser só o Liceu”, indica.
A fazer a lista, Dionísio inclui Elias Dya Kimuezo e reclama que este tem sido colocado de parte. No caso de se fazer recurso à historia, admite que Elias deve ocupar um lugar de destaque, visto que foi o primeiro a atingir a apoteose máxima do Semba.
“A primeira vez que ele surge foi na inauguração do Cine Miramar, quando veio cá a saudosa Angela Maria e esta pede que queria cantar com o rei da música angolana”.
Conta que a saga da proclamação de Elias a “Rei da música Angolana” começa ao ser escolhido a dedo pelo empresário Luís Montez. No dia da actuação, Elias veio com uma indumentária de encher os olhos, distinta e cerimoniosa, e a artista saiu daqui segura de que tinha cantado com o rei, e desde então que Elias é o rei da música angolana. “Elias deveria constar na lista dos sondados”, reclama.

Liceu, Sofia Rosa, Manuel de Oliveira e mais

O percussionista Raúl Tolingas diz haver uma geração do Semba que deve ser levada em conta, apesar de “estar ofuscada por décadas”. Sobre a figura a quem se deve render a máxima homenagem, Tolingas aconselha as vozes decisórias a pautarem por uma escolha justa, abrangendo também os percussionistas.
“Sou pelo Liceu Vieira Dias. Mas por que não o Sofia Rosa? Nunca cantou em português. Tem música de alta qualidade, um semba indiscutível. O único que cantava no N´gola Cine sem microfone”, recorda.
Voz de grandes sucessos da nossa praça, Dom Caetano adverte, por seu lado, que esta discussão deve, antes de qualquer critério, seguir um caminho pedagógico, para que se passe um legado exemplar à nova geração.
“Sugiro a data de nascimento ou morte de Manuel de Oliveira. Porque foi o primeiro a criar um grupo musical, o São Salvador do Kongo, que introduziu na música popular a sua guitarra. Agrego também Malé Malamba e Liceu Viera Dias ou a data de criação do Ngola Ritmos. Seriam boas propostas para acharmos o consenso”, sentenciou.
Homem de notoriedade no vasto campo da cultura angolana, Roldão Ferreira começa por apontar Manuel de Oliveira “Mayunga". “Porque foi um dos percursores da música congo-angolana. Ele vai atrás do pai, que trabalhava nas minas de carvão em Matadi, e ali cria, com a sua guitarra, sons dos instrumentos nacionais”, justifica. No seu leque de escolhidos seguem-se Malé Malamba e, naturalmente, Liceu Vieira Dias, como figura representativa do Ngola Ritmos.
Letrista levado em grande consideração, para Xabanú a primeira escolha recai sobre Liceu Vieira Dias. Junta também Malé Malamba e Sofia Rosa. Também Cirineu Bastos defende Sofia Rosa, que, em Benguela, fora apelidado de “Rei do Subúrbio”, e Liceu Vieira Dias. Porém, ressalva não ser de opinião que essa escolha se configure numa “pessoalização da data”.
“Podemos sim pensar num grupo. Agora, também não é justa a suspeita de uma certa regionalização. Vejamos o Samba, que é património mundial e nem por isso é a totalidade dos géneros musicais do imenso Brasil”, observa.
Para si, esta suspeita não tem razão de ser, porque "temos casos de cantores cujas origens musicais não se revêem no Semba, mas tanto cá dentro do país ou lá fora necessariamente cantam semba”, pontua.
Também chamado a opinar sobre um nome a quem coubesse tamanha honra, Belmiro Carlos alegou, por seu lado, haver "outras coisas para discutir”. O guitarrista defende que há gente a morrer de fome porque escolheu ser artista e não tem trabalho, nem respeito, nem consideração.
Quanto ao estado do Semba, Belmiro diz que “está moribundo” e atira a culpa aos órgãos competentes, por não terem gizado um projecto sólido de massificação deste género musical.
“O Estado tem de assumir o assunto como de Estado, sem titubiezas. E não é preciso chamarem consultores estrangeiros para fazerem isso. Isso faz-se com vontade política assente em processos de inteligência que o angolano sabe e consegue fazer”, defende.
A sua crítica estende-se ao desejo de se elevar o Semba a Património Imaterial da Humanidade, que ainda não está num rumo idêntico ao da morna de Cabo-Verde, género popularizado em todas as franjas da sociedade local.
“A morna toca todos os dias nas farras e nas rádios e televisão cabo-verdiana. Os mais velhos, mais jovens e crianças cantam a morna. São ensinados a fazer isso. Há escolas disseminadas pelas ilhas. O nosso problema é endémico ao sistema. O país foi engravidado de discursos e acções estéreis”, critica.
Lamartine, que foi praticamente o “cérebro” do primeiro workshop sobre o Semba, também comunga da ideia de Belmiro na crítica ao estado actual deste género musical, que se reflecte, grosso modo, na cultura nacional. Disse que a acção formativa incidiu sobre uma intenção pública de reposição da importância da manifestação cultural dos angolanos, particularmente aquelas que lhe definem a identidade e que tem a ver com o seu perfil, para que se entenda e se evitem os grandes equívocos, tanto dos fazedores tanto da imprensa.
Dentre os muitos casos levantados no evento e que espelham a ignorância sobre um produto que nos identifica, Xabanú foi categórico, ao separar que nem todos fazem essencialmente Semba e que isso não os impede de ter uma vida “à sembista”, um assunto já levado a debate enquanto género musical e estilo de vida.
“Por exemplo, não vamos dizer que o Bangão era um fiel cultor de Semba. Ele era um exímio criador de rumba, mas um grande defensor do Semba. Vivia à maneira do sembista e poucos elevaram essa condição como ele ”, frisou o compositor.

