Entrevista

“O Cazenga é uma referência na criação de novos factos artísticos e culturais”

O Festival Internacional de Teatro do Cazenga (FESTECA) tornou-se num dos maiores eventos realizados a nível nacional e internacional, inserido no programa cultural e artístico da Associação Globo Dikulu. Com base nisso, o Cazenga é hoje uma referência na criação de novos factos artísticos e culturais.

03/08/2023  Última atualização 14H05
Presidente da Associação Globo Dikulu, Glória da Silva, ao Jornal de Angola © Fotografia por: DR

Com base nisso, o Cazenga é hoje uma referência na criação de novos factos artísticos e culturais. A iniciativa tem orientado muitos jovens a criarem as próprias formas de auto-emprego, por via das artes. De 6 a 16 de Julho, o Centro de Animação Artística do Cazenga (ANIM’ART) foi palco de vários espectáculos de teatro, oficinas, exposições e exibições de filmes, onde foi, igualmente, homenageado o antigo Grupo Experimental de Teatro (GET), da então Secretaria de Estado da Cultura, que na ocasião exibiu a mitológica peça "A Panela de Kokambala”. Em entrevista ao Jornal de Angola, Glória da Silva, a presidente da Associação Globo Dikulu, falou dos principais desafios e da consolidação do Festival Internacional de Teatro do Cazenga, que na última edição completou 18 anos de existência.

O que significa exactamente Associação Globo Dikulu e o porquê da escolha deste nome?

A Associação Globo Dikulu - Acção para o Desenvolvimento Juvenil significa espaço de construção de cidadania e oportunidades para dar e receber solidariedade social e cultura. Globo Dikulu significa problema, mas é aquele problema que toca uma pessoa, se reflecte na comunidade e todos são afectados. Na verdade, leva ao sentido da expressão problemas globais. O nome foi escolhido por um dos fundadores, o senhor Manuel José Domingos "Kota Lito”.

Como e quando surge a ideia da criação da Globo Dikulu?

A ideia de criação da associação surge no Cazenga, em 1988, quando um grupo de jovens, na altura, se juntou para realizar um leque de actividades sócio-culturais, o que levou à constituição do grupo, a 30 de Julho de 1989.

O Centro do Anim’Art era um espaço baldio e subaproveitado. Como conseguiram erguer e tornar o espaço funcional?

Foi um processo de construção com muitas etapas e fases de resiliência que os membros da associação tiveram de empreender, activando uma paixão e entrega para fazer o que se gosta e o que se quer. Pedra sobre pedra, fomos erguendo e ainda estamos a erguer o Centro Anim'Art.

Quem foram os mentores iniciais do projecto  e quem faz parte dele?

O grande mentor do projecto é o senhor Orlando Domingos, mas foram cinco os fundadores: Manuel José Domingos, Waldemar de Jesus Mateus, Mereldes Catarino de Andrade, Rui António Domingos e o próprio Orlando Domingos. No acto de constituição estiveram presentes 120 jovens e actualmente tem 350 membros em 10 províncias do país, nomeadamente Bengo, Bié, Benguela, Huíla, Malanje, Cuanza-Norte, Cuanza-Sul, Namibe, Zaire e Cunene.

Como está constituída a Globo Dikulu e como tem sido feita a renovação do corpo directivo?

A Associação está constituída pelos seguintes órgãos: Assembleia-Geral, Direcção, Conselho Fiscal, Plenário de Membros Fundadores, Direcções Provinciais e Núcleos de Actividades Locais, com os respectivos programas e projectos. A renovação de mandatos é regular. Há três mandatos que se observa a normalidade neste quesito.

Quais foram os maiores desafios ou ganhos do projecto enquanto associação juvenil?

Os maiores desafios, enquanto associação, prendem-se com a sustentabilidade e manutenção, num contexto em que a falta de recursos e meios para a plena funcionalidade e operacionalidade tem sido um dos grandes obstáculos. As maiores dificuldades são de natureza financeira e material. Faltam meios e equipamentos electrónicos como computadores e outros materiais e ferramentas de trabalho que nos garantam a funcionalidade e a gestão da Associação. Quanto aos ganhos, é o respeito e credibilidade granjeados pela nossa sociedade durante todos esses anos de resiliência.

Como tem sido feita a gestão e que medidas são tomadas para ultrapassar as barreiras existenciais?

A gestão da instituição é feita com transparência, respeitando o modelo de gestão dos recursos e as medidas que se tomam para ultrapassar as barreiras e dificuldades que têm a ver na maioria com a capacidade de resposta das situações que surgem. Temos um sistema de gestão que envolve todos de forma colegial sustentado pela relação interpessoal dos membros.

Que tipo de actividades são promovidas na Globo Dikulu?

As principais actividades promovidas pela Associação são de carácter social e cultural e usamos a metodologia da animação sócio-cultural, que é um método de participação territorial que, partindo da cultura, permite que um grupo de pessoas se organize para actuar na comunidade. Assim são desenvolvidos os programas e projectos a favor de crianças, jovens e mulheres.

