Entrevista

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Marcelino Pintinho defende reformas profundas do Ensino Superior em Angola

André da Costa|

Jornalista

O Ensino Superior em Angola precisa de reformas profundas para se ter uma educação a sete cores, segundo Marcelino Pintinho, jovem angolano de 37 anos que acaba de obter o segundo doutoramento, desta vez em Sociologia, na Universidade de Évora, em Portugal, depois do primeiro, em Ciências da Educação, no Paraguai.

07/11/2023  Última atualização 10H35
Marcelino Pintinho, jovem de 37 anos com dois doutoramentos obtidos no exterior © Fotografia por: DR
Para o também docente universitário e comissário bombeiro, o Ensino Superior no país é bom, mas precisa melhorar em muitos aspectos, desde a criação de um fundo para a investigação científica, à valorização da pesquisa, sobretudo nas áreas técnicas, e a remuneração compatível com a função de docentes como defendeu, em entrevista ao Jornal de Angola.

Por que razão lhe foi atribuída a mais alta distinção em doutoramento a nível da União Europeia?   

Obtive a maior distinção de títulos europeus aprovada por unanimidade pelo corpo de jurado.  Foi-me ainda atribuída uma distinção de louvor que se deve  ao mérito, sacrifício e espírito de entrega e, sobretudo, sentido de pertença em matéria de formação. Isso também se deveu ao facto de ter sido dos poucos africanos e o primeiro angolano, numa cerimónia de 78 professores Doutores.

Certamente que isso constitui para si e para sua família um motivo de orgulho?

Na nossa realidade angolana, essa distinção  equipara-se à nota de 20 valores, ou seja, a classificação mais alta de títulos de doutoramento a nível do continente europeu, aprovado com louvor, unanimidade e distinção. Essa classificação deve servir de orgulho e referência para a comunidade angolana . Com mais esse título, passo a ter dois doutoramentos, sendo que o primeiro o fiz no Paraguai e agora o segundo, aqui em Portugal. Portanto, sou Ph.D. duas vezes, ou seja, duplo Doutor.

Como é obter dois doutoramentos com a sua idade, tendo em conta a realidade angolana?

Olha, foi um sonho, tudo por conta de um cidadão guineense chamado António Nhaga, que foi meu professor na extinta Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto. Quando o conheci, era duplo Doutor, ou seja, possuía dois doutoramentos, um em Sociologia e outro em Direito. Senti orgulho dele e acreditei que algum dia também chegaria lá. Acreditei em mim mesmo e investi. Hoje, felizmente, sou dos poucos jovens angolanos com dois doutoramentos feitos em dois continentes, ou seja, na América e na Europa. Foi uma tarefa muito complicada, pois estudar fora de Angola e sem apoio ou bolsa de estudo suportado pelo Estado é muito difícil.   

Qual foi o tema estudado para a elaboração da defesa de tese na Universidade de Évora? 

A defesa de doutoramento teve como título "O analfabetismo e o desemprego como factores de exclusão social: o caso do município do Cazenga, em Luanda”, sob a orientação da professora doutora Maria Baltazar. Mas, a cerimónia de imposição das insígnias doutorais decorreu na Sala de Actos da referida Universidade e foi presidida pela Magnífica Reitora da Universidade de Évora, Professora Doutora Hermínia Vasconcelos Vilar. A cerimónia foi prestigiada pelo arcebispo de Évora D. Francisco Coelho, membros do aparelho do Estado, directores nacionais, professores e comunidade académica. O acto ocorreu no âmbito das celebrações do dia da Universidade de Évora que se assinalou no dia 1 de Novembro, sendo que a instituição celebra 459 anos. É considerada a segunda universidade mais antiga de Portugal e uma das nove mais prestigiadas da Europa.

Quantos cursos tem disponíveis esta universidade?

A Universidade de Évora possui uma oferta formativa de 35 cursos de doutoramento, 41 de mestrados e 78 licenciaturas. Esta cerimónia de entrega de diplomas durou quatro horas. Sinto-me  orgulhoso em ser o único africano e Angola distinguido num universo de 78 professores doutores.

Fale-nos um pouco do seu percurso académico, até chegar a Professor Doutor.