Bonga: “Sem campanha entre nós, vai ser difícil...”
Bonga foi peremptório quanto ao que pensa sobre o anúncio da intenção de um dia o semba ser proposto a Património Imaterial da Humanidade.
"Património são aquelas tocatinas feitas por aqueles velhos que se interessavam, naquelas turmas dos anos 1960, mesmo na presença do inimigo maior, que nos proibia a execução dos nossos instrumentos tradicionais. Património é valorizarmos o que é nosso em todas as circustâncias da nossa vida", define.
Entre os responsáveis, deixa "recados" à comunicação social, visando, no momento, a televisão, a quem deixa a veemente exortação.
"Faz favor, passa a nossa música, o nosso semba, tanto na hora dos desfiles de miss como no momento em que temos grandes convidados que nos encontram, desde eminentes figuras políticas ou sociais”, apela.
Para os requisitos que podem levar a candidatura a obter resultados desejados, pontua que terá de haver uma cumplicidade que classifca por “tremenda”.
"Mas tem de ser nós todos a valorizar. Enquanto não houver uma grande campanha entre nós, vai ser muito difícil. Eu lamento muito que a rebita desapareça, como vão desaparecer outros ritmos, vertiginosamente. Mas o semba não acredito muito, porque é como o samba no Brasil ou o tango na Argentina", defende.

O Semba deve primeiro ser declarado Património Cultural Imaterial Nacional

Desde Dezembro passado que se tornou público a intenção ministerial de propor o Semba a Património Imaterial da Humanidade. É uma decisão que já vinha sendo ponderada?

Sim. Há já algum tempo que o Ministério da Cultura vem reflectindo sobre as formas de promoção e de salvaguarda do género Semba. Há algumas ideias a esse respeito. Mas, para lá da visibilidade e do reconhecimento internacional do género Semba, temos desenvolvido estudos essenciais ao reconhecimento nacional, que deverá acontecer muito brevemente, considerando-se este passo como o ponto de partida para a sua salvaguarda e valorização.

