Opinião

O evangelho da natureza

Entre os sonhos e os sonhos que descontroladamente me acontecem, qual evoluirá ou passará de um estágio para outro? Qual? Qual evoluirá ou passará do estágio onírico – a tundavala mais profunda para o plano real – palpável e demonstrável? Ser uma matriz de verificação após inferir ou deduzir hipóteses? Por vezes dou por mim num retiro, num lugar totalmente distante do que se possa imaginar, sem vivalma alguma... bem longe da agitação e disputa atiçada pela vida urbana.

02/05/2021  Última atualização 10H00
Dou por mim num lugar onde há somente contemplação do belo, a poesia anuncia o seu evangelho a todos que a querem, que a necessitam. Os mais sensíveis prestam a ela a devida atenção estética. Sem sensibilidade não se descodificam as múltiplas formas de linguagem. Não se chega à catarse para lá do defunto Aristóteles.

O curso do rio-tempo ou os dias caudalosos que correm mostram que cada vez mais consome-se menos poesia. A azáfama do dia-a-dia cada vez mais liquidificado, a luta titânica e sem freio pelo ter têm tornado a vida mais prosaica. Mas o "enunciado” da poesia está nos olhos de quem vê, de quem tem boa acuidade visual. Está na paisagem, na humildade e simplicidade humana. Na alteridade e (no) amor ao próximo. Está no pico virgem das montanhas, nas erupções vulcânicas, na tranquilidade dos mares, nas cinturas verdes dos campos, no sol, nas estrelas, enfim no sistema planetário com todas as suas incidências.
Cultuar a musa natureza ou voltar à procedência das procedências é a melhor declaração, manifestação poética que possa existir. Mas voltar à procedência não é ser saudosista?

Se cultuar a musa natureza, a pátria, a mulher são formas de exaltação da saudade, então sou de modo integral, a tempo inteiro saudosista. E seria controverso e até mesmo irónico a poesia não ter tanto de saudosista como de telúrica(?).
Por vezes dou por mim num lugar onde o chilreio ou arrufo dos katuituís, katete-njilas, quintanas e de outros pássaros comunicam-se perfeitamente comigo, as mafumeiras como se entendessem de solidariedade me oferecem aconchego.

As montanhas distantes acenam-me, dizem olá, está tudo bem com o Senhor? Mostram-me a sua sorridente arcada dentária, revestida não só de brancura, como também de simpatia e empatia. Há rios com seus respectivos afluentes cujas fozes desaguam em mim.
A natureza ecumenicamente anuncia o seu evangelho: vinde a mim tu que estás farto até ao gargalo "gutural” deste pedaço urbano de terra cada vez mais selvagem, mais animalesco, mais ruidoso que aumenta num roer das unhas doses industriais dos níveis da ansiedade social que te aprisiona.

Vem, filho, à procedência, vem exalar a essência das essências, naturalmente perfumada que me sai das entranhas – diz-me a natureza exaltando o seu lado protector e maternal.   
Aqui o silêncio é um ente do bem, governa com e para todos. É um gergelim que se nos abre, sem a contestação da luz mínima do astro-rei.

Por vezes dou por mim totalmente desprovido de qualquer mantimento que contém informações nutricionais deveras valiosas para a ilusão que acalenta o parasita hospedeiro que há em mim. Cada vez que alimento o bucho enorme da ilusão sinto que é possível viver desprovido de qualquer libido, sobretudo a social.
Mesmo sabendo que não existe, em nenhures, lugar algum para lá dos confins, lugar que totalmente distante do que se possa imaginar satisfaça os meus desígnios de reclusão ou de recolhimento, vou mantendo acesa a tocha, réstias de alguma esperança já idosa, deixo-me molhar pelas gotas de água das catorze chuvas tetianas.

Será que são os solavancos da vida ou os meus poucos sóis escaldantes de existência que me fizeram enxergar isso? Não sei não!
Até hoje ainda te procuro ó resposta satisfatória, mas nem o Lando das "Esperanças Idosas” conseguiu me proporcionar isto.
O melhor lugar para reclusão, para o recolhimento é somente o tão temido dentro de nós. Parece que é um lugar de  fácil acesso. Chega até a ser mais fácil caber no buraco da senhorita agulha que chegarmos até nós. É um exercício deveras penoso.

É a imaculada ilusão que nos distingue de outros seres, que nos dá a sensação que não somos somente meras carnes humanas quando o batimento deixar de ser batimento. Mas um homem desprovido de qualquer libido inexiste? Não seria um autêntico ultraje à memória de Sigmund Freud? Que Freud, as suas teorias e os seus contemporâneos vão cavar batatas... ajudem a recolher e a escoar estes tubérculos comestíveis, antes que se estraguem.

Mas abrindo um parêntesis simples e não recto, devo concordar com ele, quando diz que os sonhos, a par dos desejos são experiências que remontam à  infância.
Por isso é que entre os meus sonhos e os que descontroladamente me acontecem vejo marcas diluídas da infância, de alguma memória do passado.
Não é à toa que o chamado, o evangelho e a devoção pela procedência, pela natureza é um cheiro cada vez mais forte, cada vez mais penetrante que me sequestra o olfato.

O anúncio chamativo e apelativo da natureza é fogo a consumir-me as entranhas e, cada vez que este fogo ganha outros contornos, aumenta a intensidade, a vida urbana torna-se-me mais volátil, mais fragmentada ou mais liquefeita ou na pior das hipóteses aborrecível. Daí a minha perda constante de libido, de lubricidade pelo social e a necessidade  espiritual pelo recolhimento, pelo retiro é um sentido a ganhar asas vistosas.
Há utopias que valem um aviário, que confortam. Esta é uma delas. Acredito!!!

Pedro Kamorroto

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