Sou licenciado em Sociologia pela Universidade Agostinho Neto, mestre em Ciências da Educação, pós-graduado em Inteligence e Estudos de Segurança. Sou Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Metropolitana de Assunção, no Paraguai, e, agora, Doutor em Sociologia pela Universidade de Évora, em Portugal.

Sabemos que cresceu no Cazenga, onde começou os seus estudos. Conte-nos um pouco da sua vivência naquele município.

O meu percurso académico parece ser uma heresia, mas não. Sou um jovem proveniente de uma família humilde, sem qualquer referência na sociedade angolana. Vivi no município do Cazenga, por sinal um município conotado com a marginalidade e cresci num ambiente de bastante hostilidade, criminalidade e o meu percurso parecia ser uma ventura equiparada a "Alice no país das maravilhas”. Com 22 anos, já era licenciado, com 25, fiz o mestrado e com 30 aos, cheguei a Ph.D. Sou, modéstia a parte, uma excepção para muitos jovens angolanos.

Pode-se dizer que acreditou nos caminhos da vida e venceu com honestidade e muito sacrifício?

Sou, como disse, um jovem angolano, natural de Luanda, município de Cazenga. A minha família é do bairro, pelo que tive de fazer muito sacrifício. Fiz tudo de forma sincera e honesta para ganhar a vida. Por acreditar nos desafios da vida, consegui resistir às desigualdades do Cazenga e estudar no Futungo, na extinta Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto. Sou um jovem sem qualquer ligação partidária, mas que acredita numa Angola melhor, com o contributo de todos.

O que representa para si essa distinção na sua carreira enquanto cidadão e académico?

Essa distinção representa um orgulho para África e uma conquista para Angola. Devíamos nos orgulhar, pois num universo de 78 Doutores de várias nacionalidades, Angola foi a única representação africana. Isso representa tudo para uma nação e sobretudo para um povo especial que somos os angolanos. Só não reconhece quem não é patriota.

Temos conhecimento que leciona várias disciplinas ligadas à Sociologia. Pode enumerá-las?

Sou docente há mais de 14 anos. Leciono em várias universidades, com destaque para os Mestrados nas Universidades Jean Piaget (Unipiaget) e Privada de Angola (UPRA). Nas licenciaturas, dou aulas na Unipiaget, nos cursos de Psicologia, Introdução à Sociologia, e nos cursos de Sociologia, Sondagens de Mercado e Gestão de Recursos Humanos. No Instituto Superior Politécnico Internacional de Angola (ISIA) trabalho com as cadeiras de Introdução à Pesquisa Científica e Seminário de Trabalho de Fim de Curso.

Que incentivo deixa aos jovens na sua idade para que possam também alcançar tal proeza?

O primeiro incentivo é acreditar nos objectivos que traçamos e que a idade não constitui uma barreira para alcançar desafios. Precisamos investir em nós mesmos e não esperar que outras pessoas façam por nós. A idade não pode ser um factor de exclusão, mas um incentivo para obter conquistas e realizações.

É oficial comissário do Serviço de Proteção Civil e Bombeiros. Até que ponto a escola de Bombeiros pode contar com o seu saber na transmissão de conhecimentos visando ao desenvolvimento da corporação e do país no geral?

Desde que me tornei Ph.D, houve um investimento por parte do Ministério do Interior e do Serviço de Protecção Civil e Bombeiros, onde granjeei, com mérito, a patente de oficial comissário, por sinal o mais jovem do país. Tenho feito com ajuda dos meus superiores, o meu melhor para contribuir no sistema de formação dos efectivos na Escola, como a reestruturação do perfil de entrada e saída do agente de Bombeiros e de Protecção Civil. Foi-me dada uma oportunidade de trabalhar nas áreas de formação onde, com os dois doutoramentos, acredito estar a contribuir para o desenvolvimento do Ministério do Interior, em particular do Serviço de Protecção Civil, onde sou efectivo há mais de 17 anos.

Como olha para o ensino superior feito em Angola? Está bem ou carece de melhorias em termos de qualidade?

O ensino superior em Angola é caracterizado como bom, mas precisa melhorar em muitos aspectos, desde a criação de um fundo para a investigação científica sério, e não o de faz de conta. A valorização da pesquisa, sobretudo nas áreas técnicas a remuneração compatível com a função para os docentes, para evitar que Professores Doutores troquem o ensino e a investigação por outras profissões como de técnico da AGT ou Sonangol e magistrado do Ministério Público ou Judicial.