O que de facto é preciso para que o Semba seja elevado a Património Imaterial da Humanidade?
Como disse antes, a primeira condição é a sua declaração como Património Cultural Imaterial Nacional, tendo como foco principal o seu aspecto identitário em relação à cultura nacional. Depois, precisamos de fazer uma ampla pesquisa documental, amparada em depoimentos revelantes para a história e realidade concreta do Semba. Essa fase, tecnicamente, a designamos por “inventário”, que, por sua vez, é um pré-requisito para qualquer passo que se pretenda dar.

Temos hipótese?
O que lhe posso garantir é que estamos neste momento a trabalhar ao nível do reconhecimento nacional e que só depois disso é que poderemos identificar, de um lado, as fragilidades, os obstáculos e os desafios e, de outro lado, as oportunidades e potencialidades inerentes a uma candidatura para a lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, que é aquela onde entendo que se enquadraria, efectivamente, o Semba. Resumindo e concluindo, não foi elaborada nem apresentada ainda qualquer candidatura.

Mas, no fundo, que razões objectivas contariam para a sua possível candidatura?
Como sabe, o Semba destaca-se dentre os outros elementos de expressão artística angolana, pela sua concepção original, que a torna singular. Em segundo lugar, faz parte de narrativas de eventos políticos que muito contribuíram para a conquista da nossa Independência. Em terceiro lugar, o Semba deu origem a outros ritmos e formas de dançar; conseguiu sobreviver e hoje permanece como uma verdadeira herança viva da nossa sociedade, tornando-se, modéstia à parte, num dos mais conhecidos géneros de música e dança urbana do mundo. Parece que esses argumentos, conjugados entre si e para além de muitos outros elementos a associar, podem fundamentar o seu reconhecimento nacional e, eventualmente, internacional. Agora, é preciso entender que a sua possível candidatura à lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade não pode ser entendida como o centro do desafio. Há necessidade de se desenvolver um plano de salvaguarda e de promoção, montar equipas multidisciplinares e equipamentos. Isto significa gerar condições para salvaguardar e valorizar o Semba.

Acusa-se escassez de bibliografia. Não será isso um empecilho?
A falta de documentação é sempre um empecilho na formulação de qualquer processo. Ou seja, até mesmo para o seu reconhecimento nacional, é essencial uma boa base documental. Em relação ao Semba, pode não ser abundante, mas posso garantir que é possível reunir uma boa documentação e bons testemunhos ou depoimentos que nos permitam desenvolver uma boa fundamentação para ser declarado Património Cultural Imaterial.

Pode, por exemplo, esta intenção facilitar o diálogo entre Ministério e historiadores, antropólogos, literatos e jornalistas a um engajamento e contribuições para a periodização sustentável da História da Música Popular Urbana de Angola, com realce para
o Semba?
O diálogo é a forma de comunicação que orienta as intenções, propósitos ou processos desta natureza. Logo, não passaria pela nossa cabeça dar um possível tratamento de reconhecimento do Semba sem uma ampla participação da sociedade e consultas prévias aos fazedores. Sim, estamos abertos ao diálogo com todos os intervenientes neste processo, de acordo com as especificidades de cada olhar ou saber disciplinar.

Sente-se também a falta de um grande festival de Semba. É desta que teremos?
Francamente, não lhe posso dar essa garantia, mas de certeza que é um dos pressupostos do Plano de Salvaguarda, que fica alinhado com várias acções que visariam a valorização do Semba.

Cabo Verde avançou, consensualmente, com uma data nacional da Morna. Já se cogitam propostas para um Dia Nacional do Semba? Ou não será preciso?
Tanto quanto saibamos, não se cogitam ainda. Mas nada impede que assim se pense. Achamos que sim, se pode fixar uma data comemorativa do Semba. Temos várias opções, visto que poderia ser, por exemplo, a data do nascimento ou da morte de um dos exímios músicos ou compositores do género Semba. O importante será colectar, nos debates públicos, os devidos consensos…

Existem vozes da sociedade que desejavam um museu da música popular urbana angolana, onde, seguramente, o Semba se destacaria. O Ministério pensa alguma coisa a esse respeito?
Um museu da música seria de facto um espaço de divulgação e de consultas sobre os vários géneros da música angolana, particularmente do Semba. Ainda que não seja “necessariamente necessário” ou obrigatório, para o processo de reconhecimento, sabemos que seria uma instituição que daria substância ao processo de valorização do Semba, considerando-se a sua função social e cultural.

