Entrevista

Entrevista

Estudo revela que mais de 40 por cento da população angolana é hipertensa

Alexa Sonhi

Jornalista

Celebra-se hoje o Dia Mundial do Coração. Em todo o mundo, as doenças cardiovasculares estão entre as principais causas de morte, que ceifaram a vida de 17 milhões de pessoas em 2022.

29/09/2023  Última atualização 09H46
Maria da Gloria Costa Mawete © Fotografia por: Maria Augusta | Edições Novembro
Para se perceber melhor as formas de proteger o coração, o Jornal de Angola entrevistou a vice-presidente da Sociedade Angolana de Doenças Cardiovasculares (CADCV), Maria da Gloria Costa Mawete.

Qual é o tema da efeméride para este ano ?

Para este ano, o Dia Mundial do Coração tem como tema "Use o coração para se conectar com a saúde”

A ideia é só consciencializar as pessoas sobre a importância de cuidar da saúde do órgão?

A data foi criada em 2000, num consenso entre a Federação Mundial do Coração, que é a maior organização de todas de cardiologia no mundo. A data foi instituída para conferir mais conhecimento sobre a necessidade de se cuidar do coração e evitar as doenças cardiovasculares. Mas só a partir de 2011, é que a efeméride passou a ser comemorada de forma mais dinâmica, com palestras, seminários e outros actos, de forma a transmitir às populações mais consciência sobre a problemática das doenças cardiovasculares.

Como define o coração?

O coração é um órgão muscular oco, em forma de cone, que pesa entre 250 gramas, em crianças, e 300 gramas, nos adultos. O mesmo tem a função de bombear o sangue por todo o corpo e funciona como uma bomba dupla. O lado esquerdo bombeia sangue oxigenado (arterial) para diversas partes do corpo, enquanto o direito o sangue venoso para os pulmões. Todo o processo é feito de forma contínua.

Quais as doenças que podem afectar o bom funcionamento do coração?

Há doenças cardíacas que afectam o bom funcionamento do coração e podem ser clínicas e cirúrgicas. As clínicas são a hipotensão arterial, a fibrilação intra-auricular, a hipertrofia ventricular e as arritmias cardíacas. Já entre as cirúrgicas, as mais comuns são as febres reumáticas, devido à válvula mitral, doenças da aorta, os tumores do coração, a revascularização do miocárdio, as endocardites, as arritmias cardíacas, a aterosclerótica coronáriana e as doenças congénitas do coração, que as mais frequentes são a comunicação interventricular e intra-auricular, a tetralogia de Fallot e o defeito do septo atrioventricular, mais frequente nos pacientes com Síndrome de Down.

 Muitos cidadãos ainda confundem algumas doenças do coração. Como distinguir um AVC de enfarte ou de derrame?

O AVC (Acidente Vascular Cerebral) é a mesma coisa que o derrame, apenas tem diferença na forma como se apresenta. Quando o paciente tem AVC significa que houve um bloqueio dos vasos que levam o sangue para o cérebro, num determinado tempo, impedindo o cérebro de ser oxigenado. Existe o AVC isquémico, vulgo "trombose”, o hemorrágico, comummente chamado de derrame, que acontece quando a pressão arterial é tão elevada que faz com que os vasos do cérebro rebentam espalhando sangue pelo cérebro. Este sangue não permite que o cérebro funcione normalmente. Geralmente este é mais fatal do que o AVC isquémico, porque muitas vezes, o paciente tem de ser submetido a uma cirurgia para se abrir o cérebro e limpar os coágulos de sangue, a fim de se tentar recuperar algum tecido, e esta operação é feita por um neurocirurgião.

E quanto ao enfarte. O que acontece ao certo? 

O enfarte é uma lesão que acontece num músculo cardíaco, onde ocorre um bloqueio das veias do sangue que irriga estes músculos, fazendo com que não receba sangue e morra, causando assim o chamado enfarte do miocárdio.

Em relação à campanha mundial, como estamos hoje, particularmente, em Angola?