Entende ser necessário reformar o ensino superior no país?

Não se pode permitir que o ensino superior seja uma tribuna de greves constantes por falta de consenso, como se verificou. É preciso valorizar os investimentos feitos nesse sector e institucionalizar uma entidade para exercer a supervisão do mesmo. Devemos deixar de pensar que o professor tradicional detém o monopólio das faculdades. O ensino superior em Angola precisa de reformas profundas para se ter uma educação a sete cores. Ainda é possível lá chegar.

Portanto, não está satisfeito com os actuais moldes?

Fico com a impressão de que não há controlo dos quadros que estão no exterior do país. Por exemplo, sou duplo Doutor mas não sou convidado para lecionar nas universidades públicas do país, o que configura uma desatenção de quem superintende o Ensino Superior em Angola. Nunca fui consultado para um projecto de investigação em Angola! Acho isso um paradoxo porque obtive a maior distinção de títulos a nível da União Europeia.

Acha que deveria haver uma política de captação de quadros?

O Executivo deveria traçar uma política de captação de quadros com maior sensibilidade. Não é normal ter um jovem de 37 anos com dois doutoramentos e não tem qualquer contacto em matéria de investigação com o Ministério de tutela. Isso traduz que o referido Ministério possui excesso de quadros…

Qual é a sua opinião sobre o desenvolvimento do país, na actual conjuntura?

O país é um desafio para novas e velhas gerações. Precisamos acreditar mais em nós, trabalhar de forma conjunta com sentimento de nós, pensar em programas e políticas públicas para mitigar as desigualdades sociais, promover o desenvolvimento, reduzir a pobreza e começar a definir uma nova Angola. Não vamos esperar que outras pessoas definam as metas que devemos seguir. Ao longo do meu percurso académico nos dois continentes, pude apurar que temos tudo para construir uma Angola melhor, porém, devemos possuir mais sensibilidade humana para algumas realizações.

Qual é o seu maior desejo enquanto cidadão?

Ter uma Angola sem analfabetismo, sem malária e todos os bairros ou musseques asfaltados, sem crianças fora do sistema de ensino, sem pessoas a comer nos contentores. Esse é o meu maior desejo e sei que é possível atingi-lo. Com políticas públicas bem concretas, acredito que podemos chegar lá. Sei que o Executivo está a fazer todos os esforços para que se tenha o melhor para os angolanos. 

Tem publicado três livros. O que aborda cada um deles?

O primeiro livro é "Os efeitos da fuga à paternidade na estrutura familiar”, que retrata das consequências que a fuga à paternidade traz na estrutura familiar. O segundo é "Exclusão social dos idosos”, que fala sobre os filhos que não têm paciência para com os mais velhos e acabam por os abandonar à sua sorte. O terceiro é "Gravidez na adolescência e os desafios da maternidade”, onde destaco o papel da jovem mãe adolescente e os dilemas da maternidade.

Qual foi o motivo para escrever cada uma das obras?

O maior motivo são os problemas sociais sobretudo familiares que Angola enfrenta, aliado à falta de literatura científica sobre a Sociologia, Direito da Família e Educação.

É ou não caro produzir livros em Angola?

É muito complicado porque não há incentivo para a publicação. Algumas editoras que existem não estão preocupadas com a investigação, mas com os lucros. Sem patrocínio não se pode publicar livros.  parece-me que a publicação de livros está concebida para uma elite com um certo capital social.

PERFIL

Marcelino Pintinho

Filiação - André Jutalo Pintinho e Esperança Cariço

Naturalidade -Luanda

Data e Local de Nascimento:-11 de Agosto de 1986, no município do Cazenga, em Luanda

Estado Civil -Casado e pai de três filhos

Formação académica - Duplo Doutor em Sociologia e Ciências da Educação

Sou licenciado em Sociologia pela Universidade Agostinho Neto, mestre em Ciências da Educação, pós-graduado em Inteligence e Estudos de Segurança. Sou Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Metropolitana de Assunção, no Paraguai, e, agora, Doutor em Sociologia pela Universidade de Évora, em Portugal.

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