Não deveria ser uma prioridade?
Achamos que sim, assim como achamos que seria prioritário também construir museus de outras especialidades e finalidades. Por exemplo, pensarmos num museu da cidade (de Luanda), de arte contemporânea, de arte antiga e outros… Para definirmos a pertinência ou não da criação de um museu da música é preciso avaliar os recursos disponíveis, elaborar projectos, perspectivar acções de recolha de acervo da especialidade. E é preciso saber, claro, que uma decisão desta natureza envolve grandes desafios. Nestes casos, deve-se discutir bastante, até encontrar opções que atendam ao maior número de pontos de vista, pra não falar de outras questões de ordem financeira e organizacional.

A diáspora tem vivido momentos efusivos, principalmente no que toca à dança. Tem alguma política em tornar também a música melhor consumida lá fora?
O género, dança e música, Semba é uma manifestação intimamente ligada à nossa cultura popular, mas que nas últimas décadas foi “transnacionalizada” e se transformou em género ligado à indústria e ao espectáculo cultural, um pouco por todo o mundo. O nosso desafio, no âmbito da política cultural, é resolver certas contradições entre a necessidade de se dar visibilidade ao Semba – valorizá-lo, dando-lhe, por sua vez, sustentabilidade económica, social, ambiental e cultural – e os desafios da sua salvaguarda enquanto Património Cultural Imaterial angolano. E as notícias que temos são que ela, a música, é bastante consumida dentro e fora do país.

Que outros géneros poderão vir a ser considerados também Património Imaterial angolano?
Começamos pela Rebita, que foi recentemente reconhecida e muitas outras manifestações podem concorrer…

Há um certo entusiasmo sobre bens culturais elegíveis?
Em parte. Temos acompanhado, nos últimos dias, com alguma preocupação, uma “overdose” de intenções e opiniões sobre a candidatura de bens na lista do Património Mundial, sobretudo depois da inclusão de Mbanza Kongo (Vestígios do antigo Reino do Kongo), em Julho de 2017. De lá para cá, o que se observa é uma busca desenfreada pelo galardão de “Património da Humanidade”, consubstanciada no desejo de transformar tudo o que há em Património da Humanidade. E, como dizia, aproveitando a sua questão, gostaríamos de esclarecer que nem tudo que é classificável à escala nacional deve ou pode concorrer a Património da Humanidade. Cada coisa no seu devido lugar.

Que instrumentos dispõem para a salvaguarda do Património Imaterial?
Contamos com as orientações internacionais da UNESCO, através das “Cartas” e “Recomendações” ou “Convenções”, desde a aprovação da Convenção de 1972, do Património Mundial, passando pela Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular do Mundo, em 1989, e a Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial, em 2003, que são instrumentos essenciais para o tratamento das matérias relativas ao Património Cultural Imaterial. Mas também contamos, no âmbito do nosso ordenamento jurídico, com a Lei 14/05, conhecida como Lei do Património Cultural, e ainda contamos com um outro instrumento que é a política cultural. São, na verdade, esses os instrumentos que advogam a imperiosa necessidade de se proteger e valorizar o Património Cultural Imaterial. Nesse conjunto de documentos, encontramos recomendações neste domínio, permitindo que várias acções constem do programa do Governo que visa a materialização da sua salvaguarda. Mas é preciso entender que essa responsabilidade é tão vasta e complexa, que implica que cada um de nós, enquanto herdeiro e protagonista desse património na comunidade, tome parte dela.