Hoje ainda estamos a nos libertar das sequelas da Covid-19, mas, antes disso, era notável uma certa estagnação na melhoria dos cuidados a nível cardiovascular. A cardiologia é uma área muito cara, portanto tem de haver um investimento contínuo. Sabemos que o investimento só é maior se o Produto Interno Bruto (PIB) do país, também for maior, e uma parte ser dedicada à área da saúde. Nos países desenvolvidos há um grande investimento nessas áreas, por isso, eles registam melhorias significativas nesse sector.

E como vê a realidade no país?

Infelizmente, ainda não foram feitos tantos investimentos, como as sociedades de cardiologia desejam. De forma particular, em Angola, só recentemente é que começámos a dar importância a existência dessas doenças e a necessidade de começarmos a melhorar a prevenção, diagnóstico, tratamento e no manuseamento destas patologias. Mas, com a Covid-19, o processo atrasou um pouco mais. Por isso, ainda não estamos no nível desejado, e acrescido a isso há o passado histórico cultural de não termos o hábito de falarmos dessas doenças ou conhecê-las como deve ser.

 Como estamos em matéria de consciencialização sobre a prevenção das doenças cardiovasculares?

Não estamos bem, porque os doentes não vêm directamente para os cardiologistas. Eles passam antes por um médico generalista. E é aí onde temos de ser mais activos, para se detectar o mais rapidamente possível as situações de risco, que podem evoluir para doenças cardiovascular e encaminhar logo a um cardiologista, a fim de ser devidamente seguidos, evitando danos graves ao coração.  Mas também é preciso que haja um envolvimento maior da sociedade. É nesse segmento que ainda estamos um pouco atrasados. Mas, temos a estado a realizar palestras, congressos e jornadas para informar cada vez mais a população, com o apoio dos órgãos de comunicação, de forma a divulgar as informações de forma mais clara e acertada, destacando a necessidade que há de se mudar os factores de risco e ir ao cardiologista sempre que notar algo de estranho no funcionamento do coração.

Quais os factores de risco para as doenças cardiovasculares?

Os factores de risco são dependentes de outros, entre os quais alguns de natureza socioeconómica, comportamentais, ambientais e metabólicos. Quando se avalia os factores de risco deve-se estimar a população e o local, incluindo os hábitos. Entre os factores mais comuns são os ataques cardíacos, AVC, uso de tabaco, dietas inadequadas, obesidade, sedentarismo e o uso excessivo de álcool, hipertensão, diabetes e hiperlipidemia e o nível de colesterol no sangue. Todos estes factores devem ser trabalhados pelos médicos, para tentar reduzir o risco das doenças cardiovasculares que prejudicam o bom funcionamento do coração.

A Sociedade Angolana de Doenças Cardiovasculares tem realizado rastreio para se saber o número de pessoas propensas a desenvolver a doença?

Infelizmente o país tem poucos cardiologistas. Estamos em volta dos 200 especialistas. E para se fazer um rastreio de dimensão nacional, não seriam suficientes. Logo, para desenvolvermos esta actividade, temos que nos associar a outros parceiros, como os médicos clínicos gerais, os de medicina interna e nefrologistas. Sozinhos é difícil. Mas de forma tímida, a Sociedade Angolana de Doenças Cardiovasculares tem feito rastreios em grupos pequenos, como empresas. Isso acontece mais em datas como esta, de celebração mundial.

Então não se sabe qual a prevalência das doenças cardiovasculares em Angola?

Existe estudos já feitos, de anos anteriores, em colaboração com outros países da região da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC). Um deles foi feito no país pelo cardiologista Mário Fernandes, durante três anos, onde se concluiu que a taxa de prevalência da hipertensão é de quase 40 por cento, e como se sabe, esta é uma das principais doenças cardiovasculares. A nível mundial, estudos indicam que 80 por cento das mortes prematuras causadas por doenças cardiovasculares acontecem em África e na Ásia, por serem os países mais pobres. De acordo com essas pesquisas, entre as 100 por cento de mortes causadas pelas doenças cardiovasculares, 80 por cento ocorrem em África e na Ásia, envolvendo adultos dos 30 aos 69 anos.

No último Congresso de Cardiologia e Hipertensão avançou-se que o país tinha 100 cardiologistas para 30 milhões de habitantes, qual seria o rácio aceitável para Angola?

