Entrevista

Irene A’Mosi: “A expressão que a palavra ganha no papel é libertadora”

Isaquiel Cori

Jornalista

Aos 24 anos de idade, Irene A’Mosi, natural de Luanda, é roteirista, realizadora de cinema e televisão, poeta, “artista de voz”, actriz, escritora... com obra feita em todas essas manifestações artísticas, ela revela-se, segundo nótula editorial, como “narradora de hábitos e costumes da sua geração, usando narrativas simples num jogo de expressões culturais próprias e comuns tendo como instrumento de trabalho a memória colectiva da sua época”.

02/04/2023  Última atualização 09H04
© Fotografia por: Edições Novembro

Irene A’Mosi lançou, recentemente, o livro "Intervalos”, uma narrativa confessional plena de sensibilidade, em que ela se compraz no uso da palavra e contagia o leitor com histórias simples de resistência e resiliência emocional perante as contrariedades do quotidiano. "Intervalos” é uma edição primorosa da Palavra&Arte, que conta com ilustrações de Venâncio Muenho. Eis Irene A’Mosi na primeira pessoa


 

Como é que tudo começou? Como é que nasceu o seu interesse pela escrita?

As minhas primeiras manifestações artísticas começaram na infância. Desde muito cedo que me vejo questionando as coisas à minha volta, os ensinamentos, as tradições, o modelo de vida que encontrei no mundo e que as pessoas acreditam ser o certo sem antes questionar, interrogar ou comprovar por elas próprias que é certo. É da infância que me percebo artista, ou pelo menos com uma inclinação para as artes, para a escrita e a palavra propriamente falando.

 

Fale-nos do contexto familiar que acha que lhe permitiu ser escritora...

A minha relação com a palavra existe desde quando ainda me escondia no útero de minha mãe. Minha mãe conta que pegou o jeito com as palavras de sua avó e desde então é tradição fazer o dom não morrer na nossa família, daí a necessidade de ser passada de geração a geração. Eu sou merecedora desta dádiva, fui ungida no ventre com um par de boas vindas e a bênção de ser sucessora nominal do ancião de nossa família, o senhor meu avô. A palavra sempre se fez presente nas mesas de reunião lá em casa, ou entre as pernas nas rodas com os mais pequenos fazendo a vez da fogueira, acompanhando os gestos, a voz e o silêncio. Embora fosse uma menina, minha forma de comunicar despertava curiosidade aos mais velhos. E não era sobre como cada palavra era empregada nas frases... era sobre como elas chegavam até ao coração das pessoas, às vezes sem precisar falar tanto. E hoje eu oro pedindo que nunca me falte força para erguer os braços, quando a boca eu não puder abrir.

 

Quais são os livros que lhe marcaram profundamente e que até hoje ecoam em si?

A Bíblia, que eu acredito ser não apenas um livro mas um guia para vida, e o livro "A Saúde do Morto” de Luís Fernando, que foi a primeira obra literária angolana que li aos meus 15 anos de idade.

 

"Intervalos” é uma obra de resistência, ou melhor, de resiliência emocional. Como escreveu esta obra? É um projecto concebido segundo um plano ou foi se construindo fragmento a fragmento?

"Intervalos” é sim uma obra de resistência e resiliência, foi escrito durante os momentos de INTERVALO, num período muito específico e acima de tudo expressivo da minha vida. Quando, na urgência de experimentar uma outra possibilidade de vida, me mudei à cidade a convite da organização Kino Yetu para uma Residência Artística, longe da família e dos amigos. O vazio e os silêncios, a saudade e os mistérios de ter perdido minha outra mãe alguns dias depois, levaram-me a escrever o livro.

 

A ideia de incluir as ilustrações foi sua ou do editor? 

A ideia inicial foi minha, no entanto houve um comum acordo entre mim e a editora. A obra carrega um tanto de singularidades que o tornam acima de tudo especial. Quando pensei na ideia de fazer o livro, logo me veio a possibilidade de fazer alguma coisa diferenciada e que conseguisse dizer a partir de sua beleza e detalhes tudo o que não consegui com as palavras. Foi um desafio primeiro materializar a ideia, tirar da mente ao papel, e depois, encontrar editora e profissional que conseguissem me perceber e dar aquilo que eu procurava. Graças a Deus temos profissionais à altura e capacitados. Já conhecia o trabalho do Venâncio Muenho há algum tempo, contactá-lo não foi difícil, as obras que ele traz para o livro são inéditas e foram escritas sob inspiração dos textos que fazem parte do livro.

 

"Intervalos” foi escrito como forma de libertação de alguma situação concreta de crise pessoal?

Sim! Falar liberta, mas escrever liberta umas três vezes mais. A expressão e dimensão que a palavra ganha no papel é libertadora. E foi exactamente assim que aconteceu aquando da escrita do livro. Talvez se não o escrevesse naquele momento continuaria a ser Irene, porém, com muitos "Intervalos” e dívidas comigo mesma.

 

A dado momento da leitura ocorre ao leitor que "Intervalos” bem poderia ser o excerto de um diário sentimental. Tem o hábito de escrever para um diário?

Tenho sim. Sou uma pessoa que passa a maior parte do tempo a rabiscar e anda a maior parte das vezes com uma agenda e lapiseira para qualquer lugar. É um hábito velho que ganhei da minha mãe, que escreve para não esquecer e hoje eu escrevo "Para permanecer viva, na memória e no papel”.

 

Tem alguma outra obra preparada para publicação?

"Não se pergunta a uma mulher que acabou de dar à luz quando será o próximo parto”.

 

O cinema acaba por ser a sua principal actividade profissional?

Actualmente sim, é a minha maior fonte de renda.

 

Também faz teatro? A que grupo pertence?

Dou voz e corpo para o Projecto Leituras Assistidas.

 

Quais são as obras literárias que recomendaria  aos leitores do Jornal de Angola?

"Os Transparentes” , de Ondjaki, "Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos”, de Olga Tokarczuk e  "O Vendedor de Passados”, de Agualusa.

 

E quanto a filmes?

"Os Três Idiotas”, do realizador Rajkumar Hirani.


Multiartista

Na arte da palavra falada Irene A’mosi foi campeã do Kassemba Slam (2021), vencedora da primeira batalha do MozAngola Slam (2021), campeã do Slam Lusófono (2021), do Slam Delas Brasil (2021) e do Luanda Slam (2022). Integrou o grupo de artistas da primeira edição do Ateliê Maianga (2022), um programa de residência artística realizado pela Kino Yeto em parceria com o Goethe Institut Angola; participou na colectãnea "Traços de Luanda”, uma obra escrita por dez escritores angolanos inspirados em fotografias de quatro fotógrafos angolanos. 

É realizadora do filme "Museu de Manifestações”, participou no filme "Inóquio” do realizador Ery Claver e trabalha actualmente como roteirista da mais recente produção angolana, a série "Njila”, produzida pela Geração 80 e a Muanda Produções. 

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