Opinião

O continente e o conteúdo

Adriano Mixinge

Escritor e Jornalista

A sociedade de consumo corrói, - por via da divisão social de classes, da coisificação do homem, das marcas e da publicidade, por via da fama, da riqueza e do luxo, incluindo por via das redes sociais -, o equilíbrio entre o ser e o aparentar ser: damos mais importância à aparência do que à essência e isso faz, pela negativa, uma grande diferença.

19/01/2021  Última atualização 10H17
O tipo de casa que se constrói ou, simplesmente, se habita, o tipo de carro que se usa, o tipo de roupas que se vestem ou o tipo de objectos que se colocam nos dedos e se penduram no pescoço (ou a falta de tudo isso) pode ajudar a identificar, nem sempre bem, quem é o nosso interlocutor: o vemos como se estivéssemos a ver uma montra e, como sabemos, elas nem sempre têm aquilo que a loja tem.

Os equívocos que o contraste entre o continente e o conteúdo pode causar é semelhante aos da diferença entre a aparência e a essência: em ambos os casos, o que uma coisa (objecto ou edifício) ou um ser (pessoa, animal ou criação mitológica) aparenta ser, pelas suas características externas ou pelo que exibe pode ser determinante para o reconhecermos. O contrário acontece quando existe uma dissemelhança: quando alguém aparenta o oposto do que realmente é, algo que, quando descobrimos, chega a ser chato, triste ou revoltante.

Quando de coisas (edíficios) se tratam o que mais me surpreende é quando estou a passar pelos subúrbios da cidade, - e entre aquele areial e as suas ruas esburacadas, em zonas aonde nem a água nem a luz eléctrica sequer chegou -, encontrar reluzentes palacetes com quatro a seis andares, com geradores de corrente eléctrica que dariam para fornecer a mais cinquenta dos seus vizinhos, geralmente, pintados com as cores do orégão, a do alface, a da beterraba ou, inclusive,a cor da maionese: desconfio que a paleta de cores que adoram é fruto de caprichos.

Desses "continentes coloridos” podem sair os mais diversos tipos de indivíduos, dos mais honestos aos crápulas por excelência, dos trabalhadores aos parasitas, dos que aparentam ser o que não são aos que, de facto, são aquilo que aparentam e, realmente, dão corpo àquilo que dizem ser. Quando olho para eles fico sempre a pensar nos custos de manutenção daqueles palacetes, alguns com formas de sonhos, outros de certeza que só podem ser a emanação de um pesadelo: pergunto-me por que carga de água, mesmo vindos de uma tradição de arquitectura vernácula de um piso só, esses moradores optam por quantos mais andares melhor.

 A cidade pendurada é muito diferente da cidade estendida no chão dos nossos desejos e das nossas possibilidades. Aquilo que o exterior das casas nos diz é muito diferente do que, realmente, pode existir dentro das casas: nesse trânsito reside o maravilhoso, o trágico ou o inesperado.

Nesta vida já me aconteceu abrir a porta de uma casa onde previa encontrar o expectável, - uma sala comum com a mesa grande e as suas seis cadeiras almofadadas, umas fotografias da família penduradas na parede, quatro lindos sofás recheados de pluma de perú ou o que resta de uma chaiselongue, sem esquecer o tapete orientalista, todo floreado no chão -, me deparar com uma floresta, um campo de batalhas ou até mesmo o quase inferno: as casas dizem muito pouco sobre as pessoas que as habitam.

No que aos seres (pessoas) se referem também já vezes houve nesta vida, em que ao olhar atentamente no fundo dos olhos de alguém, onde previa que me fosse surpreender, - encontrar um espelho, a calma de um lago ou a transparência e a fluidez de um rio -, suceder que, afinal, inesperadamente, me visse encalhado num deserto com uma longa esteira de areia tão definitiva como uma sentença.

Há pessoas que são armadilhas ambulantes, têm objectivos tão espúrios e circunstâncias que mais vale tê-las longe, o seu oportunismo fede: são o cancro das relações sociais e interpessoais sadias. Assim que, é melhor darmos mais importância ao conteúdo do que ao continente das pessoas, das ideias ou o das coisas: aí reside o segredo para uma qualidade de vida melhor,para a serenidade de espírito e para conseguirmos ter amigos para sempre algo que, afortunadamente, a sociedade de consumo nunca vai conseguir destruir.

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