Segundo a OMS, para se atender um milhão de habitantes são necessários pelo menos 20 a 30 cardiologistas. Mas, infelizmente, não temos. Os cerca de 200 que temos estão concentrados em Luanda, Benguela, Huambo, Huíla e Uíge. Apenas temos um na província do Cuando Cubango que atende todos os pacientes provenientes dos vários municípios. Logo, a demanda é muito alta.

E qual é a estratégia da Sociedade de Cardiologia para aumentar o número de especialistas?

Como sociedade apenas aconselhamos, mas a formação como tal, depende do Ministério da Saúde. Existe um Colégio de Cardiologia que trata dessas questões de formação com ajuda do Ministério da Saúde.

Há uma explicação para maior prevalência de casos de hipertensão arterial (tensão alta) comparativamente a hipotensão (tensão baixa)?

A hipertensão arterial vai sempre aparecer, porque ao longo do tempo os vasos sanguíneos ficam rijos e aí a tensão soube. Já a hipotensão ou tensão baixa não é verdadeiramente uma doença. A pressão arterial média do ser humano está entre os 120 a 80, isso é a sistólica. Esta é a pressão necessária para nos mantermos em pé, enquanto seres humanos.

Diz seres humanos porquê?

Nos animais a tensão é bem diferente. Por exemplo, o coração da tartaruga bate apenas cinco a 10 batimentos por minutos. Nos humanos são 100 batimentos por minutos, porque ficamos em pé. Ou seja, quanto mais próximo da terra estivermos, como é o caso tartaruga, mais baixa é a tensão e a frequência cardíaca. Por isso, é quando deitamos que a frequência cardíaca baixa. Mas, como somos naturalmente seres eréctil, é impossível termos sempre hipotensão.

Quer dizer que é fácil resolver a hipotensão arterial?

A hipotensão pode estar associada a um ritmo cardíaco mais baixo, ou ser uma questão genética, por falência da própria bomba cardíaca, que é o coração. Por conta disso, o órgão não manda sangue suficiente para o cérebro, logo, também não há pressão suficiente. Em regra,  trata-se apenas da falta de ingestão de sal. São situações que o médico resolve rápido, sugerindo a ingestão de mais sal. Por esta razão, não consideramos a tensão baixa como sendo propriamente uma doença como tal.

A hipertensão tende a aumentar porque as pessoas resistem a mudar de estilo de vida? Isso significa que a sensibilização está a falhar?

Não necessariamente. Reconheço que enquanto Sociedade Angolana de Doenças Cardiovasculares devemos fazer muito mais e envolver cada vez mais a população. Os médias devem ter mais programas ligados à saúde na vertente preventiva e com especialistas, devidamente preparados para que as pessoas possam perceber como adquirir, tratamento, diagnósticos e prevenção das várias doenças que afectam o coração e não só.  Não se pode só falar de determinada doença quando se trata de uma efeméride. Tais patologias devem ser abordadas de forma contínua.

O que falta para os medicamentos das doenças cardiovasculares, como a hipertensão, serem subvencionados?

Este problema da subvenção é algo que já temos vindo a discutir há dois anos. A Ministra da Saúde já disse que havia um plano sobre isso, mas sabemos que a subvenção não vem do nada. É uma verba que vem dos impostos pagos e no país poucos pagam os impostos e muitos precisam de medicação. Por isso, é preciso definir quais os mecanismos a serem usados para que se consiga subvencionar de maneira eficaz e sem causar prejuízos a ninguém, porque estes medicamentos são muito caros principalmente aqui no país, onde se importa de quase tudo. Além disso, a população não pode abusar dessa subvenção. As pessoas têm de perceber quais são os benefícios disso e respeitá-lo. Às vezes, o problema do doente não é falta de medicação. Alguns, principalmente os homens, não gostam de fazer a medicação, porque tende a afectar a actividade sexual, causa disfunção sexual e acaba por trazer vários problemas nos casamentos. Muitos homens desistem de tomar tal medicação, coagidos pela esposa, só para manter a relação, prejudicando assim a sua saúde.

O país tem realizado, com sucesso, várias cirurgias cardíacas. Quando teremos auto-suficiência em matérias de respostas aos casos que envolvem cardiologia?