Quais são os principais parceiros da Associação?

Actualmente, os principais parceiros são as congéneres em Portugal, Brasil, França, Alemanha, Moçambique e Cabo Verde.

Fala-nos um pouco das relações com os parceiros internacionais e quem são a nível do continente africano, europeu, sul-americano e de outros que provavelmente existem?

Os grandes parceiros ao nível de África são São Tomé e Príncipe e a Associação Girassol, de Moçambique. Na Europa, temos parcerias com o Centro Social de Palmela, Associação "A Coisa”, de Torres Vedras, Clube de Espeleologia, de Coimbra, Associação "A Tribo”, de Setúbal, todas de Portugal. Temos ainda parcerias com a France-Amérique Latine, Fra Angélico, Domaine de Tourneau e Educ'Art, todas de França. Na América do Sul, temos parcerias com a SPD, de Salvador da Bahia, Projecto Raízes, de São Paulo, e Projecto Obalofónica, do Rio de Janeiro, todos do Brasil. Estamos a manter contactos fortes com associações homólogas do México, Argentina, Chile, Venezuela e Cuba. Temos trabalhos com a JTW de Spandau, em Berlim, e grupos de teatro em Vaimar, na Alemanha.

O projecto, enquanto Associação, certamente que tem um orçamento próprio. Como é feita essa gestão e quanto gastam anualmente para manter a máquina funcional?

Aqui é preciso esclarecer que o orçamento depende sempre da disponibilidade de verbas, da quotização e contribuição dos membros. Para o funcionamento da organização e realização de acções, a gestão do apoio das entidades externas é feita dentro dos parâmetros de transparência estabelecidos. Os valores gastos anualmente constam dos relatórios descritivos e balanços financeiros. Gastamos anualmente entre 15 e 50 milhões de kwanzas para fazer a máquina andar com grandes limitações. O ideal seriam os 150 milhões para ter pleno funcionamento.

Até agora quantos jovens foram formados, as áreas de formação e como são integrados na sociedade, uma vez que a intenção é trabalhar com a juventude mais desfavorecida do Cazenga?

A Globo Dikulu é uma associação dedicada a promover o desenvolvimento e a inclusão social através de diversos projectos e programas. Até ao final deste ano estaremos envolvidos numa série de acções para capacitar crianças e jovens vulneráveis, trazendo-lhes um espírito patriótico e um olhar de esperança face às dificuldades que temos enfrentado no nosso país. As nossas principais preocupações até ao final do ano incluem dois projectos de formação e capacitação juvenil em parceria com a Fábrica de Sabão.

Em que consistem esses projectos de formação?

O primeiro é a formação em Cerâmica Artística e Industrial, que tem como objectivo oferecer aulas teóricas e práticas a 20 jovens, capacitando-os nos processos de trabalho com argila e desenvolvendo os conhecimentos técnicos e artísticos no campo da cerâmica. O segundo projecto é o empoderamento através da costura, que proporcionará a capacitação de 20 jovens em corte e costura, abrangendo técnicas de corte, costura e design de moda. Ambas as formações têm como objectivo expandir as habilidades dos participantes e criar oportunidades de emprego e empreendedorismo, com acompanhamento e direccionamento para a criação de duas empresas nos respectivos sectores. Além disso, durante o período de férias escolares, estamos a implementar o projecto "Cinema no Zengá", que utiliza o cinema como uma ferramenta educativa e de diversão para as crianças e jovens do Cazenga. Através da exibição de filmes inspiradores, buscamos estimular o pensamento crítico, a criatividade e o diálogo entre as crianças e os jovens, proporcionando momentos de aprendizado e entretenimento.

Há dois anos, iniciámos um programa de bolsas de estudo em parceria com a Universidade de Belas, que visa apoiar estudantes dedicados que enfrentam dificuldades financeiras. O nosso objectivo até ao final do ano é ampliar esse programa, buscando pessoas, empresas e organizações que estejam dispostas a apadrinhar crianças e ajudá-las a construir um futuro melhor. Estamos comprometidos em apoiar 25 crianças e 5 jovens nos seus estudos, buscando proporcionar igualdade de acesso à educação. Estamos também a construir agora um programa de formação técnica na área da Produção Artística e Cultural.

Dos vários intercâmbios nacionais e internacionais, quais foram os mais marcantes e porquê?

As acções profissionalizantes dão aos jovens capacidades e habilidades para a sua orientação e integração profissional no mercado de trabalho.

Em parceria com o Instituto Nacional de Emprego e Formação Profissional (INEFOP) e suporte financeiro do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) estamos a desenvolver um programa de bolsas para jovens artistas estagiários, que visa inserir alguns jovens no mercado de trabalho. Destacamos as acções de intercâmbio desenvolvidas com Portugal no ano de 1998 e em 2007 entre Angola, França, Portugal e S. Tomé e Príncipe. E, isso porque estavam versados na formação e incidiram significativamente no modo de operação e saber fazer da nossa organização.

O que representou para a Associação a distinção do Prémio Nacional de Cultura e Artes em 2019?

