Opinião

Os nacionalistas e o surto de conjuntivite

O nacionalista levantou-se da cama a ver fusco. Com os pés descalços sobre o tapete de veludo, no chão, por um instante pensou que fossem as cortinas do quarto ou que entre o nevoeiro e o devaneio fosse uma sacanice do sonho que, porventura, estivesse a sonhar. Não era uma coisa, nem a outra.

18/02/2020  Última atualização 08H58


Depois, viu o seu telefone em cima da banca, reparou que tinha várias mensagens no WhatsApp e por pouco ia pôr-se a ver o que ele ainda não vira nem sabia que era “notícia”: os vídeos do casamento da filha de um novo-rico angolano, que se viralizou nas redes sociais porque os convidados tiveram direito a massagens.
Inconscientemente, ele decidira não ver essa “verguenza” e resistiu sem sucumbir à tentação, porque, no fim de contas, pensou, o relevante mesmo era saber porquê via tão fusco, logo de manhã. Pensar só ajuda, mas não resolve nada.
Ele continuou a ver fusco, como se tivesse que descortinar objectos, seres e coisas por trás de uma cortina de água. Quis consolar-se e ele disse para si mesmo que o que estava a ver era o efeito semi-transparente do mosquiteiro, que cobria a sua cama. Mas faz tempo que já nem consegue mentir-se a si próprio. Assim que, resignado, terminou admitindo o que estava a acontecer. Tinha os olhos cheios de ramelas e caiu na real: só poderia ser do surto que, excepto o Raimundo Salvador, até hoje, ele ainda não tinha ouvido falar ou comentar entre nós em nenhum noticiário, nem telejornal, nem na imprensa escrita.
Não causa mortes como o coronavírus, nem tem merecido a devida atenção na mídia nacional, mas deveria. O certo é que a conjuntivite está a alastrar-se rapidamente entre a população, em Luanda: há muitos nacionalistas a levantar-se com os olhos vermelhos e cheios de ramela e, segundo eu soube, houve quem esteve durante uma hora nas urgências do Hospital Multiperfil na manhã de ontem e de uma só sentada a médica que lhes atendeu comentou que, antes deles, já tinham passado dezenas de pacientes com um diagnóstico similar, mas com diferentes tipos de conjuntivite e diversos graus de gravidade.
Na consulta, ao nacionalista, uma vez que a sua é uma conjuntivite bacteriana (diferente da conjuntivite viral que é mais agressiva) foi-lhe receitado o mesmo que muitos dos que ontem passaram pela consulta: para além das medidas de higiene em casa e de higienização dos cílios (pestanas) duas vezes por dia utilizando gel de banho infantil com água fresca tratada de preferência mineral ou fervida, a médica indicou um lubrificante ocular (lágrimas artificiais), uma gota de três em três horas, em cada olho, com uso contínuo e repouso por quatro dias para, em regime de recolhimento em casa, conter o contágio a terceiros.
O nacionalista regressou a casa já menos tenso e preocupado do que quando saíra, ao meio da manhã, ao hospital. Estreou a medicação enquanto recordava que a última vez que teve conjuntivite foi aos doze anos, na Ilha da Juventude, em Cuba e deixou de ver fusco: olhou para a sala à volta, a mesma que lhe acolherá nos próximos quatro dias e nem a bela lâmpada folheada em papel, no tecto da sala, os cadeirões dos sofás num estilo steem punk, o televisor desligado, as fotomontagens da espanhola Rosa Cubillo na parede e a escultura da moçambicana Reinata Sadimba no aparador, o consolaram. Decidiu almoçar para arregimentar forças e empurrar o dia.
Já na hora da sobremesa, voltou a rever cada um dos detalhes da sala em que estava e viu sobre a mesa o livro “Nacionalismo e Imaginação” da hindú-americana Gayatri Chakravorty Spivak e pôs-se a reler as páginas que sublinhara há anos, quando o lera. Daí a começar a pensar qual era realmente o tipo de nacionalistas que temos, hoje, entre nós, em Angola, não custou absolutamente nada: a maior parte deles ainda hoje são seres calados que não dizem nem querem saber de nada que importa ao cidadão comum e aos que ninguém se importa nem mesmo de alertar para o surto de conjuntivite como se quisessem que eles continuassem a levantar-se para a vida vendo-a fusca, ad eternum.
Ponhamos de uma vez por todas os pés no chão, sobre o manto de terra batida, sacudamo-nos dos maus vícios e do comodismo do passado recente que quase nos asfixiou e pensemos e vivamos a vida com mais solidariedade e imaginação para que possamos sonhar belos sonhos.
Pondo os belos sonhos de lado, saibam que a consulta médica de urgência custa quarenta mil kwanzas, os medicamentos custam vinte mil kwanzas e a água outros tantos. Resultado: diagnosticar e tratar a conjuntivite bacteriana pode custar sessenta mil kwanzas, o salário mensal de um trabalhador susceptível de contrair a doença. Ou seja, nacionalistas lúcidos, indecisos ou perdidos fiquem atentos: há aí um surto de conjuntivite que pode fazer-vos ver fusco para sempre.