Entrevista

“Instituições como a nossa devem ser o recurso temporário e último para situações que afectam as crianças”

Carla Bumba

Jornalista

As situações relacionadas com as crianças desaparecidas, abandonadas e em situação de vulnerabilidade continuam a ser um desafio da sociedade, das instituições, públicas e privadas, bem como para as pessoas singulares.

04/08/2023  Última atualização 10H30
© Fotografia por: DR

Em entrevista ao Jornal de Angola, a directora do Lar Kuzola defendeu que o melhor lugar para a criança é no seio familiar e que o recurso aos lares deve ser temporário e o último passo a ser dado. Engrácia do Céu disse que o centro, que controla  mais de 300 crianças, enfrenta inúmeras dificuldades

 Como descreve a instituição que dirige?

Somos uma instituição pública ligada ao Governo da Província de Luanda, entidade de tutela que tem outros dois parceiros fundamentais, que são o grupo de empresas petrolíferas do Bloco 17, que se juntaram a nós e que, ao longo desses anos têm proporcionado um financiamento direcionado para os bens e serviços a favor das crianças aqui acolhidas.

A terceira entidade é a Fundação Lwini que, em 2011, assumiu a gestão do Lar Kuzola. Somos, desde este período, a vigésima quinta gestão da direcção e, quando cá chegamos, essa instituição não era reconhecida como tal. Existia, aliás, é uma instituição que existe desde 1976, obviamente, não com o nome de Kuzola, mas com a designação de Quicalanga, cujas instalações funcionavam onde hoje está a Clínica Girassol.

Nos anos 80 mudou de instalações e trocou de nome. Mas o seu objecto social manteve-se. De Quicalanga ao nome Kuzola, acolhemos crianças vítimas da guerra e as que hoje são vítimas daquilo que é desestruturação familiar, fuga à paternidade e de mulheres que não querem assumir as suas responsabilidades de mãe.

A nível de Luanda, o Lar Kuzola é a única instituição pública. As outras, com o mesmo objecto social, pertencem ou estão sob a responsabilidade de organizações ou associações que, na nossa maneira de encarar as coisas, complementam o nosso trabalho.

 

Quais são as principais dificuldades que o centro enfrenta?

Uma das principais dificuldades é a superlotação, que acaba por criar, objectiva e subjectivamente, outras situações que temos aqui e constituem um problema até para a organização das próprias crianças, nomeadamente no que à atenção individualizada diz respeito.

Temos um quadro de pessoal de 136 funcionários para atender 250 crianças, número que pode ascender acima de 300. Estamos na expectativa de ver a nossa instituição incluída nos processos de preenchimento de vagas, por via de Concursos Públicos, a serem realizados pelo Governo da Província de Luanda.

Vale dizer que temos ultrapassado as nossas dificuldades, que se enquadram dentro do próprio contexto que o país vive e, por isso, nós não estamos isolados. Em relação aos trabalhadores vale a pena referir que, dos 136 funcionários, metade são trabalhadores em regime de contrato, situação que esperamos venha a ser ultrapassada pelo Governo Provincial de Luanda.

 

Pode falar um pouco mais sobre a superlotação do centro?

Bom, a nossa capacidade é de 250 crianças em regime de internamento, e a faixa etária deve ir desde o nascimento até aos 14 anos de idade. Mas essa realidade está longe de corresponder ao que vivenciamos. Ou seja, isso é o que consta do nosso estatuto orgânico, aprovado em 2012, mas a demanda é grande ao ponto de assistirmos, no final de cada ano, números que rondam até 500 crianças.

 

Se tivesse que apresentar números relativos ao acolhimento de crianças, de Janeiro a Junho, que dados apresentaria?

A média de crianças permanentes é superior a 300, um número que, ainda assim, oscila muito. Todas as segundas-feiras fazemos a contagem e recontagem de todas as crianças que temos aqui. Por exemplo, suponhamos que temos hoje 350 crianças, amanhã esse número poderá variar para mais ou para menos, em função do projecto de localização e reunificação familiar em que nos encontramos engajados. Defendemos que o melhor lugar para todas as crianças é no seio familiar. Inclusive, à luz da Lei nº 25/12 sobre Protecção e Desenvolvimento Integral da Criança, instituições como a nossa devem ser encaradas como recurso temporário e último, para situações que afectam a criança. Daí que os nossos números variam na medida em que podem encontrar hoje alguns dados que já não vão corresponder amanhã.

 

E como tem sido o processo de reunificação e encontro de uma família substituta?

