Opinião

Katolotolo

José Luís Mendonça

Quando eu era pequeno e andava na escola primária, o marido da minha professora morreu. Sofreu durante três dias no hospital, teve alucinações e faleceu. A minha professora disse que o marido morreu de malária cerebral.

04/05/2021  Última atualização 06H00
© Fotografia por: DR
 Mas a minha avó, que nos curou muitas maleitas com remédios da nossa farmacopeia tradicional, foi peremptória em declarar, sem pestanejar, que o marido da minha professora da escola primária tinha morrido de katolotolo. Eu não sabia o que era isso de katolotolo. A mãe grande me fez sentar no luando e me explicou. O katolotolo é a mesmíssima malária ou paludismo, só que de carácter avassalador. E o remédio é uma mistura de ervas, que incluem o ditumbate, o pau do quinino, burututo e a infalível e necessária fricção com produtos de que nunca soube os nomes, mas que formavam uma pasta com um aroma vegetal a serradura e seiva a sair do machado. 

A minha avó já morreu e eu, distraído como era, nem me lembrei de registar num caderno os ingredientes todos para a cura do katolotolo. O meu erro não parou por aí. Conheci um mais-velho em Malanje que fazia as mulheres mbakas terem filhos e retirava cataratas dos olhos com um pedaço de argila cinzenta dessa que as grávidas mastigam. O kota amassava a argila na boca, soprava-a na retina do paciente, durante cinco dias e, por incrível que pareça, a catarata desaparecia da vista humana. 

Hoje mesmo uma amiga estagiária de medicina me relatou a noite de anteontem em que esteve de banco numa sala com doentes de malária cerebral. Um deles, um jovem de vinte anos, lançou-se da janela para fora do segundo andar. Antes, tinha lamentado para a enfermeira que estava a ser perseguido. A sorte do doente é que caiu na varanda do primeiro andar e apenas sofreu algumas escoriações. Outra paciente, uma mais velha, no seu delírio, disse para a estagiária: "eu sou a tua avó feiticeira!”. Claro que a minha amiga estagiária de medicina fugiu da sala de enfermagem, até recuperar o fôlego. Os angolanos devem muito ao seu ADN mental que Chicoadão classifica como sendo Wanga, no seu livro sobre Direito Tradicional dos Povos de Angola. A colega desta estagiária também fugiu da sala, quando outra senhora acamada lhe mandou tirar a mancha preta que estava no tecto. Na sala de enfermagem estavam mais seis doentes de malária cerebral, todos a receber tratamento de choque com artesunate injectável. 

Quando ela me descreveu este cenário, lembrei-me da conversa que tive há muitos anos com um médico amigo que me disse que tinha testemunhado a morte de duas crianças no hospital, porque as mães levavam os filhinhos pequenos "já em vinha d’alho”. Aí eu entendi a força da expressão: as nossas mamãs, primeiro tratam dos filhos em casa ou no quimbanda. Normalmente, o tratamento inclui numa fricção com alho e petróleo. O alho sempre foi reconhecido pelo seu alto teor anti-bacteriano e o petróleo é um combustível que, mesmo não aceso, arde no sangue. Quem estiver muito debilitado, pelo menos, deve acordar, ou para dar o último suspiro, ou para despertar para uma nova vida. Depende. 

E foi também nessa conversa com a enfermeira estagiária que me recordei da minha professora e do marido dela que morreu de malária cerebral, segundo ela nos disse quando retornou do óbito, e que morreu de katolotolo no kimbundu da minha avó. Afinal, a malária ou paludismo, também é katolotolo ou malária cerebral. Parece que na Zâmbia é chamado de Xikungunya. Afinal, nós passamos mais tempo, desde há muito tempo, a priorizar a política e outras malambas da angolanidade difusa, quando podíamos falar com os mais velhos, antes que fechem de vez as suas bibliotecas vivas, e registar tantos modos de cura que parecem milagres, mas não são mais do que efeitos da medicina tradicional, das nossas plantas e da ciência oculta de as preparar para salvar vidas.

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