Não sei dizer uma data exacta sobre quando seremos auto-suficientes. Mas estamos a caminhar para tal. Obviamente isso implica muita formação e ter mais especialistas formados não só como cardiologistas, mas também, nas áreas de apoio da cardiologia, desde a clínica, como na área cirúrgica. Quando tivermos este aumento do número de profissionais seremos auto-suficientes e assim não teremos de enviar nenhum doente para fora do país.

  "No congresso passado falamos mais da hipertensão arterial,
Há dois anos, realizaram o V Congresso de Cardiologia e Hipertensão, onde se tratou de temas como o desafio no tratamento das cardiopatias, rastreio, diagnósticos e tratamento da hipertensão arterial. Que balanço se pode fazer dois anos depois?

No congresso passado falámos mais da hipertensão arterial, focámos nas novas directrizes de hipertensão, porque tudo começa no diagnóstico. Agora no VI Congresso, a ser realizado de 19 a 21 do próximo mês de Outubro, vamos verificar o que foi feito e qual é o impacto que está a ter no meio da população. Vamos também avaliar as novas orientações da OMS que surgiram em 2022 sobre cardiologia.

 Qual vai ser o tema do VI Congresso de Cardiologia 2023?

"Novas fronteiras de Cardiologia em Angola: Com coração no futuro”. No evento, tal como os demais, teremos convidados internacionais provenientes dos Estados Unidos, Itália, Brasil, Portugal e colegas da Sociedade Pan-Africana de Cardiologia, que com as suas experiências vão poder nos ajudar a consolidar a cardiologia em Angola.

Que conselhos daria para as pessoas que sofrem do coração?

 Actualmente estamos quase todos estressados e por vários motivos, uns porque vivem muito longe e ficam horas no trânsito. Outros porque financeiramente estão mais ‘apertados’.  É importante que pensemos mais na saúde e nas formas de evitar estes stress, de forma a evitar a subida da pressão e consequentemente o AVC. Também deve-se evitar o consumo de tabaco, redução do sal e açúcar na dieta e evitar o uso excessivo de álcool. O ideal é consumir muitas frutas e vegetais, assim como fazer actividades físicas regulares.

  "A organização é recente. Foi criada em 2012”
Quais são os objectivos e qual o papel da Sociedade de Cardiologia?

A organização é recente. Foi criada em 2012. Actualmente está a tentar ganhar espaço a nível da comunidade. Quando foi criada havia muito menos cardiologistas. Hoje já somos quase 200 especialistas e isso faz com que a importância da sociedade seja mais notada, acrescendo a isso, as colaborações dadas a nível de África, com a Sociedade Pan-Africana de Cardiologia, ou com a Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Com o Brasil temos tido bastante colaborações a este nível, com interacções, inclusive a possibilidade de fazer cursos naquele país da América do Sul, onde há ofertas de bolsas para alguns colegas. Desta forma, aos poucos, temos conseguido atingir o objectivo de massificar o conhecimento sobre a medicina cardiovascular no seio da comunidade médica, quer nacional como internacional.

A Sociedade de Doenças Cardiovasculares tem sugerido alguma medida ou recomendação para que, por exemplo, se controle o teor do sal e açúcar nos alimentos?

Ainda não debatemos o assunto a nível oficial, mas existem medidas, mesmo a nível da OMS, que os países podem adoptar para que se comece a fazer redução do teor do sal na comida. E os lugares onde se consegue fazer isso com facilidade são os refeitórios públicos, hospitais, escolas e empresas. Em casa é mais difícil. Mas, existe dentro da OMS, um grupo que cria estratégias e monitora tudo que é feito a nível das doenças não comunicáveis das quais faz parte as doenças cardiovasculares.

A Sociedade de Cardiologia tem intervindo na tomada de decisão em relação às  doenças de índole cardíaca?

Algumas vezes sim, mas não tanto quanto gostaríamos. Porém, tem havido essa troca de informação, para mitigar algumas situações. Em termos de saúde geral do país, ainda se luta com as doenças, mas prevalentes do ponto de vista infeccioso, como a tuberculose, HIV e malária. São patologias que o Ministério da Saúde tem de combater, associadas a estas novas doenças. Acredito que seja por aí que não existem mais interacção. Mas tem de se abranger todas as patologias que o país tem.

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