Neste aspecto, a situação não tem sido fácil. Em relação ao processo que envolve a reunificação familiar, atendendo à nossa realidade geográfica, extensão do nosso território nacional, desorganização da toponímia e desestruturação familiar, temos feito a nossa parte com muita dedicação e empenho. Quanto à família substituta, vale dizer que o processo de adopção decorre seguindo todos os trâmites legais. Só que, ultimamente, as pessoas só querem adoptar crianças recém-nascidas. Outras vezes, recebemos crianças com um quadro sanitário muito precário, como são os casos de recém-nascidos recuperados em contentores. Olha que, também enfrentamos casos de óbitos no nosso centro. Felizmente temos aqui serviços de assistência médica e medicamentos aceitáveis. Temos uma enfermaria onde as crianças são bem atendidas por três pediatras e, neste momento, temos algumas médicas a trabalhar aqui, de segunda a sexta-feira, na condição de estagiárias. As crianças que necessitam de outro tipo de intervenção médica que aqui não podemos fazer, são encaminhadas para o Hospital Pediátrico e outras unidades.

 

Qual é o perfil das crianças que vêm aqui parar?

Desde recém-nascidos a crianças com seis anos, que depois acabam por permanecer aqui até atingir os 14 anos e, às vezes, os 18 anos. Temos meninos que chegam aqui com 10 e 11 anos, que nunca entraram numa sala de aula. O projecto de Aceleração Escolar, implementado aqui neste centro, já permitiu que hoje, por exemplo, alguns rapazes e raparigas que chegaram aqui com sete anos de idade estejam a concluir o ensino médio. Portanto, toda a criança que chega aqui em idade escolar é obrigada a estudar na escola IMNE Marista, Ngola Kiluanje e Escola Comercial, que, em função das competências, direcionamos aqueles que têm habilitações básicas. Já estamos a subir a fasquia, porque temos uma menina que este ano entra na universidade. Com os adolescentes, temos esses perfis e, para além da escolarização, nós pensamos, também, em fortalecer esses meninos com idades entre os 16 e 17 anos, a fim de receberem formação profissional.

O que há para se dizer dos adolescentes e jovens?

Os adolescentes com mais de 14 anos já não fazem parte do nosso grupo alvo. Na verdade, nós deveríamos fazer a ponte com outras instituições para existir um certo automatismo. Ou seja, quando uma criança atinge os 14 anos, outras instituições devem disponibilizar-se em dar seguimento, realidade que conseguimos efectivar em 2021. Mas entendemos que o desafio é maior e nem sempre as coisas acontecem exactamente como, às vezes, pretendemos, porque o fenómeno social que faz parte do nosso objecto é muito complexo. Basta ver, como disse, que estamos muito acima das nossas capacidades e sabemos que, com instituições similares, a situação é a mesma. Às vezes solicitamos ajuda a outras instituições, que nos dizem que não têm vagas, e acabamos em busca de outras soluções que se traduzem, muitas vezes, em parcerias.

 

E o perfil de saída deixa satisfeita a direcção do Lar Kuzola?

Há pouco tempo, assumimos uma parceria com a Fundação Arte e Cultura e a Amitreu, uma empresa israelita que proporcionou oportunidades de empregabilidade. Assinamos um protocolo, por via do qual enquadrámos 25 jovens saídos do nosso centro, que neste momento frequentam uma formação técnico profissional, dos quais pelo menos 15 já beneficiam de salários de estagiários. Estes jovens vão, durante seis meses, receber também subsídios de transporte e alimentação. Em tempos enviámos 26 adolescentes, com base num acordo que assinamos com o Ministério da Agricultura, para a sua inserção na Escola Técnica Agrária do Catofe, no Cuanza-Sul. Foi a nossa primeira iniciativa, entre os anos 2014 e 2015. Outras iniciativas envolvem parcerias com o Dom Bosco e Fundação Arte e Cultura. Por exemplo, em 2021, conseguimos também uma parceria com o Ministério da Defesa e integramos 11 jovens adolescentes que foram para as Forças Armadas e estão, neste momento, na cidade de Lubango, província da Huíla.

 

perfil

 

Engrácia Etelvina do Céu

É professora de profissão, com curso superior em Pedagogia e formação em Educação de Infância.

Trabalha há mais de 50 anos e, desde 2011, no Kuzola, tendo exercido várias funções ao longo

da carreira, nomeadamente

 na área de formação de professores, educadores

 de infância e educadores sociais, gestora de projectos sociais e directora nacional de Formação de Quadros Sociais

do ex-MINARS.

A responsável

 sonha ver as crianças integradas

 em lares de acolhimento onde podem desenvolver competências

 e oportunidades, para melhor contribuírem no desenvolvimento

do país.

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