O significado está no reconhecimento do Estado angolano ao trabalho da Globo Dikulu. Naquele ano, o júri decidiu atribuir-nos o prémio pela realização do Festival Internacional de Teatro do Cazenga (Festeca), cuja criatividade artística e cénica tem permitido, ao longo de 18 anos, dar, de forma contínua, maior abertura às artes cénicas, feitas por nacionais ou estrangeiros. A forma peculiar e diferente de abordar questões relacionadas com a realidade do país, em particular das comunidades, mas sempre com um forte pendor de formar, educar, moralizar, consciencializar e entreter as pessoas, também foi motivo para a atribuição do prémio, o que deixou os membros felizes e aumentou as nossas responsabilidades.

Em tempos, o projecto foi beneficiado com um financiamento da União Europeia (UE), que ainda está na primeira fase, visto que o surgimento da pandemia da Covid-19 inviabilizou o financiamento da segunda etapa. O que foi feito até agora e quais os resultados já visíveis deste financiamento?

Felizmente este assunto do projecto, denominado "Arte Formal - promoção, inserção e sustentabilidade artística”, pertence à Associação Globo Dikulu, e tem várias etapas, tendo a primeira sido implementada num período de seis meses, que visou formar jovens e equipar o Anim'Art para responder às necessidades de auto-emprego. Depois do interregno, devido à pandemia da Covid-19, estamos a recomeçar. Estão ultrapassados os constrangimentos que impediam a sua conclusão. Gerar rendimentos para artistas e técnicos de forma permanente, bem como garantir a continuidade das acções culturais constam dos objectivos do primeiro projecto subvencionado pela União Europeia, através do fundo "Diversidade”, edição 2020. Uma das metas foi a formação especializada de 20 técnicos em diversas áreas, como sonoplastia, luminotecnia e concepção e gestão da produção cultural, reforçando o mercado com um pouco mais de exigência e qualidade de serviço. O projecto tem incidência a jovens entre 18 e 35 anos, alguns dos quais já exercem essas actividades, enquanto outros serão integrados para prestar serviço de qualidade a nível da província de Luanda.

Os 20 mil euros atribuídos ao projecto "Diversidade”, numa primeira fase, permitiram, também, apetrechar o espaço com equipamentos de som e luz.

Falemos da realização do Festeca. O festival atingiu, nesta edição de 2023, a maioridade. O que representa para a Globo Dikulu essa trajectória?

Uma trajectória de luta e de resiliência, que encontra o seu ponto alto na expressão de amor e crença pelas artes.

Como surgiu a ideia da criação do Festeca e quando passou a ter o cunho internacional?

A ideia surgiu da necessidade de criar condições para os grupos mostrarem aquilo que fazemos num certame, e dar sentido e acolhimento aos trabalhos dos grupos de teatro. Tomou esse cunho internacional na 4ª edição, com a vinda ao país da companhia brasileira ACB - Teatral. Até ao momento temos uma média de 25 companhias e grupos de teatro por edição, o que perfaz cerca de 500 entidades participantes.

Como tem sido feita a selecção dos grupos e companhias nacionais e estrangeiras participantes no Festeca?

A selecção é feita à base de candidaturas e depois uma comissão de avaliação elege os espectáculos e submete para a produção, que em função dos recursos disponíveis apresenta a proposta de programa que é validada pelo Conselho Directivo da Associação.

O Festeca é de carácter demonstrativo. Que avaliação faz dos grupos e companhias nacionais e estrangeiras que participam no festival?

O Festeca é e será de carácter demonstrativo, mas temos a responsabilidade de proporcionar o reconhecimento dos trabalhos apresentados. A avaliação é positiva, porquanto existem nesses grupos a firme vontade de elevar o nível dos seus trabalhos, do teatro que se faz em Angola. Agradecemos aos grupos que com esmero e mérito fazem acontecer o festival. Os grupos estrangeiros acrescentam valor e proporcionam-nos momentos para o intercâmbio e trocas de experiências.

Sabe-se que o festival também promove peças infantis por serem membros de organizações internacionais e por participarem anualmente em vários congressos juvenis. Fale-nos um pouco sobre isso?

Sim, mas normalmente deixamos os espectáculos para crianças aos cuidados do Festival Internacional de Teatro para a Infância e a Juventude (FESTIJ). O Anim'Art é membro de pleno direito da Associação Internacional de Teatro para a Infância e a Juventude ASSITEJ, e temos a obrigação de participar nos encontros anuais e congressos onde se tratam os assuntos do teatro para o público infanto-juvenil no mundo.

O que se espera da Globo Dikulu e do próprio festival para os próximos anos, dentro daquilo que são as prioridades no mandato da actual direcção?

Quanto à Associação, estamos a trabalhar na passagem de testemunho a uma geração mais nova, que deve colocar a organização entre as mais produtivas e resistentes do país, com mais visibilidade e aceitação no contexto regional e internacional. A formação dos membros, a criação, concepção de novos projectos e os programas de apoio à formação dos jovens, de um modo geral, estão entre as nossas prioridades.

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